12 de setembro de 2023
bruni emanuele
Casulo-segredo II
LAB23
Maripousar
Visitando os arquivos de minha mãe, composto por fotografias analógicas registradas em sua maioria por ela ao longo de pelo menos 15 anos de minha vida, encontrei-me ali com o inesperado, um inesperado feliz e cheio de força: a possibilidade de alembramento e (re)conhecimento de minha criança cuir que ali sempre esteve. Ora de bermudão oversized, ora de batom e vestido, brincando em seu velotrol ou abraçando seus ursinhos, brincando na banheira e posando diante da câmera fotográfica de sua mãe, sempre autêntique e cheie de personalidade, ali estava eu, por elu. Me encontrei com uma criança da qual não me lembrava: uma criança cheia de vivacidade e que já com seus passos principiava a feitura da pessoa transmasculina não binára que sou.
***
Dando seguimento ao meu projeto work in progress de livros-performance Casulo-segredo (2020-atual), iniciado em 2020 e cujo primeiro volume apresento na Composição 4 de minha dissertação de mestrado intitulada Maripousar: linhas e rotas de investigação de uma poética cuir biomitográfica (acesse aqui), defendida junto ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (PPG-Artes/EBA-UFMG), tenho ao longo da residência artística em pesquisa do LAB Cultural BDMF 2023 alimentado a boca da criação do segundo volume do projeto, o Casulo-segredo: curumim-cunhatã erê, em que investigo por meio de materialidades que estão na origem de meu fazer artístico e me ligam à minha mãe, bem como de fotografias de arquivo registradas por ela e por mim reapropriadas, a criança cuir amefricana que habita, sempre habitou esses arquivos e em mim ressoa. Remetendo à criança brincante presente nesses arquivos e em mim, intento explorar nesse projeto de livro-performance o modo como minha criança performou, desde sempre, a não binariedade, o entrelugar como mestice amefricane que até hoje se reflete e se adensa em mim e me constitui.
***
Por meio da performance em uma concepção expandida – habitando, assim, a escrita, a performance, o desenho e o livro como lócus de criação e de fabulação crítica –, me debruço sobre as representações dessa corpa-encruza e local de confluência de performatividades. Retomando meu curumim, mas também minha cunhatã erê,1 pretendo do interior desse livro-casulo ver surgir, pela transmutação de esquecimento em memória, a mim e a quem reverbero com minha existência e minhas buscas.
***
A seguir, dois dos primeiros movimentos do Casulo-segredo n. 2: curumim-cunhatã erê, expostos de 8 a 15 de julho no Galpão Cine Horto (BH/MG) como parte da programação da mostra dos Núcleos de Pesquisa do Galpão 2023/1, dentre os quais integrei o Núcleo de Estudos em Performatividades Negras, conduzida pelo artista e educador Anderson Feliciano. Tratam-se de dois desenhos feitos a partir de fotografia de arquivo, e neles exploro, por meio da materialidade do papel carbono vermelho (usado por minha mãe e eu ao longo dos anos para transferir moldes de roupas para o papel), da fotografia de arquivo, do desenho e da performance, signos e significados discursivos da cuiridade na infância de uma criança amefricana pindorâmica. Na água da banheira em que curumim-cunhatã erê se banha portando seu abebê, em negativo, refletem-se escritos que compõem sua certidão de nascimento, em que há a demarcação de um gênero feminino baseado em dedução, bem como o completo apagamento de sua racialidade e ancestralidade – o silêncio, afinal, é sempre colonial, sempre branco, sempre apagador. Na contramão disso, faço imergir dessas águas curumim-cunhatã erê, essa criança brincante e autoconsciente antes e acima de todo apagamento.