Chris Tigra /

recostura

Tento sempre me lembrar que um país sem memória se esvazia. No final de 2020 iniciei um trabalho de pesquisa impulsionada por essa lembrança da qual não quero me esquecer, o que exige uma atenção contínua, um esforço pessoal enorme e incentivos imaginários constantes em busca de sentidos. Também foi por causa de uma inquietude pessoal para melhor compreensão da história brasileira tão desde sempre contada sob a insistente perspectiva colonialista, elitista, classista…branca. Por último, mas não necessariamente nessa ordem de importância, tem a ver comigo, de onde vim, os que vieram antes, essa coisa toda. Diante de tudo a vontade de achar os elos e conectá-los com o agora.

Objeto de tortura e aprisionamento dos negros escravizados no Brasil – acervo da Biblioteca Nacional

RECOSTURA partiu das palavras “escrava”, “escravo”, “escravidão” e tudo mais que deriva ou se desdobra daí. Comecei a investigação no Arquivo Nacional brasileiro, movida por uma curiosidade enorme de como e do quê e de qual forma isso consta na memória oficial do país. De maneira desordenada me deparei com inúmeros resultados sobre o assunto, de cartas de compra e venda de escravos  – diferentes tipos de negociação do que era legalmente considerado propriedade do “seu senhor” -,  até desenhos iconográficos do século XVI, bem como fotografias etnográficas curiosas sobre o negro brasileiro e sua cultura, dentre outros.

Através da pesquisa, tenho recolhido materiais com o propósito de deixar emergir novas revelações. Aproprio-me de imagens de séculos passados capturadas originalmente para mostrar o negro sob um ponto de vista antropológico, reimprimindo-as em papel ou tecido e com agulha e linha tenho percorrido imagens antigas tecendo novos caminhos, dando vazão a imaginários, me guiando pelo desejo de reconexão e reação, pensando que a recostura só acontece quando algo foi descosturado. Nesses momentos eu penso na trama entre passado e presente e futuro, representado pelas pontas soltas das linhas.

Recostura, “Tobossis ou Pegá a visão”. Bordado s/fotografia. Chris Tigra, 2020
Recostura, processos, Chris Tigra, 2021

Desde então tudo se desdobra em mim,  o cruzamento com a escravidão contemporânea, Minas Gerais por exemplo está no topo do ranking da chamada Lista Suja de 2021 e o chamado “elemento servil” de antigamente nunca deixou de servir e o perfil prevalece o mesmo, pretos e pardos. Os discursos pré e anti abolicionistas, conservadores X liberais daquela época onde o aprisionamento da liberdade dos negros por parte dos brancos era declarado de fato, outro exemplo, estão disponíveis na biblioteca do Senado Federal  e não se parecem tão distantes da retórica de hoje. Ligando os pontos e percebendo que o tempo tem a ver mesmo com uma percepção, porém não linear e muito mais ampla das coisas, o desejo de um futuro diferente se apresenta e acontecem por aqui também os desdobramentos de linguagens e na matéria, a agulha é minha amiga mas me faz furar o papel de um jeito violento porque não há outra forma mesmo, no tecido não, ela atravessa a linha e imediatamente se integra a ele pois são matérias irmãs. A tinta é outra coisa e experimento diferentes superfícies, a intervenção de elementos diversos incluindo os naturais como água e fogo e os encontros, as pessoas, as palavras, o território, os sonhos, o som, as coisas da vida são suportes ou gatilhos, ver, perceber, escutar, agir, recosturar, rever, reaprender, reconfigurar, reconstituir a graça com as ferramentas que tenho nas mãos é o desafio que me dei.