Joyce Athiê /

“Você está gostando dessa história porque não aconteceu com você” – reflexões sobre a ética do biografar

 

“Essa era a piscina de minha casa. Fiz vários planos iguais a esse. No terceiro deles, uma folha cai no fundo de quadro. Visto agora, 13 anos depois, a folha me pareceu uma boa coincidência. Mas quais são as chances de logo no take seguinte outra folha cair no meio da piscina? E mais uma, exatamente no mesmo lugar? Nesse dia, ventava realmente? Ou a água da piscina foi agitada por uma mão fora do quadro? Terá sido o vento que balançou esses cabides? Será que nesse quarto encontramos mesmo essas cadeiras cobertas por um pano branco? […] Hoje, treze anos depois é difícil saber até onde íamos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita. […] Assistindo ao material bruto fica claro que tudo deve ser revisto com uma certa desconfiança”

Narração do documentário “Santiago”, de João Moreira Salles

Trago aqui este trecho retirado do documentário “Santiago” (2007), dirigido por João Moreira Salles, por ser uma referência não apenas para este trabalho que desenvolvo na criação de um roteiro documental que versa sobre a história de minha avó, Carmosina, mas por ser uma obra que marca meus estudos, marca minha memória.  Mas trago também porque no exercício desta escrita documental me deparei com algo que “Santiago” me desperta: a reflexão sobre a ética de narrar uma história biográfica, de um sujeito.

Trailler documentário “Santiago”, de João Moreira Salles

 

Aqui reproduzo a primeira sequência que proponho para o documentário “Carmosina”.

IMAGEM

Tia Suely sentada à mesa. toca o telefone, ela levanta e sai. Deixar a imagem paralisada durante o tempo do lettering, sem Tia Suely no quadro. Não há áudio, apenas silêncio.

LETTERING:

– Tia, volta aqui pra frente da câmera. Eu estou adorando essa história.
(respiro)
– Você está adorando porque ela não aconteceu com você.

DESLIGA A CÂMERA – Blackout

 

O Santiago, falecido mordomo da família Moreira Salles, que vemos no documentário de João Moreira Salles é uma personagem, construída pela narrativa documental, que, a bem de seu propósito, tenta revelar algumas questões implicadas nessa construção. O ângulo escolhido, a interferência no cenário, na composição da cena, na fala do personagem e as relações de poder. Santiago foi um homem, um sujeito de existência concreta, mas que ali no documentário torna-se sujeito de uma construção, uma personagem.

Ao perceber a transformação de um sujeito em uma personagem a partir de uma construção narrativa, questiona-nos a implicação da relação entre os dois sujeitos participantes dessa construção: o autor e a personagem. Falar de um sujeito é ser coautor de sua história, pois criamos relatos sobre ela a partir de uma operação de interpretação que passa pela experiência, pelo envolvimento, pelo interesse, pelo poder e pela ética.

O filósofo francês Paul Ricoeur vai dizer que “a compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa […] uma mediação privilegiada” (RICOEUR, 1991, p. 138). Em síntese, o sujeito se compreende diante de uma obra, na qual interessa menos a pergunta “o que ele quis dizer?”, mas em direção ao mundo que este texto abre com a pergunta “o que este texto me revela?”

A construção de uma narrativa abre caminhos para a ficcionalização de uma história de vida, permeada pela memória e pelo esquecimento, pela imaginação e pela interpretação. Não se está imune da presença de elementos imaginativos presentes na construção. Assim, volto à pergunta que me instiga: quais as implicações éticas presentes na construção da identidade narrativa de um sujeito transformado em personagem? Como se estabelece a relação entre autor e personagem? Entre documentarista e o documentado? Podemos falar em autonomia da personagem se ela é construída narrativamente por um autor? E do ponto de vista do autor, qual o grau de autonomia que lhe cabe ao narrar a história de vida de outro ser?

“Santiago” começou a ser filmado em 1992. As gravações são interrompidas e, só em 2005, João Moreira Salles volta à feitura do filme. 13 anos depois, retoma às imagens gravadas e insere na produção um olhar crítico diante de sua percepção sobre as relações de poder que estavam presentes durante as gravações. Santiago, o mordomo, o personagem. Salles, o bilionário, o patrão, o documentarista.

A construção de uma narrativa sobre determinada história de vida apresenta uma perspectiva ética, uma vez que existe uma relação de poder entre o autor que constrói a narrativa e o personagem que se constrói diante do autor.

Carmosina

Bom, deixando a teoria resvalar sobre a prática, na escrita do roteiro do documentário “Carmosina”, me peguei assistindo a trechos de entrevistas realizadas em 2017, quatro anos atrás, quando simplesmente foi ao encontro dos filhos e filhas de Carmosina, minha avó. Não havia roteiro, apenas uma câmera que eu mal sabia manusear. O primeiro encontro se deu com Tia Suely, na sua casa, em Belém (Pará). Fui com meu primo Rogério. Eu, que  havia levado a câmera, não consegui fazer nenhum registro. Meu primo fez do celular. No encontro, liguei do meu celular pra minha mãe. Quando ela atendeu, era tia Suely quem estava ao telefone. Elas conversaram e hoje retorno a este registro da conversa.

 

 

“Carmosina” parte de uma história de muitas dores. De uma mulher que foi profissional do sexo no interior do Pará, teve sete filhos e os doou para diferentes famílias. Uma dessas crianças foi minha mãe, a quem direciono esta pergunta:

 

Pergunta por que que ela não me conta?

 

Ao ouvir a frase, quatro anos depois, escuto minha arrogância. Escuto minha curiosidade passando por cima com violência e insensibilidade em cima de quem viveu a história. E me pergunto: qual a minha ética diante estas pessoas? Minha mãe, minha tia e meus tios? Me interesso pelo que sentem? Pelo que viveram? Ou busco uma história interessante para contar?

 

Qual minha ética? 


Quatro anos depois, redireciono a pergunta, não mais à minha mãe, mas a mim: por que ela não me conta? por que ela nunca me contou? por que será que ela não fala dessa história?

 

Qual a disponibilidade para a escuta? Qual trato é proposto para que a troca aconteça, em cumplicidade e confiança?