21 de dezembro de 2023

Começo – meio – começo1

Relatório poético do fim da residência

Vivendo um luto eu saia à rua para fotografar árvores secas, árvores mortas da cidade. Na primeira andança, na qual aproveitei também para ir até as gigantescas marquises no bairro da Lagoinha, passei pela Praça 7 e a Rodoviária. Na volta deixei para a última foto daquele dia uma certa árvore perto de casa, no passeio central da Av Augusto de Lima, em frente ao Sesc Palladium. De acordo com minha memória seria a árvore mais interessante a ser fotografada, aliás, foi pensando nela que tive a ideia da série necrófila. Nos últimos meses (coincidentemente o período em que desenvolvemos o LAB-2023) eu passei por aquela árvore um sem contar de vezes pois era o caminho para ir até a Santa Casa de Misericórdia acompanhar meu pai.

Então, qual foi meu susto quando não mais a encontrei: haviam cortado a árvore restando apenas o toco. Uma sensação como aquela vez que fui buscar a bicicleta trancada na frente do supermercado mas nunca mais a vi: ela havia sido furtada. Mesmo sem a árvore originária e ideal prossegui com meu ensaio fotográfico, na verdade até com mais afinco, como querendo vingar ou repor a primeira árvore perdida através do maior número e diversidade de outras fotografadas. E, sabendo que até as árvores secas são suprimidas o projeto me pareceu urgente. Ewerton Belico, outro dia falando mesmo sobre o meu trabalho e o da Dri Santana, notou que a gente referenciava objetos na “iminência de desaparecerem”: eu precisava andar, ou correr. Por exemplo, os asfaltos tortos da Avenida Amazonas estão sendo agora recapeados.

Com as árvores secas eu procurava por um ponto final. As árvores na cidade, que são um signo de longevidade e resistência vital como que me diziam um NÃO. Na primavera e começo do verão, quando aqui as chuvas vão se avolumando e tornando mais e mais verdinha a paisagem, as árvores mortas se contrastam do seu ao redor, escuras como se retiradas do inverno europeu. Árvores rígidas enquanto as vivas se balançam e dançam com o vento.

+++VOLTA+++RE.VOLTA+++RE.VIR.A.VOLTA+++

Cientistas de Belo Horizonte, através de análises de cortes de troncos de árvores da cidade foram capazes de, através da análise da coloração e composição dos anéis dos troncos, determinar as mudanças atmosféricas que ocorreram na história da cidade, ano após ano, estação após estação. A partir dessas análises é possível determinar por exemplo o índice de monóxido de carbono em 1967 ou 1985, ou como foi o verão em certos anos, se mais secos ou mais úmidos, enfim, um registro preciso da história da atmosfera da cidade, a história do seu clima.

Eu tenho a impressão que quando a gente passa por uma árvore ela nos vê. Eu tenho a impressão de que quando tocamos numa árvore com a mão ela também nos toca. Eu nunca consegui entrar na questão que pergunta se uma árvore que caiu na floresta e ninguém viu, se ela realmente caiu. Pois, as outras árvores não viram? E os arbustos seus parentes não veem? Os pássaros que vivem nelas e que possuem par de olhos melhores que os nossos, não viram? E os macacos que as disputam não podem ter visto? –  por isso não compreendo o problema.

Projeto – processo – projeto

Relembrar outros começos

Levaram minha bicicleta mais nova, de alumínio, que comprei há 10 anos atrás e que guardo muitas recordações de vida (e tombos). Foi com ela que passei a usar a bicicleta como transporte urbano. Estava com o guidão e selim ajustados exatamente para meu corpo, conhecia todas as suas manhas. No trabalho das árvores, como frequentemente em outros, andar de bicicleta é a melhor forma: não poderia ser feito de carro que não dá para estacionar quando simplesmente se quer, nem ver com calma a rua que se passa, além de que as distâncias não serão tão cansativas como a pé. Como não posso trabalhar sem bicicleta arrumei minha antiga Monark Mountain-bike, de ferro dos anos 1990. O quadro chegou a ser interferido por mim com recortes de vinil colorido e adesivado alguns anos atrás. Ao rever as experimentações com as cores do vinil sobre o suporte dos longos tubos achei quase extravagante mas ainda aceitável. Andar de bicicleta é interferir na cidade, interferir esteticamente na bicicleta é interferir esteticamente na cidade.

“Quando Exu diz um não, ele diz dois sins”

Olhando o tronco cortado, o toco, o topo do corte, eu pensei num plano de trabalho. Seria possível preparar a superfície de troncos como esses para imprimir gravuras, xilogravuras de topo, bastaria lixá-las apropriadamente esses troncos e imprimir.

Os tocos, não sempre, mas geralmente são rodeados por terra. As mangueiras, como outras árvores enquanto vivas não deixam que nasçam outras plantas ao seu redor. Mas com a primeira chuva e abertura ao sol passam a nascer plantas ruderalis em volta do toco morto. São pequenas ervas, pancs, mato, capim tiririca, caruru, beldroega, amora, figueira e até algumas flores, e até outras árvores que são plantadas pelo vento, pela enxurrada da chuva ou por um passarinho.

Eu tinha um projeto de fazer vasos de cimento para vender mudas ornamentais. Fiz poucos, ainda não sabia como lixar o cimento depois de seco e a tosquice não ia bem, …plantei aloés (babosas), espadas de São Jorge, ou suculentas fáceis de reproduzir as mudas, mas eu não encontrava um porquê fazer vasos de cimento pesados.

Passado um tempo agora sei que plantas eu devo colocar nos próximos vasos: essas plantinhas que encontramos nas ranhuras da cidade, do tipo das citadas acima. Eu devo retirar as mudas da cidade (o que não é fácil como pode parecer: muitas dessas plantinhas possuem raízes muito firmes entranhadas entre pedras de forma que quando as puxamos retiramos apenas a parte do caule e suas folhas, arrebentando antes da raiz: daí que a parte que você arrancou morre na sua mão mas a raiz partida volta a germinar depois: essas plantas são aferradas à rua, resistem a transplantes e domesticação). A ideia é que se forme uma coleção, um pequeno jardim com as plantas comuns da cidade, confundindo o espaço público com o privado (a casa e a rua), entre o não-reconhecido e o reconhecido como “estético” e “artístico”, cultura e naturalidade.

E, assim que, terminando o LAB-cultural 2023, ao invés de terminar, começa de novo. Comecei com planos, termino (termino?) com planos.

nota:

1. O título deste post vem de um ensinamento transmitido pelo mestre Nego Bispo. “Começo, meio, começo” define o entendimento sobre o trajeto cíclico do tempo por parte de quilombolas e povos politeístas, em contraste e repúdio ao “começo-meio-fim”, linear, monoteísta, que vê o valor das coisas fora delas. O Lab-cultural convidou e contratou Nego Bispo para uma masterclass voltada para nós, o que eu gostaria de agradecer para sempre. Poucos dias depois, de forma inesperada, soubemos de sua partida para o plano da ancestralidade.