Encontrar companhias, construir referências
CENA 1
Era em preto e branco aquela foto.
Ela estava de pé, dentro de uma casa, uma sala, parecia,
usava um vestido longo, branco eu acho. Um cinto largo na cintura, e mão na cintura, o cabelo liso, curto, castanho claro, quase loiro. Galega, como chamam.
Usava batom vermelho e uma sandália plataforma branca.
Posava pra câmera, olhava e sorria.
(silêncio)
(Falas rápidas e sobrepostas)
TIA SUELY acho que ela nasceu em Belém
JOY Onde ela nasceu?
TIO ZÉ DOS REIS Em Amarante, no Maranhão.
JOY E como ela foi pro Pará?
TIO De barco. Tudo era de barco. Tinha muito castanhal em Marabá. Hoje em dia não tem mais
JOY quando o senhor conheceu ela já era mais velhinha?
TIO ERIVALDO era. disse que tinha medo de andar só
JOY o senhor se parecia com ela?
TIO ZÉ DOS REIS Não, não pareço com ninguém.
JOY ela tinha religião?
TIO ERIVALDO quando ela morreu ela era evangélica.
JOY Ela gostava de festa?
Eita… não saía do forró.
JOY eu achei ela muito parecida com minha mãe
TIO ERIVALDO parecia.
JOY mas ela foi viver de que?
TIO ERIVALDO não sei, ela se aposentou. e vendia tudo quanto era coisa na rua
JOY ela foi morar em Brasília, não foi?
TIO ERIVALDO disso não fiquei sabendo
JOY ela era bonita?
TIO ZÉ DOS REIS O irmão dela dizia que enquanto não acabasse a beleza dela, ela não viveria outra vida
JOY E que vida era pra ser vivida?
Silêncio
CENA 2
Lettering Belém, 2017, casa da Tia Suely
TIA SUELY
Eu tô querendo saber quantos anos a gente tinha quando a gente se via lá em Marabá? Oia, 12 anos. Pra ti ver, eu estou com 62. Pois então, eu sou a primeira, tu é a segunda, o Erivaldo é o quarto, o Jackson é o quinto. Olha como tem uma moça. É Suzana o nome dela?
TIA SUELY Olha, tua mãe sabe viu?
JOY Pergunta por que ela não me conta?
OFF Eu queria saber do passado pra pensar novos futuros, criar amanhãs também para os outros. Nossas memórias são mais antigas do que a gente imagina, mas elas não são fixas.
OFF A ela que nunca foi dada a possibilidade de ser história. A cada perguntava, um traço. A cada resposta, uma curva. Carmosina vai se desenhando. Nunca nítida. Sempre desfocada e cheia de mistérios. Alguns desvelados. Ela teve sete filhos e não cinco. Além da Suzana.
Eu não a Suzana
Ninguém conheceu
E o Beto também. Esse morreu em Serra Pelada.
TIA FILOMENA Quando eu peguei esse menino pra criar ele chorava chorava era só de fome. A Carmosina não tinha nem onde ficar. A vida dela não era fácil não.
OFF Eu também nunca achei que aquilo que me contavam parecia uma vida fácil.
TIA SUELY Mas ela quis dar. Ela não quis ficar comigo. Ela não deu todos?
TIA SUELY Agora não adianta mais questionar. Agora já passou. O que seria da gente se tivesse ficado com ela? É uma interrogação. Mas fez a coisa certa. Não abandonou, deu pra quem poderia cuidar. Mas é muito ruim, eu não gosto muito de dia das mães
Ancestralidade também é olhar pra frente.
TIO ZÉ DOS REIS nós não temos conhecimento do que ela fazia, tocava a vida pra ganhar dinheiro
Depois que ficou velha não tinha como ganhar dinheiro. e passou a alugar quartos. ficava dentro da cidade, pequenininha, todo mundo sabia do movimento. pode procurar na casa da carmosina.
CENA 3
Lettering Belém, 2019, casa da Tia Suely
Tia Suely foi a primeira filha. Vasculhando memórias, sempre olhando pra porta, pronta pra fugir daquela câmera que a observa. Ela me contava sobre seu nascimento.
TIA SUELY Ai o empregado do meu pai, pai biológico, contou que eu nasci dentro de um barco, na cidade de Jacundá. O barco tava… barco de castanha. Eu nasci nesse barco.
(som de rio. prossegue até o final)
TIA SUELY E ele tava no barco com ela, o meu pai, tava no barco com a minha mãe, a Carmosina.. Eu nasci dentro do barco.
CENA 4
Lettering, Redenção, Pará, 2019, Casa do Tio Zé dos Reis
Primeiro foi Tia Suely, depois Tio Zé dos Reis, Tio Jackson, Tio Erivaldo – e Tia Suzana por telefone. Para alguns, eu não precisava fazer muitas perguntas, eu chegava, a gente se sentava e eles saiam falando. As mulheres evitam alguns assuntos. mas a minha sensação é que eles aguardavam alguém pra compartilhar essa história.
TIO ZÉ DOS REIS Naquela época, os aviões eram de carga , transportavam carne. ela foi junto com a carne para Belém, pro hospital Júlio Moreira. Acho que um hospital psiquiatra que cuida de gente que sofria da cabeça. Ela passou um tempo internada lá em Belém. Eu lembro dela nesse tempo, eu pequeno queria entrar no avião com ela e não deixaram. Daí pra cá depois ela apartou de nós e fui saber dela quando Jackson apareceu.
O Jackson foi o filho que mais teve contato com a mãe. Ele foi criado pelo irmão dela. E foi Carmosina que contou a ele que ele tinha um irmão que morava em Marabá. Um dia, ele foi pra lá pra cidade e saiu andando pelas ruas procurando o irmão.
TIO ZÉ DOS REIS Aí ele me levou em Amarante pra encontrar com a minha mãe
CENA 5
TIA SUELY Ei Yolanda, vê se você sabe dessa história? A mamãe uma vez não foi internada em um hospício? Jogou querosene no corpo e tacou fogo.
TIO ZÉ DOS REIS Em Amarante. Ela tinha um braço assim que era queimado, a pele dela. De um lado. Ela que tacou fogo. Ela pulou dentro de uma cacimba pra morrer. Cacimba pra lá é poço. é cisterna, Ela pulou e tiraram ela. Também tentou se enformar com uma corda amarrada em uma árvore.
TIA SUELY E a mamãe morreu de que? É, eu também sou.
CENA 6
LETTERING Anapu, Pará, 2021. Casa do Tio Jackson
Minha mãe aceita visitar Tio Jackson. Tio Zé dos Reis também se anima. Foram três dias. Debaixo do pé de manga, os três irmãos estavam juntos pela primeira vez.
Minha mãe pergunta sobre Brasília. Ela te levou pra lá, Jackson? Dizem que ela levou na época da construção da capital brasileira quando tinha um intenso movimento de homens da construção civil. Mas disso ele não se lembra e a história também nunca conta da presença feminina nos marcos históricos.
Ele me conta de um feitiço.
A mãe namorava uma pessoa. Mas ela quis ir embora, voltar pro Maranhão. Se ela vai me abandonar, com outra pessoa ela não fica. Pensou o cabra que jogou o feitiço na mãe. Foi então que a cabeça dela passou a se perturbar. Ela caminhava mato a dentro e sumia. Eles a amarravam as mãos, a trancavam no quarto.
Tio Jackson que aos 14 anos saiu pro trecho, sempre voltava pra visitá-la. Quis levá-la pra viver com ele. Mas ela não quis não.
Nós voltamos então para Marabá. Tio Jackson se empolgou e veio com a gente, fomos juntos ver Tio Erivaldo. De repente, os quatro irmãos reunidos.
Tio Erivaldo pergunta se eles tiveram a sorte a saber quem era o pai deles. Eu tive, mas ele nunca me tratou como filha. Eu nem tive como saber quem foi. Carmosina chegou em Marabá, chegou grávida, e seu pai, não tinha como saber, ficou por lá pelas bandas de Goiás. O telefone toca. É Tia Suzana me ligando. De alguma forma, os cinco estavam juntos.
CENA 7
LETTERING Varjão
Eu ainda não falei sobre minha mãe, que cresceu ouvindo que filho de peixe peixinho é, que filha de uma mulher prostituta não teria outro caminho. Seu padrasto insistia em repetir o provérbio toda vez que ela usava um short, pedia pra sair, passava batom. Ele tinha um filho a quem foi ensinado pelo pai que se pode tocar nas filhas de mulheres peixe.
Tia Graça, companheira de Tio Jackson, contou que minha avó costumava aparar o sangue da galinha que matava do terreiro. Cozinhava a carne e jogava o sangue por cima. Frango ao molho pardo é meu prato preferido. Ali minha mãe entendeu alguma coisa e foi percorrer comigo o Varjão, as ruas de Marabá que abrigavam os bordéis onde minha avó viveu. Minha mãe batia nas portas e dizia. Eu sou filha de Marabá, mas já mudei daqui faz tempo, e tô procurando uma mulher que viveu aqui.
Você conheceu a Carmosina?