Joyce Athiê /

Sobre o documentar e o viver

“Essa é minha sobrinha. Ela está documentando a nossa história”.
Assim me apresentava Tio Jackson aos parentes e amigos.


Em 2017, conheci Tia Suely, em Belém no Pará. Ainda que desejado, o encontro não estava nos planos. Fui despreparada, apenas com uma câmera fotográfica e celular, que eu sequer consegui tirar da bolsa para fazer algum registro. Quem o fez foi meu primo que agradeço por quatro vídeos curtos em que se registra uma conversa ao telefone entre irmãs – Tia Suely e minha mãe que não se viam e nem se falam há mais de 50 anos. No vídeo, vejo a cortina se movimentando por causa do vento, fazendo entrar a luz do sol estourando pela janela. Enquanto elas dialogam, Ivete Sangalo canta na TV no programa Domingão do Faustão. Não fechamos as janelas, não desligamos a televisão. E os sons das vozes se misturavam, mas por sorte, não se perdia a conversa que tanto já me dava pistas: haviam mais dois filhos, um deles sem notícias do paradeiro, falecido talvez, em Serra Pelada. A outra filha mora em Manaus, mas ninguém a conhece. Houve fogo. Pele queimada. Um mundo dolorido que era melhor não adentrar de repente, tampouco esquecer. Guardamos o celular e fomos almoçar, na companhia das cervejas postas à mesa para celebrar. Estávamos nos encontrando pela primeira vez.

Tia Suely – Belém/PA 2020

Em 2020, volto a me encontrar com Tia Suely, também em sua casa. Levo novamente a máquina fotográfica, que também faz vídeos. Eu não sabia manuseá-la, mas eu queria apenas um registro de um encontro, de uma partilha de histórias, de tudo o que poderia me ser dito sobre o que eu buscava tomar conhecimento: saber sobre uma avó, uma mulher sobre quem pouco se sabe, pouco se fala. E quando se fala, fala-se na língua do preconceito, do estigma. Foram 20 minutos de conversa com Tia Suely, até ela se levantar e dizer que eu gostava daquela história porque ela não havia acontecido comigo. Isso não está gravado no vídeo. Assim que ela se levantou da cadeira, desliguei a câmera. Acho que o vácuo que ela me deixou a observar me constrangeu de tal modo que o dedo foi logo interrompendo aquele silêncio, que hoje está na memória e ressoa. Depois desses 20 minutos, me intimidei a ligar a câmera novamente. E não tenho outros registros dos momentos que compartilhei da sua companhia, além desse um terço de hora em que vejo um rosto desfocado e pouco iluminado, vasculhando algumas memórias. 

Na mesma época, também me encontrei com o Tio José dos Reis, em Redenção, também no Pará. Não foi preciso pedir muito. Eu cheguei, nos sentamos no quintal e, sem que eu fizesse uma única pergunta, ele se abriu a falar, como se esperasse essa conversa há tempos, me trazendo mais vestígios. Carmosina, minha avó, era bonita, como todos gostam de enfatizar. Certo dia, foi enviada de Marabá a Belém, para ser internada num hospital psiquiátrico. Foi transportada num avião de carga da FAB, que levava carnes. Tio era criança e queria ir junto, mas não deixaram. Ele conta isso, a tia do outro lado interrompe com outra fala, eu jogo a câmera para ela, o tio solta mais uma frase, jogo a câmera pra ele. Mas ele já tinha dito a história que se houve baixinho. Eu não tinha levado microfone, se escuta tudo muito baixo. Rosto do tio está escuro, a câmera instável. Depois de muita conversa, churrasco e cerveja pra celebrar o nosso primeiro encontro. Desligo a câmera e não trago em imagens a alegria do festejo de termos ganhado ali alguns novos membros da família.

Tio Zé dos Reis, Redenção/PA – 2020

Retorno para Marabá, ainda em 2020. Me encontro com Tio Erivaldo. Ele não me deixa gravar nada. Mas, faltando ao respeito, ligo o gravador do celular, e proseamos. Ele me faz muitas perguntas, também mata suas curiosidades sobre sua irmã, minha mãe. O celular ficou longe, meio escondido e, mais uma vez, ouve-se bem baixinho tio contando que não sabe quem é seu pai. Quando Carmosina chegou em Marabá, chegou grávida e seu pai, seja ele quem for, ficou por lá pelas bandas de Goiás.

Yolanda, minha mãe – Marabá/PA – 2021

Dois anos depois, em 2021, minha mãe aceita visitar Tio Jackson, em Anapu, terra de irmã Dorothy. Tio José dos Reis também se animou. Fomos juntos, dessa vez com microfone, a câmera fotográfica que também filma e uma outra de fácil manuseio, mas ainda assim, com suas formas de operacionalizar. Saímos sexta à noite, chegamos sábado de madrugada. Ficamos lá até a segunda-feira à noite, três dias de intensa vivência. Tio Jackson foi o único filho a conviver mais de perto com a mãe. Sabe muitas histórias e compartilha algumas delas. Como a do feitiço que um cabra jogou em minha avó por ela ter escolhido seguir sem ele. Foi então que sua cabeça passou a se perturbar. Houve fogo, houve água e houve corda no pescoço. Ela tentou se matar dessa vida em que guerreou o tempo inteiro para poder viver.


Tio me contou isso, mas ainda não sei se está registrado.

Tio Erivaldo e Tio Jackson – Marabá/PA 2021

Voltamos então para Marabá. Tio Jackson veio com a gente, fomos juntos ver Tio Erivaldo. Os quatro irmãos reunidos pela primeira vez. Eu, duas máquinas – uma fotográfica e uma de vídeo –  e minha total falta de jeito com os equipamentos da imagem e do som. Quando usei o microfone, lembrei-me de ligá-lo no meio da conversa. Tudo virou um ruído. Poderia ter tirado mais fotos, no automático mesmo, mas fiz poucos registros. Poderia ter caminhado ao lado do meu tio, conversando apenas ao invés de, de fato, fazer uma entrevista num formato mais duro, mas as coisas não se configuraram assim. A caminhada existiu, aconteceu, mas os assuntos eram outros tantos e não encontrava ali um espaço para falar do que nos unia ali, Carmosina. A conversa mais espontânea, em que os irmãos conversavam sem muitas inferências minhas, ficou registrada num cartão corrompido. 

Eu sou a sobrinha, a filha, a neta, que até tenta, e não consegue fazer o registro da nossa história, como bem espera Tio Jackson. Ou ao menos faz um registro em vestígios porque é assim que Carmosina se desenha. Sempre nos rastros.

Eu não voltei com um filme na mochila, mas como disse Tio Jackson “a menina tá lá aperreada, tentando fechar a mala, mas a mala não fecha, rapaz”