“Final” Reinados em 7 Cantos de Minas Conectados pelos seus Cantos e Rimas
Esse diário foi sugerido pela Tutora Dione Carlos, onde sempre lembro de suas palavras de reconhecimento do poder desse projeto nos sentidos histórico, cultural, musical, político e espiritual.
A tutora Aline Motta me avisou da importância de “só” apertar o rec. Realmente foi nítido em todos os registros que somente ligar a câmera causou um senso de gratidão dos registrados.
Ao tutor Gil Amâncio agradeço por se comprometer em ajudar nas análises rítmicas, que iremos iniciar agora, mas principalmente pela sensibilidade em iluminar minha maior dúvida neste processo, que era fazer uma análise “Mono” (como eu tinha estipulado nos métodos) ou fazer uma análise “Poli”, que condiz com nossas Culturas Afrodiaspóricas.
O tutor Ricardo Aleixo sempre responde as minhas dúvidas com mais questionamentos e isso acabou estimulando a trazer neste diário, mais do que os relatos e enfoque nos métodos pré-estipulados. Tento trazer as complexidade dessa jornada, que faz parte da própria Cultura de Congada e por sua vez da minha própria existência como ser que sou.
Apesar deste estudo ter sido contemplado individualmente à minha pessoa por meio da inscrição no edital LAB BMDG Cultural, eu não conseguiria executá-lo sozinho, não só pela necessidade técnica operacional, mas principalmente pelos meus fundamentos de Congadeiro, no qual sempre me guiaram à ações pelo Coletivo. Essa jornada de gravações se inicia primeiramente com a formação da equipe, onde todos são dos Ternos de Congo e Moçambique da cidade de Ilicínea, de onde vem nossas raízes ancestrais. Minha tarefa nestas gravações foi conduzir as conversas durante a gravações e dirigir mais de 7 mil km, além de dialogar com os responsáveis de cada lugar visitado, desde os capitães à pessoas das administrações públicas municipais, que em grande maioria, nos deram apoio com hospedagem e alimentação. O responsável pela captação de som é Eduardo Aparecido de Andrade, Capitão de Moçambique em Ilicínea e DJ do grupo de RAP 100 KO, além de ser meu compadre. Wallisson Vinicio da Costa auxiliar de produção, nosso tocador de pandeiro no Terno de Congo de Ilicínea, é descendente direto do Rei Ambrósio do Quilombo do Campo Grande, ele sem dúvidas é meu braço direito. A responsável por captação de vídeos é Andreza Rezende Amaral, Capitã do Terno de Congo de Ilicínea, é minha esposa e companheira em tudo na minha vida. Nós quatro fazemos parte do Estúdio Galanga, criado pela Associação do Congo e Moçambique de Ilicínea em 2020. Na primeira viagem tivemos a companhia do Capitão de Congo de Ilicínea e vocalista no Grupo de RAP 100 KO, Wallisson Silas de Andrade. Assim foi formado a produção, o aprendizado e a transformação íntima de maneira “Poli” e coletiva.
Primeira Viagem: Carmo do Cajuru, Timóteo e Prudente de Moraes, damos início com um frio na barriga e muita ansiedade.
Carmo do Cajuru
Logo que saímos sentimos um misto de alegria e medo da responsabilidade que se iniciava, mas ali mesmo, no primeiro local, já tivemos um acolhimento respeitoso, carinhoso e de tamanha força, suficiente para nos encorajar a seguir nossa caminhada. Devido alguns imprevistos, chegamos com duas horas de atraso e mesmo assim, o Capitão Nivaldo Nicolau juntamente com toda sua família dos Ternos de Congo e Moçambique, nos receberam com uma grande alegria e um belo café de Congado. Ficamos horas e horas envolvidos com seus cantos que nos trazem a ancestralidade em busca da fé. O sorriso estampado em seus rostos enquanto cantam, é lindo de se ver, nos envolve, nos preenche. Quase que não saímos de lá….
Timóteo:
Após viajar a madrugada toda, chegamos no Hotel Dom Henrique, onde as hospedagens foram reservadas pela prefeitura municipal, através do Secretário de Cultura Sr. Cláudio e o Vice Prefeito Vespa, que fizeram questão de nos receber.
Primeiro gravamos o Terno de Congo de São Sebastião, centenário, com o Capitão Geraldo e Capitã Fia, eles são casados e seguem a tradição do Saudoso Capitão Manoel Vitório, pai da Capitã Fia. Muita energia foi sentida pela perseverança e nitidamente percebida em seus rostos e seus cantos. Fomos recebidos com um café de Congada, na casa da Elizabete Pinheiro, rainha do Terno.
Final da tarde fomos gravar a Guarda de Moçambique de Timóteo do Capitão e Mestre Luís Fabiano, meu companheiro na “Frente de Aliança de Congadas”, exemplo de trabalho constante por nossa Tradição no Vale do Aço. A musicalidade tomou conta da escola onde gravamos, que apesar de fechada e vazia, pareceu estar repleta e preenchida pela força dos tambores e das vozes que ecoaram, fomos envolvidos com muita emoção. Em seguida o Capitão Luiz Fabiano nos ofertou uma janta e lá aconteceu mais cantorias descontraídas entre nós.
Prudente de Morais:
Estávamos muito ansioso para o encontro com o Capitão Chico Cachimbo do Terno de Moçambique Reinado de Nossa Senhora de Prudente de Morais, um Capitão muito reconhecido e respeitado em todo o estado.
Já na sua rua, parei e pedi informação de onde ficava a casa do Capitão e um senhor disse: “Aquele Macumbeiro, mora logo ali”, riu alegremente e nos pedindo para levar um abraço dele. O Sr. Chico Cachimbo, nos recebeu em seu alpendre, estava a fabricar Rosários e logo Dona Vitória, sua companheira, nos trouxe um bolo com café e a prosa se estendeu por horas. Nos contou histórias desde sua infância até os dias atuais, e de repente resolveu cantar, mesmo sem instrumentos a acompanhar. A magia se fez presente entre nós, lágrimas desceram de seu rosto e de todos nós, cantamos juntos, louvamos juntos, rimos juntos e almoçamos juntos. Ficamos todos encantados, emocionados, com tamanha satisfação e então no momento da nossa despedida o Capitão Chico Cachimbo nos olha e diz: “Esse foi o melhor domingo da minha vida!”
Renovados, benzidos e cheios de encantamentos vividos voltamos para nossas casas.
Segunda viagem: Bocaiúva e Montes Claros, os destinos mais distante, Norte de Minas.
Bocaiúva:
Após 10 horas de viagem sem dormir chegamos em Bocaiúva e fomos recebidos pelo secretário de Cultura municipal Cecílio, que preparou um lanchinho para nós e apresentou o espaço cultural da cidade com um lindo museu do Catupé da cidade.
Capitã Lucélia do Catupé N.S. do Rosário, mesmo enlutada atendeu meu pedido e fez uma apresentação cheia de emoção e exemplo de fé, respeito e honra aos que já se foram. Seu Canto adentrou em meus ouvidos cansados da viagem exaustiva e me trouxeram um sentimento de reencontro espiritual. Perguntando a ela o que significava o “Cantar” ela respondeu: “É como os Mastros quando os levantamos para conectar com o céu, quando Canto, é uma forma de oração que sobe e imediatamente o milagre desce”. Ela é um grande exemplo feminino, em um meio ainda machista de nossa Tradição.
Montes Claros:
Chegando em Montes Claros fomos para o Hotel Dubai, reservado pela Prefeitura municipal, através da gestora cultural Junia.
Depois de uma horinha de descanso, ainda no mesmo dia, fomos gravar com o Catupé de Mestre Zanza e seus filhos, que nos receberam na sede da Associação dos Catupéseiros. Após muita conversa sobre as nossas diferenças e semelhanças na tradição e com muito “jeitinho” Mestre Zanza resolveu cantar um pouquinho, foi pouco, mas o suficiente para entender a grandeza daquele homem de 88 anos. Seu carinho ao tocar o tamborim me tocou, o respeito de seus filhos, me conectou às lembranças do respeito pelo meu saudoso avô Jacó.
No dia seguinte fomos para a casa do Mestre Tim, da Primeira Marujada de Montes Claros. Parecia que estávamos chegando na casa de um parente, mesmo sendo a primeira vez ali. Eles estavam reunidos em seis pessoas, mas a musicalidade remeteu a dezenas. Muito nos impressionou, o alto nível musical de todos. Eles revezavam os diversos instrumentos e vozes, a lágrimas se fizeram presentem com a justificativa de dois anos sem se reunirem, foi lindo. Após o almoço, uma roda de samba e então Mestre Tim me confessa que recentemente negou uma vaga de trabalho em BH, onde ganharia 5 vezes o atual salário, pois não consegue abandonar o legado que seu pai deixou da responsabilidade da Marujada e choramos juntos. Essa história dele se assemelha com a minha, a história da herança da bengala que meu avô me deixou e como o rumo das trajetórias de nossas vidas podem mudar com base nos princípios e respeito pelas nossas tradições. Mesmo tão longe as histórias de continuidade em nossa tradição, se fazem semelhantes.
Voltamos para casa ao som do CD que ganhamos do Junior Zanza, filho do Mestre Zanza…
Terceira viagem: Três Pontas e Perdões, foi a mais curta, porém com grandes desafios com o carro e tempestades pelo caminho.
Três Pontas:
Mestre Mucambo ou Zé Vitor do Grupo Irmãos do Quilombo nos esperava com um almoço pronto, acompanhado de sua filha Poliana e amigos. Em seguida fomos para a sua casa, que é um grande museu e ateliê de Cultura Afro. Além de Capitão e Mestre de Capoeira, é um grande artista, vi muitas peças lindas trabalhada com amor e respeito. Ouvimos vários cantos, mas um em especial, me emocionou muito, o Canto que fiz no início da pandemia em 2020, “Que Saudade daquele Apito” e que viralizou entre os Congadeiros. Ali frente à frente, discípulo com o mestre e o mestre entoando o Canto do discípulo, foi algo que guardarei por toda a minha vida. Sua sabedoria transcende o visível, o compreensivo, vai além, traz o passado ao presente, dando direções ao futuro para nós e para nossa Tradição. Antes de sair, um benzimento e um até breve…
Perdões:
No mesmo dia chegamos na zona rural de Fagundes entre Perdões e Santo Antônio do Amparo. Na casa do Capitão de Moçambique Sr. Antônio Júlio, líder e referência em sua região e em todo o país, já apresentou com seu Terno em grandes eventos por todo o Brasil. Na sala de sua casa nos contou detalhes da história do seu avô, que chegou ainda criança no Brasil como escravo, mas separado pela Sinhá, tornou-se feitor e mesmo assim não o impediu de se encantar pelos cantos que vinham da senzala, apreendeu com os escravizados a tradição do Reinado. Sr Antônio Júlio relatou seus anseios em relação a atual geração de capitães e da humanidade em si, suas palavras nos tocaram: “Está faltando Amor e Respeito nas pessoas”. Só cantou quando tudo já estava desligado e guardado, tomando um café na cozinha da sua casa, no caminhar da conversa de despedida, com poucos versos mostrou toda a magia que é detentor. Saímos de lá com grandes reflexões, ensinamentos e uma grande ânsia de voltar o mais rápido possível.
Voltamos para casa com a certeza que temos que cuidar mais de nossos Mestres.
Quarta viagem: Uberlândia, Ituiutaba e Prata, destinos do Triângulo Mineiro, região que pessoalmente tinha dificuldade em compreender as grandes diferenças no festejar do Reinado.
Uberlândia:
Recebemos um apoio do Babalorixá Leandro, que em seu terreiro nos deu de comer, de beber e onde dormir, mas também nos deu uma aula sobre cultura, religião e luta antirracismo.
Na casa do Capitão Ramon do Terno Moçambique de Belém, participamos de uma oficina cultural sobre “Coroas”, onde Ramon, companheiro e fundador da “Frente de Aliança de Congadas”, me convidou a participar do debate, foi o necessário para quebrar meu preconceito em relação as nossas “diferenças” da tradição. A forma de muitos cantos e a forma do lamento, me fez reconhecer a ancestralidade do local. Pra finalizar o encontro com a presença de outros capitães de outros ternos e cidades, comemos uma deliciosa feijoada. E sai de lá com um dos Cantos na cabeça: “Que Corou é essa; É de promessa”
Ituiutaba:
Capitão Tales organizou uma recepção grandiosa, com direito a apresentação do Terreiro de Umbanda que é o Zelador, uma roda de Capoeira de amigos em comum e claro o Congo Real.
O batido das caixas me lembrou os do Congo de Ilicínea, a força das resposta do Coro chamava a atenção e para aumentar a emoção, Tales me fez um convite para em 2022 ser o Padrinho da Bandeira de São Bendito, fazendo crescer ainda mais a minha fé, devoção e ligação a esse Santo, que muito me sinto honrado de ser junto com minha esposa, Rei e Rainha da Bandeira de aviso de São Benedito na cidade de Guapé, além da minha filha do meio, ser a Rainha da Bandeira do Mastro de São Benedito da cidade de Ilicínea e agora, com esse convite, vejo que nossa devoção, fé e tradição se conectam de maneiras sagradas e invisíveis em todos os Cantos. Tudo isso me faz perceber que essa conexão, não é só como o título do meu projeto diz “Reinados….Conectados pelos seus Cantos e Rimas”, mas principalmente “Conectados pelo Sagrado”.
Prata:
Chegamos em Prata por volta das 23 horas no Hotel Veneza, onde estava a nos esperar o Capitão de Congo Moraes, que fez questão de nos receber, ele foi o responsável por conseguir a hospedagem juntamente com o secretário de Cultura municipal Carlos, que foi muito atencioso e respeitoso.
De Manhã fomos a casa do General Capitão Adilson do Terno de Moçambique Padre Valmir, que junto com o Terno de Congo Boa Esperança do Capitão Moraes são Regidos juntos, fazendo nos conectar imediatamente aos nossos, pois foi o único lugar onde fomos, que os Ternos de Congo e Moçambique são regidos juntos, igual aos de Ilicínea. E não parou por aí as semelhanças, o ritmo do Congo e do Moçambique também são semelhantes aos nossos. Antes da apresentação o Capitão Adilson cantou dois versos pra mim, através desses versos ele dialogou comigo sobre algumas inquietações minhas, sobre o pertencimento e missão nessa cultura. Quando junto as conversas com Capitão Moraes, um grande exemplo de humildade e respeito, e a grande sabedoria do Capitão Adilson, me fez sair de lá, com a certeza de estar fazendo o correto segundo nossos fundamentos.
Voltamos para casa alegres e com compromissos firmados de uma volta breve.
Quinta viagem: Paula Candido e Coronel Xavier Chaves, a última longa distância, foram 10 horas de viagem noite a dentro, com direito a conversas e encantamentos em encruzilhas, mostrando que grandes coisas iriam acontecer.
Paula Candido:
Cidade pequena, chegamos amanhecendo o dia, longo já fomos gravar com a Banda de Congo N.S do Rosário do Mestre Zizinho, bem na porta da igreja do Rosário de 1853, que já me fez chorar só de entrar e ver no Altar as imagens de Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito (com a toalha e pão nas mãos). Mestre Zizinho e todos os integrantes, encantam com seu jeito de dançar, mas o que muito nos impressionou, foi ver eles se ajoelharem enquanto Mestre Zizinho fez um lamento, levantaram entoando um Canto a Coroa de Nossa Senhora e então ao Céu, todos os olhares se voltaram, percebendo que se formou um “arco-íris em torno do Sol”, como um anel. Tamanha foi a emoção vivida por nós e por eles. Conhecendo o espaço abençoado deles, pergunto a Mestre Zizinho o que ele sente ao Cantar e ele me responde: “Sinto uma leveza por dentro”.
É exatamente com a leveza de Mestre Zizinho que seguimos com destino a Tiradentes, região tradicional de Congadas.
Coronel Xavier Chaves:
Bem próximo da cidade de Tiradentes, com o mesmo ambiente histórico, na igreja de Nossa Senhora do Rosário todo feita de pedra, gravamos com Terno de Congo do Capitão José Carreiro e do Capitão Rei Congo Eugênio, atual secretário de cultura da cidade. A delicadeza no entoar o canto do Capitão José Carreiro é marcante, assim como sua habilidade de cantar pra tudo, até na hora de beber água. O sanfoneiro também nos impressionou com a liderança rítmica das melodias. O Capitão Eugênio canta de uma forma forte e bem compassada. Neste ambiente histórico, com um povo tão carinhoso e com o cantar delicado e ao mesmo tempo potente, do Capitão José Carreiro saímos de lá com a sensação de quem recebeu um afeto, um carinho no íntimo, como se fosse um “relaxa que está acabando”.
Ainda temos que gravar na cidade de Guapé onde moro e na cidade de Ilicínea, onde tenho grande a responsabilidade herdada pelo meu avô Jacó. Nesses locais faremos durante os dias de festa que já estão próximos.
Trechos das gravações e fotos acessem:
https://www.instagram.com/adrianomaximianoama/
Equipe Galanga Estúdio: