Escrever memórias, construir presenças
É quarentena, e o sonho é antigo. Hoje é domingo, mas acordei achando que era sábado. Transformar parece ser imperativo. Mudar o ângulo para ver o que se apresenta porque de onde estamos já não podemos mais estar. Alguns preveem tantas coisas. Uma nova civilidade a irromper. Tem um sopro que diz que seremos exatamente o que estamos sendo agora, neste período, exatamente neste momento histórico. E por histórico digo apenas sobre uma marca no tempo. Como vivê-lo agora? Nos períodos de grandes nuvens, sonho é saída. Está difícil sonhar, me disse em uma carta que enviei ao futuro. Vou então ao passado e volto-me a ela, àquela história que se conhece a pinceladas, a rasuras de memórias. Tentativas de preencher, não o tempo porque ele segue cheio, esse hábito ainda vai precisar de um pouco mais de revolução para esvaziar, pra deixar de ser uma lista a fazer. Preencher-se, é. De algo que precisa concretar, em honra, em homenagem. Porque parece que isso tudo calhou de cair nas minhas mãos. Ela me espera, eles também. E eu me aguardo.
“Ancestralidade não é só uma questão de espiritualidade, é também política” Ricardo Aleixo
Começo por aqui como forma de organizar, de projetar o que vai mais longe que um perfil, que um cadernos de processos, mais longe que uma peça, mais longe que roteiros de uma série de vídeos ou de uma série de fotoperformances, mais longe que Carmosina possa escutar, mais distante que ela possa conversar com suas filhas e filhos, tão distante que chegue a outras que nem conhecemos, mulheres ou camadas sutis, do consciente e do que não se tem consciência.
“Avós.
A voz”
Aline Motta
A primeira pessoa é uma dificuldade. É que precisa ser interessante para além, de forma a não se circunscrever num único olhar, num único ângulo, num único ego. É para mim antes de tudo, mas precisa ser para o outro. Essa é a busca, pela forma ainda desconhecida. Então assumo aqui que aqui estou, aqui sou eu, falando dela, falando deles e também de mim, pra logo mais borrar-me, desaparecer para deixar que surjam outras, outras elas. Isso é um rascunho embasado. Assim como nesta foto. E essa sou eu na casa da Alzira, a minha avó. Ela faleceu e vim despedir-me no sétimo dia. Sua morte cercou-me, como fazem as mortes, de possibilidades de vida como cerca-nos agora essa pandemia.
“Que ancestral você quer ser?” Dione Carlos
Este texto foi escrito em 17 de maio de 2020. Editado, agora. Ali, diante de um momento obscuro que se iniciava, ainda alimentando que seria possível utilizar deste tempo para a pausa, para a reflexão, retornei ao antigo plano, tão antigo que nem sei de quando é, talvez de quando eu tivesse nascido, ou talvez de quando aprendi a palavra avó, ou quando, também não lembro quando e como, alguém, talvez minha mãe, tenha me contado que havia uma terceira avó. A sorte me deu três avós. Conheci apenas uma delas, a que não carrego em mim o sangue, mas carrego o cheiro. Elas todas me acompanham. Uma delas, eu persigo. Carmosina. Que nome bonito!
“Linhagem é linguagem” Aline Mota
É sobre ela – ou sobre mim? ou sobre minha mãe? ou sobre eu e minha mãe? ou sobre avós e netas? ou sobre mães? ou sobre mulheres profissionais do sexo? ou sobre mulheres mãe profissionais do sexo? – que rascunharei ideias, percursos e buscas por aqui. Peço licença, desde já, a busca tem vários caminhos. A trilha não é linear. Os sentimentos, uma vastidão.
“Boas conversas” Gil Amâncio