Ata-me
Tento sempre me lembrar que um país sem memória se esvazia. No final de 2020 iniciei um trabalho de pesquisa impulsionada por essa lembrança da qual não quero me esquecer, o que exige uma atenção contínua, um esforço pessoal enorme e incentivos imaginários constantes em busca de sentidos. Também foi por causa de uma inquietude pessoal para melhor compreensão da história brasileira tão desde sempre contada sob a insistente perspectiva colonialista, elitista, classista…branca. Por último, mas não necessariamente nessa ordem de importância, tem a ver comigo, de onde vim, os que vieram antes, essa coisa toda. Diante de tudo a vontade de achar os elos e conectá-los com o agora.
RECOSTURA partiu das palavras “escrava”, “escravo”, “escravidão” e tudo mais que deriva ou se desdobra daí. Comecei a investigação no Arquivo Nacional brasileiro, movida por uma curiosidade enorme de como e do quê e de qual forma isso consta na memória oficial do país. De maneira desordenada me deparei com inúmeros resultados sobre o assunto, de cartas de compra e venda de escravos – diferentes tipos de negociação do que era legalmente considerado propriedade do “seu senhor” -, até desenhos iconográficos do século XVI, bem como fotografias etnográficas curiosas sobre o negro brasileiro e sua cultura, dentre outros.
Através da pesquisa, tenho recolhido materiais com o propósito de deixar emergir novas revelações. Aproprio-me de imagens de séculos passados capturadas originalmente para mostrar o negro sob um ponto de vista antropológico, reimprimindo-as em papel ou tecido e com agulha e linha tenho percorrido imagens antigas tecendo novos caminhos, dando vazão a imaginários, me guiando pelo desejo de reconexão e reação, pensando que a recostura só acontece quando algo foi descosturado. Nesses momentos eu penso na trama entre passado e presente e futuro, representado pelas pontas soltas das linhas.
Desde então tudo se desdobra em mim, o cruzamento com a escravidão contemporânea, Minas Gerais por exemplo está no topo do ranking da chamada Lista Suja de 2021 e o chamado “elemento servil” de antigamente nunca deixou de servir e o perfil prevalece o mesmo, pretos e pardos. Os discursos pré e anti abolicionistas, conservadores X liberais daquela época onde o aprisionamento da liberdade dos negros por parte dos brancos era declarado de fato, outro exemplo, estão disponíveis na biblioteca do Senado Federal e não se parecem tão distantes da retórica de hoje. Ligando os pontos e percebendo que o tempo tem a ver mesmo com uma percepção, porém não linear e muito mais ampla das coisas, o desejo de um futuro diferente se apresenta e acontecem por aqui também os desdobramentos de linguagens e na matéria, a agulha é minha amiga mas me faz furar o papel de um jeito violento porque não há outra forma mesmo, no tecido não, ela atravessa a linha e imediatamente se integra a ele pois são matérias irmãs. A tinta é outra coisa e experimento diferentes superfícies, a intervenção de elementos diversos incluindo os naturais como água e fogo e os encontros, as pessoas, as palavras, o território, os sonhos, o som, as coisas da vida são suportes ou gatilhos, ver, perceber, escutar, agir, recosturar, rever, reaprender, reconfigurar, reconstituir a graça com as ferramentas que tenho nas mãos é o desafio que me dei.