21 de dezembro de 2023

MARIPOUSAR OU 18 DE AGOSTO DE 2023

bruni emanuele

Casulo

Casulo-segredo II

Maripousar

[Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Para mim os dias têm sido de amor.]

            A casa há muito estava fechada. Em seu interior, tudo estava do jeitinho que eu gostaria que estivesse (dentro do possível): o chão varrido, as roupas limpas, os móveis limpos. Não batia luz direta, e para mim estava tudo bem. Eu precisava mesmo era me proteger, me recolher.

            Foi um tempo em que tudo esteve suspenso e eu, sinceramente, não sentia necessidade alguma de puxar de volta a mim. Invadide de alguma maneira sem medida, eu, largarta, tinha medo do voo por vir, e passei a evitar sofrer evitando viver. Mas estava tudo como deveria estar.

            Contudo, eu não deixava de me incomodar com as coisas às quais uma casa, tão definitivamente fechada por tanto tempo, está submetida. Com o tempo, o mofo foi tomando conta, alastrando-se pelas superfícies. A ferrugem também não deu trégua: tudo foi sendo, pouco a pouco, corroído.

            Curioso é que não me faltavam forças para evitá-lo, visto que o recolhimento nos nutre de uma força sem brilho e apática, mas ainda força. Limpava, secava, sílica em tudo e aceitação dos danos, com o amor que me sobrara. Fui aceitando o ônus, pois em tudo há. Não há borboleta ou mariposa que, antes de alçar voo rumo a pontos de luz, não tenha sido ovo, larva, pupa. Estava tudo como deveria estar.

            Vez ou outra, tocavam a campainha. Molenga, eu me arrastava até lá e atendia por detrás da porta, e ali me mantinha por algum tempo. Me dispunha a ouvir o que tinham a me dizer, apesar do medo, e pacientemente ouvia. Me calava e só ouvia, o que diz muito sobre mim. Ponderava por detrás da minha fortaleza, fugia da exposição. Estava tudo como deveria estar.

            Por fim, eu abria – ou não – uma frestinha muito tímida, um quase-nada de espaço disposto ao contato. Dependendo de quem fosse do outro lado, eu acreditava que talvez pudesse ser alguém a abrir cortinas e janelas. O tempo desse “achar”, no entanto, era elástico: às vezes, ele durava semanas; outras, alguns breves instantes.

            Sempre segui mornamente esperando, enquanto paradoxalmente me enterrava mais fundo na trama que tecia ao redor de mim, e também a mim e à outra casa que habito em meus mofo e ferrugem. Aprendi que a conformação era boa parcela de tudo o que me manteria de pé. Estava tudo como deveria estar.

            Por fim, fui entendendo. E gostei de poder tentar entender algo do mundo para além da medida limitada do que cabia e preenchia o interior de meu casulo. Há tanto eu não ia lá fora arejar os pulmões… Me vi surpreendide com a vida brincalhona e torta. Estava tudo como deveria estar.

            Aos poucos – mesmo sem a luz entrando livremente e o vento circulando fresco por entre as frestas, pernas, superfícies de pele à mostra, cabelos bagunçados de corrida ágil e dormida morna –, as coisas estão mudando. Elu me indicou uma receita para remover ferrugem e mofo de maneira quase definitiva. Estou ainda testando, mas sinto que pode ser esta a solução. Já sinto amor em cada canto, não apenas o impulso orgânico-quase-mecânico de manutenção do casulo. Está tudo como deveria estar.  

            Tenho medo de me desconhecer… Demorei tanto a poder me ver tão honesta e amorosamente quanto agora. Queria permanecer em casa, ainda que acabasse cedendo à luz: seria minha única concessão, a única e a mais dolorosa. Mas valeria a pena, né? Achei que, enfim, cortinas, janelas e tramas poderiam sentir mãos ágeis a abri-las. E senti medo. Sinto. Menos do que já senti, mas, ainda assim, cortante. E cortar o que não cabe é bom. Cortei, e pude mirar no no espelho do sangue, suor e rio que escorreu a mim.

Algo não está mais como deveria estar: está melhor.