processo criativo de um corpo cravado de búzios
Processo criativo de um corpo cravado de búzios
“Nessas tardes molhadas de agosto
Sinto a chuva lavando minha alma
Sinto o frio entrando pelos ossos
Como uma coisa um troço
Não sei explicar”
– Alceu Valença
Na vasta obra do cantor pernambucano Alceu do Valença, há uma canção em tom melancólico e de exaltação, que estampa os versos: “agosto é mês de chuva, mês de agosto lava a alma”. Creio que foi a tônica de muitos residentes que frequentam a Lab Cultural, pelo menos foi como me senti no agosto passado, um mês bastante intenso na residência cultural Lab, promovida pelo BDMG. Contudo, fomos atravessados com uma riquíssima provocação, trazida por Onisajé, enriquecido pelos comentários pautados na filosofia Yourubá, de Marcos Scarassatti, entorno do tema do Ori, tendo um motivador instigante uma questão trazida por Onisajé, a partir do monólogo teatral “Traga-me a cabeça de Lima Barreto”. Inspirada na obra do autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, especialmente em Diário Íntimo e Cemitério dos vivos, o monólogo conta com a interpretação de Hilton Cobra, sendo de autoria de Luiz Marfuz e direção de Onisajé (Fernanda Júlia).
Onisajé fez um relato bastante emocionado e comovente sobre o monólogo teatral, que trazia a cabeça de Lima Barreto como uma metáfora para encravar em nossas subjetividades profundas questões. A partir do seu relato começamos a discutir sobre eugenia, saúde mental, preconceito, racismo, violência policial, empoderamento negro, ancestralidade, linguagem e poéticas negras. Durante essa reflexão, mediada por um longo debate, Onisajé também leu um poema inspirado na peça, nos propondo uma elaboração estética e tendo como pano de fundo: “Bala&búzio”.
“Cravados de balas?
Não¡¡
Cravado de histórias, de riquezas, de futuros
Cravados de balas
Não
Cravado de búzios” cravados de sabedorias,
pensares, ciências, ancestralidades.
Quando um cérebro é cravado de búzios
ele pertence a poderosas tradições negras africanas
e afro descendentes”
Essa imagem poética, cravejada de filosofia africana, trouxe-me inúmeros questionamentos. Comecei a produzir várias imagens e sons. Vou colocar aqui no transcorrer do texto, como ilustração da minha experiência, alguns processos do laboratório vividos por mim em meu espaço criativo. Os três processos sem cortes e com as interferências do ambiente, do celular que tocou quando estava gravando, isto criou um acontecimento sonoro inesperado, sendo uma surpresa a entrada desses sons no momento de criação.
Comecei a produzir imagens, tendo como signo a enxada e o búzio. Em seguida me senti motivado a criar uma trilha, com um processo de criação bastante interessante. A minha expectativa era criar uma trilha que fizesse um diálogo com um vídeo-performance de Onisajé: ORIÔ!!!!! Ok, que me encantou e me gerou um impacto fulgurante, fiz alguns experimentos, depois me veio a ideia de estabelecer uma interação com Marcos Scarassatti.
Busquei dois vídeos no YouTube, de Scarassatti, Terra do silêncio e Iká. A textura sonora desses trabalhos audiovisuais me comoveu. Procurei fazer um cruzamento dos textos sonoros, dei prosseguimento, comecei a estabelecer uma união entre as camadas sonoras e promover uma interação com as investigações de Marcos. Em seguida, comecei a interferir e a tocar por cima, criando uma terceira camada, um hipertexto sonoro. Foi muito divertido, mas, ao mesmo tempo, trabalhoso. No entanto, me sentia envolvido nesse processo de criação e com a percepção estendida.
Em alguns momentos, mergulhado nesse caos criativo, desorganizador e organizando novos mundos, o meu espaço de criação ficou muito bagunçado. Devido o meu envolvimento nesse processo de investigação, me deparei com vários instrumentos espalhados para todo lado, livros pela mesa, misturados com enxadas, búzios, pemba. O meu atelier foi ficando bem desarrumado. No entanto, seguia produzindo, tanto as imagens míticas com enxadas e búzios, como a trilha sonora em meio ao caos criador que vivia e presenciava em meu laboratório de criação, sem contar com a cabeça numa profusão de ideias e numa imersão subjetiva intensa.
Essa experiência vivida, provocada pelo pensamento de Onisajé, desembocou na ampliação da temática enxada e búzio. De certa maneira, abriu um novo horizonte estético no meu Ori, estabeleceu novas conexões imagéticas e mito-poéticas. O búzio estabeleceu uma nova perspectiva, cunhou uma linguagem e uma boca que começa a se alimentar de antigos mitos, simbologias que fazem morada em minha espiritualidade ancestral.
Nas trilhas de várias camadas sonoras
“Búzio é vida
Dinheiro
Oraculo
É uma das bocas de Exu
É a escrita de Orumilá”
Babilak Bah
Setembro de 2022