A urgência da urgência – Reflexões sobre o lixo nas favelas

Se o lixo é o problema, nós somos a solução.

 

Sem a presença do ser humano não existiria lixo, ou seja, só há lixo em determinado lugar pois por ali também passaram humanos (não confundir com porcos). É por isso que a responsabilidade sobre essa ‘produção’ (ou descarte) e suas consequências é inteiramente nossa. O futuro da humanidade depende do homem, sendo a única espécie de animais capaz de colocar em risco não só a própria sobrevivência e perpetuação, como ademais ameaçar todo o planeta e sua natureza maravilhosa a partir de suas dinâmicas desenfreadas de exploração, produção, consumo e descarte, com poluição para todos os lados no processo.

“Lixo”, para o sistema, é todo o resíduo da produção humana e do seu consumo nos moldes atuais, sendo um termo generalista que foi imposto e que consegue agrupar os mais diferentes tipos de resíduos, simplesmente pela característica de ‘não servirem mais’ e pela destinação comum que ‘devem’ receber (segundo o sistema estabelecido) – uma sacola plástica com destino à lixeira da rua, que cumpre a função de nos isentar daquilo que somos responsáveis. Essa dimensão conceitual estabelecida pela ignorância do problema é fundamental para a construção do cenário de catástrofe ambiental que vivemos rumo ao colapso, ocasionado também pelo lixo e a forma como o descartamos nos tempos atuais.

Colocamos o ‘lixo para fora’ (de casa) na intenção de não manter e nem acumular ‘materiais inúteis’, ou seja, que não têm mais serventia e que geram volume desnecessário, ou matéria orgânica em decomposição, que pode causar mau cheiro e outras complicações mais sérias. Entretanto, apesar de não devermos de fato manter o lixo no ambiente doméstico (sem o devido tratamento e separação), somos educados a nos bastar com a solução de ‘colocar pra fora’, numa relação egoísta que se satisfaz por dar como resolvido um problema a partir do momento que não se tem mais contato com ele, como quem varre a sujeira pra debaixo do tapete ou como diz o ditado “se os olhos não vêem, o coração não sente”.

Ao ‘colocar o lixo pra fora’, somos condicionados a nos isentar da responsabilidade sobre aquele resíduo que geramos, transferindo os seus cuidados às estruturas de coleta oferecidas. O sistema faz com que a sensação de responsabilidade sobre o lixo seja percebida somente dentro das residências, trazendo no descarte uma falsa impressão de ‘dever cumprido’, ou em bom português de ‘não é mais problema meu’, na esperança do serviço de coleta levar para ‘sabe-se lá onde’, desde que seja longe da minha porta e dos meus sentidos.

 

Até aqui, estamos falando de uma situação que é geral: no asfalto, na quebrada, no bairro e no condomínio. Do que se trata a urgência da urgência?

 

O contexto das favelas, como observamos também no território do Morro do Papagaio, mostra um cenário ainda mais complexo e urgente do que esse apresentado até então. Apesar de serem pessoas acometidas ao mesmo tipo de padrão comportamental de descarte (juntar o lixo produzido em casa e colocar para fora), muitas vezes o recolhimento do sistema de coleta não consegue escoar essa alta produção de resíduos sólidos do território. O lixo pode ficar acumulado durante horas, se não dias, nas ruas e na porta das casas.

Simplesmente colocar o lixo na rua e esperar que a coleta ‘leve embora’ não é a melhor solução para os resíduos sólidos, mas as consequências que a permanência do lixo nas ruas apertadas da comunidade podem causar são problemas ainda mais sérios. O alto adensamento habitacional que resulta nos espaços reduzidos das favelas faz com que o acúmulo de lixo traga consequências que vão bem além da ‘poluição visual’ e que ameaçam a qualidade de vida e a saúde das pessoas e animais que habitam os aglomerados.

O acúmulo de lixo, além de ocasionar o mau cheiro e a emissão de gases poluentes e de efeito estufa (como o gás metano e o gás sulfídrico), se torna um contexto ideal para a proliferação de potenciais vetores de doenças, como baratas, moscas, larvas, ratos, escorpiões, formigas, mosquitos, além de fungos, bactérias e outros microorganismos. Entre as doenças relacionadas ao lixo doméstico, destacamos: dengue, cisticercose, cólera, disenteria, febre tifoide, filariose, giardíase, leishmaniose, leptospirose, peste bubônica, salmonelose, toxoplasmose, tracoma, triquinose, hepatite A, dermatite de contato, tétano, verminoses, entre outras.

O descarte irregular e o acúmulo de lixo geram problemas sanitários não só para quem contribui para esse quadro, depositando sua sacola de lixo no lugar e na hora errada, mas para a comunidade como um todo, até aqueles que respeitam a boa conduta relacionada ao descarte, trazendo também consequências aos bairros do entorno e à toda a sociedade local. Além dos vetores comentados, o grande número de animais que vivem soltos nas ruas e vielas da favela, constantemente fuçando no lixo, trazem riscos não só para os próprios bichinhos, mas também aos humanos que venham a ter contato, crianças e adultos, e aos outros animais que vivem também dentro das casas.

 

Apesar do visível acúmulo de lixo pelas ruas e vielas da quebrada, a comunidade do Morro do Papagaio conta com serviço de coleta de resíduos sólidos, oferecido pela prefeitura de Belo Horizonte por meio da SLU. O agravamento da situação se dá, sobretudo, pelo fato de moradores não estarem habituados aos locais adequados para o descarte do lixo doméstico, e nem aos horários estabelecidos – muitas vezes colocam o lixo pra fora depois da coleta já ter passado.

O lixo colocado em local inapropriado, além das complicações descritas acima, também serve de contraexemplo para as pessoas que chegam depois e julgam, devido ao acúmulo de sacolas, que ali seria um local adequado para isso. É importante salientar que, muitas vezes, mesmo que esteja escrito na parede com clareza e destaque que naquele local não deve ser colocado lixo, formam-se pilhas e mais pilhas de rejeitos.

 

Quando lemos e ouvimos a respeito das urgências climáticas, a depender dos privilégios de quem fala, muitas vezes vemos uma preocupação a respeito do futuro e o que se espera da Terra para as próximas gerações. Do outro lado, para as pessoas que não possuem privilégios, como nas favelas e periferias pelo Brasil afora, questões climáticas relativas aos rejeitos (lixo e esgoto) são preocupações urgentes do presente, já que enfrentam uma situação sanitária de risco real no ‘aqui e agora’.

 

Essa discussão contribuiu para o surgimento do termo Racismo Ambiental, que está em voga nos tempos atuais:

“Racismo ambiental é um termo utilizado para descrever a injustiça ambiental em contexto racializado. Refere-se a como comunidades de minorias étnicas são sistematicamente submetidas a situações de degradação ambiental.”

 

Diante disso, percebemos que uma das questões relacionadas ao lixo que mais urge na comunidade é a necessidade de tirar do convívio dos moradores as pilhas de lixo que ali se acumulam e que trazem riscos à saúde de milhares de pessoas. Devemos levar isso em consideração e dar a devida prioridade ao estabelecimento do hábito e da disciplina a respeito dos locais e do horário adequados ao descarte, para assim evitar ou reduzir drasticamente o acúmulo irregular de sacolas de lixo num primeiro momento. Se o lixo gerado por toda a humanidade é uma urgência global, o lixo que se acumula nas favelas é a urgência da urgência para quem ali habita, e precisa ser solucionado, ou amenizado, o quanto antes.

 

É também uma oportunidade importante de aproveitar o ensejo a respeito da mudança de hábitos de descarte para, além disso, conscientizar os moradores sobre outras lógicas de aproveitamento dos resíduos e planejar soluções de maior aproveitamento ecológico. Enfrentando um problema de cada vez, em ordem de urgência, e dando um passo depois do outro, conseguiremos ir mais longe. Se no curto prazo conseguirmos adequar o hábito dos moradores quanto à hora e ao local de descarte, no médio e longo prazo vamos conseguir com mais facilidade emplacar outras soluções que serão estruturadas no decorrer do programa Urbe Urge, como a separação do lixo reciclável, o aproveitamento de lixo orgânico por meio de compostagem e/ou geração de biogás, instituição de cooperativas comunitárias, hortas comunitárias, entre outras possibilidades que serão estudadas durante o processo.

Para salvar o planeta, vamos precisar de todes, todas e todos. A soma das mudanças locais vai se multiplicar para mudanças globais: de pessoa em pessoa, de casa em casa, de comunidade em comunidade, devagar e sempre, vamos buscando a mudança que precisamos ver no mundo. Podemos contar com você?

Venha conosco, e ‘entre no clima’ também!

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