11 de outubro de 2023

Na ginga sobre e sob espirais multitemporais e multimatéria, uma escrevivência cuir

bruni emanuele

Casulo-segredo II

LAB23

Maripousar

Quando a escrita me interpela, me toma de assalto uma sensação que é uma mistura de medo, ansiedade e um desejo tão urgente quanto primitivo. Primitivo, sim, pois ele me surge e irrompe das entranhas, abre um redemoinho na boca do estômago que me consome inteire, desnorteia-me ao me abrir toda uma rosa dos ventos de possibilidades cardeais, e eu só encontro sossego quando enfim me sento, pronte e disposte ao ato de escrever. Cada vez mais recorrentemente, o tema da escrita, do lugar que ela ocupa nos fazeres e construções crítico-poéticas de indivíduos e suas corpas marcadas pela diferença – abarcando artistas cuir, transvestigêneres, não-bináries, mulheres negras, indígenas e outras existências contra-hegemônicas – nos mundos das artes e na sociedade moderno-colonial emerge como central para discussões várias, tanto a partir de indivíduos a(r)tivistas quanto por parte de instituições e coletivos.
Eu, como multiartista, editor, escritor e pesquisador da palavra, do livro e das visualidades, tenho na expressão escrita, na poética da palavra uma fonte e uma matéria de cosimento de outras matérias e narrativas a minha própria matéria, e por meio disso tenho tido há uns anos o privilégio de experimentar consciente o despertar, por meio de minha poética e em comunidade, o exercício de uma escrevivência cuir – uma escrita translinguagens tecida junto ao/a partir do corpo e de umbigo plantado no trânsito, nas brechas, nas fissuras na história dada como única e, por consequência, nos arquivos.
Para o LAB Cultural 2023, como já partilhei um pouco antes, trouxe o segundo volume de meu work in progress de livros-performance denominado Casulos-segredo, o Casulo-segredo II: curumim-cunhatã erê. Na concepção e na tessitura cotidiana desse corpo-livro que reverberará, adiante, mais um de meus ritos de passagem/transições (aquela da criança que eu reencontrei menine nos arquivos de minha mãe), a presença da escrita é constante, cortante, mas também reconfortante e encruza de possibilidades e manutenção dos encontros. Ter iniciado a imersão nesta pesquisa durante todo o pós-operatório de minha mastectomia – meu mais recente e poderoso rito de transição – e ter na escrita-escrevivência o principal meio de produção e reflexão poética e crítica diante de limitações físicas me lembrou o quanto a palavra tem sido desde sempre minha principal forma de acontecer no mundo. De dialogar com o mundo e me fazer em relação. De amaciar os trânsitos – os escolhidos, os forçados, todos eles.
Tenho mantido, pela primeira vez num caderninho bem destinado “só” a isso, um diário de transições de agora, de transições passadas, de transições de sentidos que tenho encontrado imergindo nos arquivos fotográficos e memorialísticos/afetivos de minha infância e retomando a mim mesme daquele tempo.
A seguir, trago um pequeno trecho-cápsula das notas que tenho tomado a grafite sobre papel macio, seguido de um trabalho meu de pintura em nanquim baseado em uma fotoperformance que fiz enquanto estava imerse e envolte em outras transições. Ambos, com uma lacuna de 2 anos entre eles, prenunciam-se mutuamente, se irmanam, tecem no hoje um sentido junto.

***

I
Ensaiar é ensinar ao corpo, à língua
Que eles podem alembrar
Ensaiei e ensaio mil metamorfoses e transições
Após a última, minhas costas se esqueceram
Do nó que havia no meio dela
Como se fosse garganta engasgada
Com dois seixos pesados