REVISTA nº 1

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Lotus Lobo

Artista, pesquisadora e formadora, Lotus Lobo é um dos principais nomes da litografia no Brasil. Com ela, desde os anos 1970, segue uma coleção representativa da memória da litografia industrial produzida, principalmente em Minas Gerais, entre os anos 1920 e 1950. Em entrevista à REVISTA, Lotus nos revela as muitas possibilidades de invenção e convívio que a sua trajetória de mais de cinco décadas continua a criar.

Gabriela Moulin, Marcelo Drummond
21 Fev 2020 23 Min
Lotus Lobo

Uma das canções de Caetano Veloso diz que o homem velho já tem coragem de saber que é imortal.

Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal

Desde nosso encontro com Lotus Lobo (Belo Horizonte, 1943) em sua casa-ateliê, em novembro de 2019, a canção nos ronda.

Pode parecer uma aproximação pouco plausível, mas a artista de 77 anos – que nos recebe, conta detalhadamente sua história familiar e revela processos em que tudo é novo e tudo é também memória – pode, sem risco de um superlativo desmedido, ser chamada de uma maravilha sem igual.

Litógrafa, pesquisadora, professora e colecionadora, Lotus desfaz nossa ideia de tempo e amplia o mapa pelo qual podemos navegar. A limpidez da memória nela presente, capaz de nos narrar em detalhes momentos da história da arte em Minas Gerais e no Brasil vivenciada há mais de 50 anos, combina com a mulher de sorriso pronto e cabelos brancos, em uma casa repleta de memórias afetivas e de uma coleção das imagens contidas em matrizes da Estamparia Juiz de Fora, que ela recolheu e acolhe, constituindo um arquivo único da litografia industrial mineira entre 1920 e 1950.

Lotus Amanda Maria Lobo é filha da cantora lírica Eugênia Bracher e do músico popular Waldomiro Lobo. Com os amigos Luciano Gusmão e Dilton Araújo realizou trabalhos em equipe (1968 à 1970), com Klara Kaiser, Nívea Bracher, Roberto Vieira, Paulo Laender, Lúcio Weick e David Ruigt criou o Grupo Oficina (1964).  Fez nascer a Casa Litográfica em Belo Horizonte (1978) com Thaïs Helt, George Helt, Marina Nazareth e Maria Carmen. Em 1984 trabalha com Fernando Pitta e Maria José Boaventura na Casa de Gravura Largo do Ó em Tiradentes/MG. Formou alunos na Escola Guignard, onde ela mesma havia estudado. Vive e trabalha em universos compartilhados, coletivos.

Na ocasião da exposição de Lotus Lobo na Galeria Guignard, em 1970, o amigo e interlocutor Luciano Gusmão escreve no texto “Marca Litográfica”, que acompanha a mostra:

Uma velha técnica de impressão, como a litografia, pode vir a ser uma nova técnica de imagem? O caráter de novidade de uma técnica não se verifica apenas no encontro com as técnicas tradicionais: no contexto do consumo (artístico ou não), a novidade é uma questão de estrutura, um modelo previsível de arranjar as coisas.

Lotus apropria: o contexto dessa apropriação é a litografia industrial mineira entre 1920 e 1950. Apropria marcas-embalagens de manteiga, banha, queijo de pequenos produtores, pequenos consumos, nas margens do São Francisco à Zona da Mata. É toda uma geografia que se reestrutura, mapa de palavras-cidades, os caminhos do ferro, as várzeas, os bois: São Miguel de Guanhães, Almenara, Araçuaí, Patos de Minas, Cordisburgo, Januária, Dores do Indaiá.

Em sua mais recente exposição individual “Território Gravado” (2019) realizada na Galeria Superfície (São Paulo), com curadoria de Marcelo Drummond – o texto “Lotus Lobo. Territórios Desmemoriados”, produzido para a mostra, é da ex-aluna de Lotus e hoje pesquisadora e professora da Escola de Arquitetura da UFMG, Renata Marquez. Nele, a pesquisadora diz:

Lotus Lobo reverte a interrupção do processo, dá continuidade à aparição das formas e estende a narrativa no tempo e no espaço. Contra a desmemória, a artista reúne, faz conviver, ensinar e aprender, inventar junto.

Aqui transcrita e editada, está parte da conversa com Lotus, que durou uma longa manhã chuvosa e fica como possibilidade para percorrer suas ações, proposições, imaginação. Oportunidade para todos nós percorremos a história e a renovada invenção que a artista nos submete ainda em 2020. Ao final da conversa, ela nos disse “estou cansada dessa história de artista dos anos 1970. Sou artista hoje”.

Exposição: Lotus Lobo – Litografia (2018), Centro Cultural Minas Tênis (BH/MG) | Foto: Lucas Galeno

O principal interlocutor da conversa foi Marcelo Drummond, artista, designer gráfico e professor da Escola de Belas Artes da UFMG, curador da exposição “Território Gravado”, em São Paulo. Também participaram da roda Gabriela Moulin e Larissa D’arc, do BDMG Cultural.

Primeiros encontros

GM: A sua história familiar parece ter influenciado muito a sua relação com as artes.

LL: Tive pais artistas. Meu pai, Waldomiro Lobo, era ligado à música e a programas de animação popular, e minha mãe, Eugênia Bracher, tinha formação clássica de piano e canto, ela era cantora lírica. Os dois tiveram um casamento também na arte. Saíram viajando pela América Latina, fazendo apresentações. Entre meus tios, irmãos da minha mãe, havia um pintor, Frederico Bracher Júnior. Meu avô era violinista, maestro e tipógrafo. Tínhamos várias vertentes para seguir, mas todo mundo queria passar pelas aulas de pintura do tio Frederico.

Então, minha primeira iniciação artística foi com ele. Depois, já fazendo o curso de formação para professora primária no Instituto de Educação, eu e minhas amigas cruzávamos muito por dentro do Parque Municipal, que não tinha grade naquela época. E, ao fazer isso, entramos em contato com a escola de artes que ficava lá dentro. Eu e uma amiga achamos que poderíamos fazer uma coisa mais moderna, porque o Frederico era um clássico, acadêmico, muito rigoroso, e a gente já estava querendo desenhar alguma coisa diferente.

GM: Quando foi isso?

LL: Em 1961, exatamente quando tivemos o primeiro contato com a Escola Guignard e resolvemos assistir aulas lá. Não era exatamente uma escola, era um ateliê de artistas. Todos alunos de Guignard, que naquela época já não frequentava mais.

Era um grande ateliê livre, em um barracão. Quando as obras [de construção] do Palácio das Artes ficaram interrompidas por 10 anos, a escola resolveu ir para um desses andares ainda inacabados da estrutura do edifício. Todos eram aceitos, vinham professores de diversos lugares. Me lembro que, em 1963, veio o Inimá dar curso de pintura mural.

GM: Quanto tempo durou sua relação com a Escola Guignard como aluna?

LL: Então, entre 1961 e 1963, foram vários cursos. No segundo semestre, veio João Quaglia, que foi meu primeiro professor de litografia. Naquela época, ele morava em São João del-Rei, onde eu o conheci e o convidei para vir à escola.

MD: Você pode nos relatar esse encontro com o Quaglia?

LL: Meus primos e eu resolvemos ir para São João del-Rei, durante a Semana Santa, para ficar desenhando, pintando. Nos deixaram dormir na igreja matriz. Nessa viagem, alguém nos disse que perto da igreja morava um grande pintor, o João Quaglia, e fomos até a sua casa. E qual surpresa não foi, quando ele abriu a porta e tinha um ateliê de litografia.

Ele é baiano, estudou na escola de Belas Artes do Rio, e era muito amigo de Darel (Darel Valença Lins 1924-2017). E os dois estudaram litografia na Espanha. Quando voltou, ele se casou com uma menina de São João del-Rei e se mudou para a cidade. Quando ele chegou lá, havia uma gráfica, que também estava desativada, a Estamparia Castelo. O Quaglia comprou o acervo deles e daí surgiu o primeiro núcleo de litografia de Minas Gerais. Eu logo o procurei para ter aulas.

MD: Lotus, é interessante te ouvir, pensar que a sua formação se dá dessa maneira, no ateliê livre da Guignard, nos primórdios. Formação e ensino se confundem. Porque ao mesmo tempo que você estava se capacitando, tendo os primeiros contatos com a litografia, você também, de uma maneira muito propositiva, traz o Quaglia e já começa a pensar uma estrutura para o núcleo fundador de litografia…

LL: Eu já começo a pensar nessa coisa coletiva que o ateliê de litografia tem. Aliás, de todas as gravuras, ainda mais a litografia, que exige equipamentos muito pesados. Nem todo mundo tem acesso a uma prensa, que é uma coisa mais rara, difícil de comprar e precisa de um espaço amplo.

MD: Portanto, como é que a sua formação se confunde com essa prática do ensino?

LL: Acho que foi mais a prática. Um grupo se formou lá depois do curso do Quaglia. Éramos eu, a Klara Kaiser, que era uma grande desenhista, hoje é arquiteta; veio um grupo de alunos da Maria Helena Andrés; vieram o Paulo Laender, Lúcio Weick e o Roberto Vieira, que era de Juiz de Fora; a Ana Quirino, que fazia cerâmica, fez litografia; o Dionísio, que era um pintor aluno de Maria Helena Andrés. Aquela mistura era muito interessante. E essa troca é que fez o ensino entre a gente.

Territórios compartilhados

MD: Você sempre comenta que a litografia é uma atividade de natureza coletiva por excelência. Vai muito a reboque disso que você está acabando de dizer: como esse lugar se torna um espaço de confluência de pessoas muito heterogêneas, vindas de vários lugares. Você acha que é o ofício da litografia que traz esse acolhimento, essa congregação?

LL: Eu acho que se a gente fizer uma análise filosófica, vamos encontrar muito mais dados interessantes do que só os físicos, como o fato de da pedra litográfica ser pesada (em torno de 40 a 50 quilos) e, por isso, precisar de ajuda para carregar. Há uma outra esfera também que remonta a todos os ateliês ao longo dos séculos, de grupos fazendo gravura para a ilustração. É assim que a litografia começa, para servir uma história do impresso.

MD: E tem uma sequência lógica, também, que exige diferentes expertises: do gravador, do impressor, do encadernador. Pois é uma hierarquia de ofícios.

LL: Essa palavra ofício é maravilhosa. Não só na indústria, mas também em qualquer gráfica de litografia, ou em qualquer outra gráfica, existem os mestres. E existem também ajudantes, outros que são especialistas em ilustração, o outro que é especialista em letra e tipografia. Isso, na verdade, também faz o grupo.

Entre nós, havia aqueles que gostavam de desenhar de determinadas maneiras, com determinados materiais, e outros de outra maneira. Eu acho que esse contato de troca é que fez todo mundo adquirir o conhecimento.

GM: A história do Grupo Oficina é nesse momento?

LL: Sim, em 1964. Eu achava que a gente tinha que ter uma oficina. Seriam artistas independentes. Montamos, mas durou pouco tempo. Em 1966, intensifiquei minha presença na Guignard porque fui contratada oficialmente. Em 1967, fiz um concurso para professora efetiva, e passei a trabalhar muito na escola. Eu faço meu trabalho nesse período todo dentro da escola, eu não tinha ateliê.

GM: É desse período a relação com o Luciano Gusmão e Dilton Araújo?

LL: Em 1967, fomos eu, Klara, Roberto e Nívea à IX Bienal de São Paulo com o Luciano. Depois ficamos nos reunindo na garagem aqui de casa. Líamos revistas de artes. Passamos a inventar cursos e leituras.

MD: Você está falando de uma parte muito importante da sua história, que é essa da constituição de um grupo de artistas que trabalhando juntos, desse coletivo equipe, na época não existia esse nome “coletivo”. Eram três pessoas munidas de um interesse em comum. Conta como é que você encontra dois homens, vindos de lugares muito distintos, não propriamente das artes visuais, como é que você encontra essas pessoas? Qual era a cena cultural?

LL: Havia, naquele tempo, uma coisa muito importante que era o Salão Universitário de Arte, organizado pelos sindicatos, pelas uniões dos estudantes, nacional e estadual. E esses salões aproximaram pessoas. O Humberto Serpa, arquiteto, já é nosso amigo nessa época também. E o Décio Bracher, meu primo, veio estudar arquitetura em Belo Horizonte, no final dos anos 1950. Desenvolvemos uma ligação muito forte com a arquitetura. Nós frequentávamos a Escola de Arquitetura da UFMG e sua biblioteca.

Por outro lado, uma ligação muito importante é o Centro de Estudos Cinematográficos (CEC). E minha formação vem muito do cinema. Assistia a diversos festivais: o festival de cinema russo em 1961 foi feito no auditório do Colégio Arnaldo, um filme era exibido e depois havia debate.

E o Luciano dava aulas de estética e cinema e aparece na cena ali também, porque morava ali perto. O Dilton Araújo estudou arquitetura. Nos juntamos com vontade de começar a estudar e dar cursos. O pessoal de Juiz de Fora criou a Galeria de Arte Celina (1966), histórica na jornada das galerias no Brasil, e essas pessoas iam dar curso lá.

Mas nosso primeiro encontro como grupo acontece quando nos revoltamos contra o Salão de Arte da Prefeitura. Era o dia do aniversário da cidade e nosso primeiro trabalho foi um happening, na avenida Afonso Pena, em 1968.

 

Do corpo da terra

GM: E como foi esse happening?

LL: O happening aconteceu na Afonso Pena, enquanto o Salão abria lá na Pampulha. Não queríamos mais a tradição dos salões, os quadros pendurados na parede. Além disso, era 1968 e queríamos ir para a rua nos manifestarmos, vivíamos o momento da ditadura. Mas não temos documentação nenhuma desse evento.

Foi um banquete. Uma mesa colocada ali no centro nevrálgico de Belo Horizonte, em frente a uma loja de departamento chamada Sloper, entre a Igreja São José e o Parque Municipal.

Era aquela hora em que todo mundo voltava para casa, com o ponto de ônibus lotado. Nós havíamos levado pão, vinho e umas galinhas vivas e as soltamos em cima da mesa. A multidão começou a pegar as galinhas para levar para casa. Aí teve algumas palavras de ordem, mataram galinhas… Nos dispersamos quando a polícia chegou.

GM: O ano de 1968 é importante também para o seu trabalho individual, não é?

LL: Esse momento marca a introdução do uso da marca industrial no meu trabalho, que acontece a partir do convite da pré-Bienal de Paris. Nesse momento, sou convidada pela prima Nívea, de Juiz de Fora, que me conta sobre uma estamparia desativada em que poderíamos trabalhar diretamente no local. Até então, eu nunca tinha usado cor, só imprimindo em preto, com muita dificuldade, produzindo coisas que ainda que não eram o eu queria. Essa mudança acontece lá, com as matrizes que eles tinham, usando o conhecimento dos seus impressores.

MD: Isso acontece em 1968, e, em 1969, você, Luciano Gusmão e Dilton Araújo submetem a proposta Territórios ao Primeiro Salão do Museu de Arte da Pampulha (MAP). Vocês faziam uma crítica ao formato disciplinar, por mídia artística, gravura, pintura, escultura, quadros na parede, e estavam interessados no contato com o contexto urbano, de ativação urbana.

LL: A gente retorna ao Salão porque o prêmio passou por uma reforma. Caiu aquele Salão velho e apareceu um primeiro Salão nacional. Na época, Márcio Sampaio estava na direção do museu. Ele queria revitalizar o MAP, então finalizou o ciclo anterior de salões e criou o primeiro salão nacional. Naquele ano, 1969, participei da 10ª Bienal de São Paulo e do Primeiro Salão do MAP. Houve também uma mudança no meu trabalho, na maneira de apresentá-lo. Ele não iria mais dentro de uma moldura, seria solto, transparente. Paralelamente a isso, aconteceu também o trabalho meu, do Luciano e do Dilton, que chamávamos de ambiente, com a natureza ou apropriação. Na época não usávamos a palavra “instalação”.

Submetemos o trabalho e a proposta passou. Fizemos a montagem no dia da abertura. Chamamos de “Territórios”.

MD: Nesse primeiro salão de 1969, o vocês ganham um prêmio importante com a obra Territórios, e você individualmente ganha um prêmio com o seu trabalho.

LL: Sim, ganho o prêmio com a gravura também.

GM: Como era o trabalho Territórios?

LL: O que imaginamos na época é que alguém dentro do museu, fazendo uma visita à exposição, iria encontrar uma pedra com cordas amarradas que desciam pela janela, indo para fora do museu. Foi essa a proposta. Imaginamos alguns lugares em torno do MAP e criamos nomes simbólicos: lugar-lugar, lugar-traço, do corpo da terra, atalho…

Colocamos lonas coloridas, plástico, cordas, hastes de ferro e também acrílicos com uma bolha em que a pessoa poderia andar com ela, passear em volta do Museu para ver a paisagem de cor vermelha, amarela, azul, verde.

Lotus Lobo, Dilton Araújo e Luciano Gusmão | Acervo particular de Lotus Lobo

MD: E esse trabalho ficou depois para o Museu?

LL: A nossa proposta com o Territórios seria permanecer nos jardins, de modo que o trabalho poderia ser consumido pela natureza, pelo tempo, até ser destruído. Mas era um prêmio aquisitivo, e não pudemos deixá-lo degradando. Então resolvemos deixar as lápides em que estavam escritos os nomes dos lugares. Surgiu, assim, a segunda etapa do processo Territórios, que foi fazer um grande caixote e guardar todo esse material lá dentro.

MD: Naquele momento surge a figura do Frederico Morais. Conte sobre as cartas que são trocadas entre ele e Luciano Gusmão para ver a condução que o grupo teria com relação à obra Territórios.

LL: Naquela época, o Frederico já estava no Rio e nossa relação com ele é desde sempre. Ele escreveu o catálogo da primeira exposição do Grupo Oficina, em 1965, na Galeria Grupiara, uma das primeiras de Belo Horizonte, criada pelo Sérgio Maldonado e pelo José Palhano Júnior.

O Frederico viu Territórios e gostou muito. Depois, em 1970, ele fez aqui no Parque Municipal o “Do Corpo à terra”, que usava as palavras de um dos lugares de Territórios. Foram dois eventos simultâneos e integrados: a mostra “Objeto e Participação”, no Palácio das Artes, e a manifestação “Do Corpo à Terra”, no Parque Municipal, ambas em 1970.

MD: Como você relaciona essa experiência de vocês no Parque Municipal aqui em Belo Horizonte com os famosos Domingos da Criação, que o Frederico realizou no MAM [Museu de Arte Moderna] do Rio de Janeiro?

LL: Primeiramente, a Escola Guignard já era no Parque. O Parque era muito próximo, muito aberto, não tinha grade. Fazíamos experimentos lá já em 1968. O Dilton fazia umas bandeiras e levava para o Parque, e a gente fazia uma espécie de acontecimento. Distribuíamos colarzinhos, interagíamos com o público…

Então, em relação aos projetos do Frederico no Rio, havia uma influência mútua. Estivemos algumas vezes no Rio com ele, vimos os Domingos da Criação.

Intervenções realizadas no Parque Municipal, artistas e público. Ao fundo bandeiras de Dilton Araújo | Acervo particular de Lotus Lobo

GM: Você comentou sobre sua participação na 10ª Bienal de São Paulo neste mesmo ano. Essa foi a “bienal do boicote”, não foi?

LL: Sim, a Bienal de 1969 é a do boicote. Eu não estava preparada politicamente para fazer esse boicote. Apesar de estar entendendo muito bem tudo o que estava acontecendo, eu não tinha força, como o Krajcberg, por exemplo, ou grandes outros artistas que foram lá retirar suas obras. Eu havia mandado os trabalhos para concorrer, eu não fui convidada como eles.

 

Mutação, apropriação

MD: Me parece que é, nesse momento, que você começa então a cruzar o que a gente chamaria de litografia industrial ou comercial com a litografia autoral. E me impressiona como você já estava trabalhando com aquilo que chamamos hoje de projetos de arte residência e de incursões em lugares. Cada vez mais você sai de Belo Horizonte, ainda muito jovem, vai até Juiz de Fora, e passa temporadas longas, fazendo essas incursões, dentro de uma fábrica industrial, comercial, que não tinha nada a ver com artes visuais. Eu queria que você falasse dessas duas questões.

LL: Na verdade, esse contexto de arte residência acontece nos anos 1960 mesmo. Primeiro com a ideia de equipe, de estar trabalhando junto dentro aqui do ateliê, e depois da minha busca de muito antes de chegar na fábrica. E, para isso, eu fiz outras residências em ateliês de grandes litógrafos brasileiros como Antônio Grosso, que era não só artista, mas também o maior técnico do Brasil naquela época, que tinha uma casa de impressão feita com o impressor Otávio Pereira que veio dos Estados Unidos, que imprimiu Jasper Johns e Rauschenberg. Quando Grosso criou um atelier chamado Planos, no Rio, eles me convidaram para participar do grupo, como aluna.

MD: Comente um pouco sobre esse trabalho que você produziu para a Bienal de 69, em São Paulo, na qual você ganha o prêmio.

LL: Eu havia pensado em fazer objetos que pudessem ser manipulados. Então, o arquiteto José Roberto Ferreira fez o desenho de como poderiam ser esses objetos. Eu poderia abrir e fechar placas de acrílico em trilhos superpostos, mostrando imagens, ou então desmembrar essas partes, com essas impressões soltas, ou fechar.  Corria tudo num trilho, eu fiz três objetos em acrílico e papéis transparentes também, poliéster e outros, que pudessem ser vistos assim, soltos, ultrapassados pela luz.

MD: Todos eles produzidos lá em Juiz de Fora, na Estamparia.

LL: Sim, quis fazer os objetos lá na Estamparia.

MD: Por um bom tempo a Estamparia então foi seu ateliê móvel.

LL: Sim. Eu fui e voltei para minha bolsa em Paris, e fiz o trabalho de 1972 para a Bienal de Tóquio lá também. Neste ano, em 1972, comprei um lote de matrizes deles e trouxe para Belo Horizonte. Em 1976, para aquela exposição Arte Agora, eu já imprimi tudo aqui e não voltei mais na fábrica.

MD: Você sempre comenta sobre como as visitas às distintas edições da Bienal de São Paulo eram formadoras. Você e seu grupo estudavam antes, passavam muito tempo lá vendo os trabalhos, conversando com os artistas, tomando contato com o que tinha de mais novo no mundo. Na Bienal de 67, vieram os artistas da Pop Art americana, e isso, de alguma maneira, validou as primeiras experiências que você já estava fazendo aqui, na Estamparia Juiz de Fora.

LL: Me deu permissão. Era a Bienal do Pop, então imagina o que vimos lá, todos aqueles artistas usando imagens prontas, de produtos e superposições. E eu com esse material todo aqui, sem usar. Por isso a Bienal me encorajou.

Aliás, pensando bem, foram duas permissões. A primeira, a de usar as matrizes, após ver a Bienal. E depois por ter mandado pela primeira vez os trabalhos para a pré-Bienal de Paris, que é uma exposição instituída pelo Museu de Arte Moderna, em que eles convidariam cinco artistas de cada categoria: desenhistas, pintores, escultores, gravadores etc. Desses cinco, um júri se reuniria e escolheria um único, representante da gravura para representar o Brasil. E o artista escolhido de gravura não fui eu, foi a Miriam Chiaverini. E no dia da abertura lá no MAM, a exposição abriu e, duas horas depois, foi fechada pela repressão policial, que entendeu que os trabalhos eram subversivos. Por isso, nenhum artista foi para a Bienal de Paris.

A exposição era patrocinada pelo Correio da Manhã, um jornal de oposição à ditadura militar, com a Niomar Moniz Sodré na direção do jornal. Ela e Jaime Maurício adoraram meu trabalho e compraram as peças. Então, a segunda permissão foi essa aceitação.

GM: Quando foi sua primeira exposição individual?

LL: Eu fiz toda uma carreira de salão até chegar a minha primeira individual, que foi em 1970, na Galeria Guignard, que ficava no hall do Teatro Marília, em Belo Horizonte.

MD: Onde você apresenta pela primeira vez as famosas Maculaturas.

LL: Sim, a primeira vez das Maculaturas foi em 1970. Quando fomos preparar a exposição, vimos este material na fábrica. Elas servem para o registro, para quando você vai fazer o teste da impressão, mas está fora do registro ou a tinta não saiu totalmente por igual, e eles vão tirando as impressões e guardando. Quando vem uma nova imagem para ser impressa, eles pegam aquelas mesmas para usar novamente, para não gastar um flandres novo. O processo vai sobrepondo aquelas ideias, aquelas imagens todas. A gente começou a achar aquilo tudo muito interessante, e perguntando se seria possível levar.

Da série Maculaturas | Acervo particular de Lotus Lobo

MD: Vejo que estamos diante de uma artista que faz salvaguarda de acervo, é colecionista, pesquisadora, professora. A Lotus nos contou aqui de maneira muito detalhada como é que ela vai fazendo essas confluências, esses núcleos paralelos, eu diria paralelos de formação, as casas de gravura, enfim, as suas incursões na Estamparia Juiz de Fora, você como professora, e o momento em que você passa a apresentar as pedras como objeto também de sua pesquisa.

LL: Comecei a achar que cada pedra é uma obra de arte pronta. Porque depois de passar por aquele processo, tão especial para cada pedra, já olho com respeito para ela. Estou fazendo mais de 50 anos de litografia. Muitos elementos ainda estão surgindo para consolidar essa ideia de que tudo pode ser um trabalho de um artista. O artista é aquela pessoa que vê e tenta mostrar o que vê, levando a sua sensibilidade junto para essa transformação. Sem essa transformação, não vai ser arte. Essas concepções levam um tempo para amadurecer e saber se são verdadeiras.

Hoje eu consigo falar sobre isso porque são experiências de 50 anos. Se há 30 anos fosse me perguntar sobre as Maculaturas, por exemplo, eu teria dificuldade em concluir se aquilo se encerrou mesmo, historicamente, como um trabalho. E hoje eu já posso afirmar.

Embalagem de banha – Folha de flandres | Acervo particular de Lotus Lobo

MD: Eu queria fazer um pequeno comentário. Tenho gostado muito de ouvir a Lotus falar dessa natureza coletiva da litografia. Falei no início da nossa conversa e queria fechar agora com isso. A Lotus tem, na sua formação, essa questão que eu chamo de “tentacular”: não é apenas uma artista muito ensimesmada com o seu processo, mas sim uma pessoa que está o tempo todo articulando coisas, aproximando coisas, tensionando questões, materialidades. Isso é muito impressionante, exatamente por ela não ser só artista, mas também professora, colecionadora, formadora de gerações e gerações, enfim. Acho que isso é muito interessante para trazer a condição para um princípio de edição, que é um princípio muito caro da gravura. Então, o que eu fico muito encantado e aprendo muito com a Lotus é como ela tem essa ampla liberdade, no alto de seus 50 anos de produção, sendo uma artista que teve um trabalho incrível na década de 1970, mas que continua, em 2020, levando trabalho adiante. Tendo a coragem de experimentar novas questões. O princípio da edição me parece muito interessante, porque creio que a Lotus nem precisa mais ir trabalhar com a gravura dentro de um princípio canônico, que é o de registrar uma imagem na superfície de uma pedra para conduzi-la em tal suporte que a gente comumente chama de papel. Acho que o trabalho da Lotus não lida mais com isso. Ele é de tal monta que o princípio de matriz e da edição, que são princípios fundamentais do pensamento de um gravador, são feitos de um outro modo. Ela torce e inova essa questão. Ela não precisa mais ir à prensa para gravar, para imprimir, para fazer uma tiragem. O princípio da edição, para ela, é colocar todas essas materialidades, das matrizes de zinco, de pedra, essa salvaguarda em confluência, o que a permite ampliar de maneira muito contemporânea o conceito de edição e de gravura.

LL: Esse conceito de edição realmente ficou muito afiado com essa história da litografia. Muita gente pergunta como pensei nas coisas, e eu não sei se pensei tanto. Elas é que me sugerem.

 

Outras leituras

Reportagem da revista Arte Brasileiros sobre a exposição Território Gravado, de Lotus Lobo

Programa Agenda, da Rede Minas, sobre a exposição “Litografia Lotus Lobo”, realizada na Galeria do Minas Tênis Clube, em Belo Horizonte, em 2018

 

Foto de capa: Lucas Galeno

Gabriela Moulin

 

mestra em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Jornalista de formação e especialista em gestão nas áreas de cultura e desenvolvimento social. Foi diretora-presidente do BDMG Cultural entre 2019 e 2022. Atualmente é diretora de desenvolvimento institucional Instituto Tomie Ohtake

Marcelo Drummond

artista gráfico formado pela Escola de Design/UEMG e professor da Escola de Belas Artes da UFMG. Desenvolve doutorado com bolsa integral concedida pela CAPES, cujo objeto de estudo versa sobre a gráfica vernácula brasileira. Recentemente assinou a curadoria das seguintes mostras individuais da artista Lotus Lobo: “Litografia”, Galeria do Centro Cultural Minas Clube [2018] e “Território Gravado”, Galeria Superfície, São Paulo [2019]. Juntamente com Nydia Negromonte divide a direção do ESPAI, espaço cultural autônomo, situado em Belo Horizonte.

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