Joyce Athiê /

Carta a Aline Motta – Tempo e silêncio para o decanto e o encantamento

Casa da avó Alzira – Marabá | Pará – 2019

Querida Aline,

Hoje vi seus filmes mais uma vez. Há dois dias fui dormir com eles. Não havia pensado que retornaria. Não que eles não tivessem chegado aqui feito ondas, mas diante uma lista atarefada de afazeres tantos, de uma aceleração desses tempos, da sensação de uma corrida sempre atrasada pra chegar em algum lugar, não havia previsto um reencontro tão logo. Mas o lugar é aqui e posso sublinhar que tenho aprendido e apreendido das suas falas, da sua voz e também dos seus filmes o valor da respiração. Retornei aos filmes porque as águas ainda se movimentavam em mim e precisava deixar o silêncio e o som do mar se encontrarem pra decantar algumas palavras. Que inspirador são seus filmes, de reanimar a coragem, de fazer pensar ser possível uma certa paz que nasce inquieta e faz mover, faz deslocar.

Sendo do jornalismo e do teatro, me pergunto porque ando buscando a linguagem do audiovisual para contar uma história, a da minha avó que é também da minha mãe, minha e das minhas sobrinhas. Uma linhagem. Mas, assim como se sente a temperatura, o ritmo, as cores, a simplicidade, o precário e o rico, a poesia da língua, o frescor das águas, a história naqueles rostos, dos recortes que você nos traz da Nigéria, tem algo no Pará, onde nasce o que persigo, que me leva ao registro audiovisual. Os sons, as texturas, os ritmos, a temperatura, a fisionomia da gente, o jeito de falar e até os sabores desse território que pouco conheço, mas que faz parte de mim, me despertam uma excitação que desejo compartilhar. A falta de intimidade com as ferramentas da linguagem amedronta, afasta, torna os caminhos menos acessíveis, mas quando assisti aos seus documentários lá veio a paz, e ela surgiu da simplicidade, dos detalhes, do mínimo, de uma certa tranquilidade dos fluxos, dos fluxos dos aprendizados, do olhar atento, aberto e conectado, cheio de emoções necessárias para manejar também as ferramentas.

Vi e senti muito cuidado com as buscas, uma disposição para o encontro e para a descoberta. Uma atenção especial às palavras, à voz cuidadosa com cada som que ressoa. Seu trabalho parece emergir do tempo e dos silêncios, dos espaços abertos internamente, dos encontros. Ainda que todo esse processo possa viver também as turbulências e as maresias, parece haver tranquilidade e compreensão com os processos, com o percurso. Hoje parei novamente para escutar as imagens e os sons. E vi você aberta às vozes internas, aos sopros dos ventos, aos cânticos de uma outra língua, buscando laços e conexões, conexões profundas, respeitando os desconfortos, ficando à distância, mas se aproximando quando acolhida. Contemplando, em respeito e honra. Tudo parece ser como num rito em que cada detalhe é muito especial.

 

Também me encantei com a liberdade e com o pertencimento ao território que foi se estabelecendo, de forma a também realizar nele outras paisagens, não apenas pela câmera, ângulos, recortes, mas pela construção de outras paisagens quando se acrescenta a ela um elemento, um espelho, um tecido com fotos impressas que se movimentam, deixando ali também seus rastros, dialogando com as paisagens, criando paisagens com as paisagens que te saltam à retina, fazendo parte também. Colocando-se ali e vendo-se presente.

Por que demorou tanto?
Por que demorou tanto?
Por que demorou tanto?
Por que demorou tanto?
Por que demorou tanto?

Talvez nem se possa dizer que houve demora.

As coisas precisam do tempo.

E o segredo. Além da escuta – um segredo precioso – a partilha. Há algo de muito íntimo – como te revela sua avó – sendo partilhado como um segredo e que, quando ouço, me torna cúmplice e, como cúmplice, engajo-me. É como se você tivesse me entregado uma carta em mãos, endereçada a mim, que eu leio em voz baixa pra ninguém mais escutar, que guardo em um lugar onde ninguém vai encontrar, mas que farei ressoar cada movimento daquelas águas na minha caminhada no mundo.

Deixo um abraço agradecido,

Joyce