Comunidade literária em Pirapora
02 Jun 2020 |

Comunidade literária em Pirapora

O Clube Literário Tamboril, uma experiência comunitária na cidade ribeirinha do norte de Minas Gerais, desenvolve programas de incentivo a leitura e coloca a informação como centro da pauta da vida contemporânea

Paulo Proença
02 Jun 2020 14 Min

Uma experiência comunitária e cultural é sempre uma história rica e única de como promover o convívio com diferentes histórias, pessoas e imaginação.

Esta é a história do Clube Literário Tamboril, em Pirapora, na região norte de Minas Gerais.

Pirapora está à margem direita do Alto São Francisco. Fundada em 1912, a cidade é um porto fluvial e o ponto inicial da navegação deste que é um dos mais importantes rios do Brasil, passando por cinco estados depois de nascer na Serra da Canastra (MG). Pirapora significa salto de peixe na tradução de origem Tupi: pirá (peixe) e pora (salto). Os Cariris foram os primeiros a habitarem a região.

Cercada pelas águas do São Francisco, que formam cachoeiras e permitem banhos de rio, e construída a partir da cultura indígena e a cultura dos povos ribeiros, a cidade tem sua história marcada também pela presença dos minérios, sua exploração e beneficiamento.

Mapa de Pirapora (1938) publicado na Revista Brasileira de Geografia | Reprodução

E é nessa formação urbana e natural, que surge, no século 21, o Clube Literário Tamboril. Uma associação comunitária que abriga biblioteca, arte e histórias da vida sertaneja e ribeirinha. A história do coletivo começou em 2014, quando um grupo de educadores, escritores, poetas e artistas apaixonados pela literatura e pela cultura barranqueira, se reuniu para criar um coletivo de leitura.

O título Tamboril é uma referência à árvore de mesmo nome, presente em grande parte do território brasileiro. Em Pirapora, o tamboril faz parte da vida e história de muitos moradores, uma vez que a matéria prima serve para a construção de canoas e carrancas produzidas na cidade.

Em 2019, após diálogos com a comunidade e projetos itinerantes de leitura e oficinas em locais como a Praça dos Cariris e Mercado Municipal, a associação realizou o sonho da construção de uma biblioteca. Localizada em uma grande casa na Rua Montes Claros, no bairro Santo Antônio, próximo ao centro da cidade, ela recebeu o nome de Biblioteca Comunitária Tamboril.

Nesta entrevista, conversamos com o escritor Rafael Oliveira, cofundador do Clube Literário Tamboril. Formado em Gestão Cultural, Rafael possui dois livros infantis – Enquanto o rio corria e Pescaria sem anzol –, que serão publicados em breve.

Conheça a história do Clube Literário Tamboril.

O Clube Literário Tamboril começou como grupo de leitura e hoje, mais de 4 anos depois, é um projeto cultural e comunitário muito mais amplo.
Em 2014, alguns agentes culturais e educadores se reuniram para cobrar a reabertura da Biblioteca Municipal, que havia sido fechada sem justificativa. Nascia um coletivo que se denominou Clube Literário Tamboril. Ao longo daquele ano, realizamos um Fórum de Cultura, com abaixo-assinados, manifestações, reuniões com a administração pública. Em 2015, chegamos à conclusão de que poderíamos e deveríamos fazer mais para ampliar a leitura, o acesso ao livro e as trocas culturais da nossa cidade e região.

Por isso, deixamos de ser um coletivo e nos tornamos um empreendimento social e cultural sem fins lucrativos. E o trabalho que iniciou tendo como ponto de partida a reivindicação por uma Biblioteca Pública Municipal, converteu-se no desafio de construirmos nós mesmos as nossas bibliotecas.

E como foi o desenrolar deste processo?
O início da Biblioteca Comunitária Tamboril se deu quando montamos uma barraca na Feira de Artesanato de Pirapora, que acontecia aos sábados e, assim, criamos o primeiro Ponto de Leitura Comunitário da cidade. Na nossa barraca, as pessoas encontravam livros, ilustrações, e atividades como oficinas, exposições, saraus e rodas de conversa. O acervo foi se multiplicando com as doações dos que visitavam. Na mesma medida em que se somavam livros ao acervo, também se somavam voluntários e parceiros ao projeto. Como não tínhamos recursos para manter um espaço físico que abrigasse o acervo crescente e as atividades cada vez mais constantes, propusemos a algumas ONGs da cidade a criação de Pontos de Leitura em seus espaços comunitários. Em 2018 já eram seis minibibliotecas espalhadas nos bairros periféricos da cidade.

O sonho de ter nossa Biblioteca Comunitária pôde ser realizado em 2019, depois de nos capacitarmos nas áreas de gestão de equipamentos culturais e de captação de recursos. Com o projeto da Biblioteca estruturado, apresentamos a proposta em diversos editais. Conquistamos os Prêmios Acolher 2018 e Funarte Descentrarte 2019 e aprovamos o projeto no edital do Fundo Estadual de Cultura, em 2018. Graças aos recursos destes editais/prêmios, da captação junto às empresas privadas e da geração de receita por meio de eventos e venda de produtos próprios da associação, conseguimos manter a Biblioteca Comunitária, que se tornou referência na cidade como espaço cultural multiuso, onde, além de empréstimos de livros, realizamos sessões de cinema, teatro, contação de histórias e eventos literários diversos.

Alunos de escolas públicas de Pirapora e Buritizeiro na Biblioteca Comunitária | Foto: Divulgação

Esses pontos de leitura são os chamados Geloteca? Como surgiu essa ?
Era inviável levar todo o acervo para a Feira de Artesanato de Pirapora, então, a cada semana levávamos parte dos livros. Ao mesmo tempo, notamos que os moradores dos bairros periféricos continuavam sem acesso ao livro literário, pois a nossa barraca atendia somente aos sábados e estava localizada no centro da cidade. Para fazer esse acervo chegar aos bairros, procuramos associações e sindicatos que atendem famílias em diferentes pontos da cidade. A nossa proposta era simples: criar uma minibiblioteca em cada um destes espaços. Estas instituições parceiras também não tinham espaço adequado para abrigar uma sala de biblioteca. Por isso, adaptamos geladeiras para servir de armário de livros e, em cada associação parceira, criamos espaços de leitura com pufes, tapetes, bancos, etc, de acordo com o que era possível.

Assim surgiram as Gelotecas que hoje estão instaladas no Mercado Municipal, no Sindicato dos Servidores Públicos Municipais, na Associação dos Catadores e Recicladores, no Grupo de Capoeira Amaê, no Grupo Baticundum e, no município de Buritizeiro, no Cursinho Popular Opará. Antes de alugarmos o espaço da Biblioteca Comunitária, as atividades do Clube Tamboril eram realizadas de maneira itinerante, nos espaços dos Pontos de Leitura, o que ajudou a formar uma rede de instituições em prol do incentivo à leitura na cidade. Cada Ponto de Leitura possui entre 200 e 400 livros.

Geloteca na Praça dos Cariris, no centro de Pirapora | Foto: Divulgação

Que características tem o acervo?
A maior parte do acervo da Biblioteca Comunitária e dos Pontos de Leitura Tamboril é composta de doações dos próprios leitores. Os escritores de Pirapora e região também enviam exemplares de seus livros para serem disponibilizados para empréstimo. Esse é o diferencial das bibliotecas comunitárias: a política de formação e renovação do acervo é muito dirigida pela generosidade dos próprios leitores. E, na maioria dos casos, recebemos livros incríveis como doação. Isso pra nós é motivo de orgulho, porque quem gosta de livros sabe como é difícil se desapegar. Quando recebemos edições antigas e muito conservadas ou exemplares seminovos de livros que custam caro, percebemos o quanto os nossos leitores confiam em nosso trabalho, no cuidado que temos com o acervo e na importância de fazer os livros circularem.

A participação ativa da comunidade na formação do acervo contribui para a bibliodiversidade dentro da Biblioteca Tamboril, e permite que a gente consiga atender desde o leitor que quer ler sobre medicina tradicional, à mitologia, passando por literatura afrobrasileira, feminista, autores pop, clássicos, ficção científica, filosofia, HQs, literatura fantástica, etc.

Outra parte do acervo nós recebemos de doação do Programa Eu Faço Cultura, que é uma iniciativa financiada com recursos da Lei Federal de Incentivo à Cultura. Atualmente, temos no acervo da Biblioteca Comunitária mais de 4 mil livros literários e realizamos uma média de 300 empréstimos por mês.

E qual é o perfil do público?
São principalmente alunos das escolas públicas de Pirapora e Buritizeiro, com idades entre 4 e 18 anos. Para atende-los, criamos uma sala com acervo infantil e espaço para contação de histórias e mediação de leitura, em ações de incentivo à leitura. Também temos atividades para adolescentes e jovens que promovem a interação, a convivência e o desenvolvimento pessoal. Para este público são ofertados jogos de RPG de mesa, clube do livro jovem, saraus, cursos de inclusão digital, oficinas e palestras. Mas, o projeto atende à comunidade como um todo, são realizadas oficinas de escrita criativa, cinema comentado, lançamento de livros, contação de histórias e eventos culturais.

A Biblioteca é um projeto comunitário por excelência. Como essa construção foi possível?
A Biblioteca existiu desde o início como ideia de um coletivo formado por pessoas de áreas diferentes – escritores, leitores, educadores, artistas. Passou a ser um sonho coletivo. O processo de construção e amadurecimento do projeto, vivenciado desde 2015 até o ano de 2019, quando de fato inauguramos a Biblioteca Comunitária Tamboril, contou com a participação da comunidade, que trouxe múltiplos olhares e anseios aos quais o projeto poderia corresponder.

Assim, o espaço cultural da Biblioteca Comunitária foi concebido para ser um centro de convivência e de troca de saberes. Algo que ultrapassa a ideia de ‘repositório de livros’. Isso se reflete na relação da comunidade com o projeto.

Leitores de todas as idades, profissionais e estudantes de diferentes áreas, aposentados se oferecem para serem voluntários, para participar do planejamento, para contribuir de alguma maneira. De modo geral, as pessoas entendem que aquele não é um espaço público convencional, mas, sim, um espaço comunitário, que elas ajudam a construir, a reconfigurar e a manter. Outros agentes institucionais também interagem com projeto de diferentes formas, fazendo com que a Biblioteca Comunitária consiga mobilizar redes que conectam pessoas e instituições das áreas da cultura, da educação, da assistência social, e iniciativas diversas que fazem da biblioteca um espaço vivo e cheio de possibilidades.

Como acontecem as rodas de leitura?
São dois clubes de leitura que ocorrem mensalmente. Um clube formado por jovens leitores com idade entre 14 e 24 anos, outro com leitores a partir de 24 anos. Existe um mediador de leitura voluntário que coordena cada grupo. A cada encontro, um livro é debatido e o grupo escolhe o livro para o próximo mês. Procuramos selecionar livros que representem uma diversidade de gêneros literários (biografia, romance, crônica, texto teatral, etc.) e que contemplem as indicações feitas por todos os leitores do grupo. A equipe da biblioteca também traz sugestões de livros para serem debatidos, buscando, nesse caso, indicar livros de escritores locais e livros que promovem debates de temas relevantes para o grupo, seja relacionada às questões locais, ou a temáticas sociais, políticas, filosóficas, etc. Em alguns encontros, recebemos os próprios autores para participar da roda de conversa. No ano passado, participaram as escritoras Beatriz Onofre (SP) e Sávia Dumont, que é piraporense. Atualmente, estamos realizando as reuniões por videoconferências, além da interação dos leitores em grupo de Whatsapp.

Comunidade e voluntários das atividades da Biblioteca Comunitária | Foto: Divulgação

Quem são as autoras e autores locais que participam das ações do Clube?
São pessoas com livros ou com textos publicados em blogs, revistas eletrônicas e outros meios. Os escritores também participam das oficinas, das reuniões do Clube de Leitura e, principalmente, dos saraus, onde suas produções são divulgadas por meio das exposições e performances poéticas. Em 2019, o Clube publicou uma coleção de cordéis do poeta popular Gardel. Entre 2016 e 2017, foram lançadas outras publicações independentes, que reuniram poemas e crônicas dos escritores Edson Lopes, Emmanuel Costa Lima, Anízia Caldeira, Charmene Sopas, Lúcia Sopas, Douglas Tomaz, Brenda K. Souza e outros poetas populares. A interação desses escritores com o projeto ajuda a promover a produção literária barranqueira, além de contribuir com a formação de novos escritores.

Com o isolamento social decorrente da pandemia social da Covid-19, o clube literário tem feito algumas ações, como delivery de livros para empréstimo. Como tem sido essa experiência?
O momento que vivemos nos fez pensar o quanto a literatura se torna ainda mais essencial para as pessoas e o quão é importante que mais gente tenha acesso ao livro. Por isso, buscamos uma alternativa para fazer o livro chegar aos leitores sem descuidar da segurança sanitária. A ideia do serviço de delivery de livros surgiu naturalmente quando observamos que o serviço de entrega de alimentos, medicamentos e outros itens havia crescido em decorrência do isolamento social. Antes de implementar o serviço, buscamos orientações com o Sistema Estadual de Bibliotecas quanto aos procedimentos que deveriam ser seguidos para resguardar a equipe da Biblioteca e os leitores.

E como é feito o empréstimo?
A comunicação entre a equipe da Biblioteca e os leitores se dá pelo Whatsapp, onde o leitor faz a reserva do livro e repassa os dados de endereço e de horário para a entrega. Hoje, com a flexibilização do isolamento social na cidade, também é possível ao leitor retirar o livro na portaria da Biblioteca, não sendo permitido entrar no local. O serviço de delivery de livros garantiu que a biblioteca mantivesse a mesma média de empréstimos que no mesmo período do ano de 2019.

Coordenador do acervo da Biblioteca, Jean Matheus na ação de delivery de livros | Divulgação

O Clube Tamboril é uma organização engajada com os objetivos de desenvolvimento sustentável. Quando se deu o processo para seguir as orientações da ONU?
Tivemos conhecimento da Agenda 2030 da ONU durante uma mentoria que recebemos do Yunus Negócios Sociais, em 2018. Desde então, percebemos que a atuação do Clube Tamboril estava, desde o início, alinhada diretamente com alguns objetivos e passamos a planejar nossos projetos com vistas a cumprir algumas metas destes objetivos. O ‘acesso à informação’, por exemplo, é uma questão transversal em todos os ODS, e está detalhado na meta 16.10, sendo uma das atribuições já reconhecidas das bibliotecas. Nesse sentido, atuamos também no combate à desinformação, representada, entre outras, pela disseminação das fake news. Por isso, realizamos mensalmente rodas de conversa e atividades com estudantes do ensino fundamental e médio para falar sobre fake news. É um trabalho de ampliação da visão de mundo e do senso crítico que ajuda a educar os alunos para identificar as fake news e para não se tornarem propagadores das mesmas. Ainda sobre o acesso à informação, a Biblioteca Comunitária Tamboril promove a inclusão digital da comunidade, realizando cursos, oficinas e disponibilizando a sala de informática com seis computadores conectados à internet.

Desenvolvemos, ainda, em consonância com a meta 4.7 dos ODS, projetos educativos, com a parceria de instituições de ensino, para promover o conhecimento dos alunos quanto aos direitos humanos, promoção de uma cultura de paz, valorização da diversidade e promoção de hábitos para o desenvolvimento sustentável. Considerando que a salvaguarda do patrimônio cultural já é exercida pelas bibliotecas, museus e arquivos, a Biblioteca Comunitária Tamboril aderiu à meta 11.4 dos ODS, reunindo em seu acervo a produção literária local. No acervo há livros de diversos escritores de Pirapora e região disponíveis para empréstimos, sendo alguns deles exemplares raros, que estão disponíveis apenas para consulta.

Conversa sobre fake news no Mercado Municipal de Pirapora | Foto: Divulgação

Quais são os projetos futuros do Clube Literário Tamboril?
O cenário da pandemia de Covid-19 nos fez pensar em intensificar os projetos voltados para a inclusão digital e tecnológica dos leitores. Percebemos que, mesmo aqueles que têm acesso às tecnologias digitais, têm dificuldade de acessar e usufruir destes recursos. Por isso, em 2021, com a parceria da Fundação Banco do Brasil e do Movimento Recode, realizaremos um programa de capacitação para jovens com idades entre 14 e 29 anos. Também criaremos um podcast para falar sobre literatura. Neste podcast, os próprios leitores e os escritores serão os convidados. Será um meio de promover a interação entre os leitores, debater as temáticas dos livros discutidos e realizar a mediação da leitura nos meios digitais. Os projetos que já desenvolvemos, pretendemos ampliá-los, entre eles a formação continuada para educadores da rede pública de ensino. Serão oferecidas oficinas de mediação de leitura, contação de histórias e de criação de projetos literários.

Para saber mais sobre Pirapora

Processo de tombamento do vapor Benjamin Guimarães pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Iepha-MG

Inventário Cultural do Rio São Francisco, publicação de 2015 elaborada pelo Iepha-MG em parceria com o Núcleo de História Regional da Universidade de Montes Claros e apoio do Ministério Público de Minas Gerais