Contextualizando o Kilombo Souza

Contextualizando a trajetório do Kilombo Souza

‘’O Sankofa normalmente aparece representado com duas cabeças e em uma tradução literal para o português seria algo como ‘’volte e pegue’’. Uma das interpretações possíveis para essa iconografia é a representação da busca pela ancestralidade, ou ainda, em uma perspectiva afrofuturista de que hoje, no presente, somos o futuro de alguém (que esteve no passado) e seremos o passado de alguém (que estará no futuro). O pássaro se apresenta com os pés fincados no presente, dividindo as duas cabeças entre passado e futuro. Uma de suas cabeças mira o passado e busca o necessário (tecnologias, saberes, espiritualidade, recordações, memórias), enquanto a outra vislumbra futuros possíveis’’.

O Kilombo Família Souza, localizado na rua Teixeira Soares, 895 a 1005,  bairro de Santa Tereza/Belo Horizonte, é o quarto quilombo em contexto urbano de Belo Horizonte reconhecido pela Fundação Cultural Palmares (FCP). A comunidade Souza compartilha esse título com as comunidades tradicionais Kilombu Manzo Ngunzo Kaiango, Comunidade Quilombola de Mangueiras e Quilombo dos Luízes.

O Kilombo Souza foi reconhecido como terra quilombola em 16 de julho de 2019 pela portaria da Fundação Cultural nº 126. A partir de então, o Kilombo Família Souza foi incluído no Livro de Cadastro Geral nº 019 sob o nº 2.766 às fls. 188. Em âmbito municipal, foi registrado enquanto Patrimônio Cultural Imaterial de Belo Horizonte, por decisão unânime do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural (CDPCM-BH), em sessão ordinária de 18 de novembro de 2020, tendo sido inscrito no Livro de Registros dos Lugares.

Contextualização histórica

O Kilombo Souza foi fundado pela matriarca e patriarca, Elisa de Souza e Petronillo de Souza, nascidos na Freguesia de Angustura e São José d’Além Parahyba, respectivamente. Elisa filha de Cezária Teixeira e José Teixeira, nascida sob a égide da Lei do Ventre Livre. Já Petronillo viveu temporariamente na condição de escravizado, tendo herdado esta condição de sua mãe Joanna, mulher negra escravizada em uma das fazendas de Joaquim Luiz de Souza Breves, um ‘’famoso’’ traficante de sujeitos africanos da cidade de São José d’Além Parahyba. Elisa e Petronillo se casaram em 1902 na cidade de São José d’Além Parahyba e dessa união nasceram sete filhos, sendo eles: Sebastiana, Maria, Eurides, Eurico, Odette, José e Joaquim. Após oito anos migrando entre vários territórios, no ano de 1910, Elisa, Petronillo e família se mudam para Belo Horizonte. Infelizmente, o acervo pessoal do Kilombo Família Souza não possui nenhum registro fotográfico de Petronillo.

Dona Elisa de Souza em 1927.  Fonte: acervo pessoal do Kilombo Família Souza.

A migração para Belo Horizonte pode ser associada a uma busca de novas possibilidades de viver e fazer-se, onde adquirem um território, comprado com registro de compra e venda lavrado em cartório, no bairro de Santa Tereza. Território este onde a família Souza se encontra, após 111 anos,  até os dias de hoje. Ao chegarem em Belo Horizonte, começam a desenvolver diversas práticas de manejo do território, relacionadas ao cuidado e trato com a terra, produção agrícola e a criação de víveres, como suínos e galinhas, exportados para cidades como o Rio de Janeiro. Essas práticas eram a principal fonte de renda da família, além dos trabalhos desenvolvidos por Petronillo de Souza com a carpintaria, tendo relatos orais de membros da família Souza que contam sobre a participação do patriarca como carpinteiro esculpindo as portas da ex-Catedral de Nossa Senhora da Boa Viagem.

A vinda para Belo Horizonte pode ser interpretada como essa necessidade de encontro de uma identidade e construção de uma subjetividade outra, para além da de ex-cativo. Deslocar-se, mudar-se de São José d’Além Parahyba denota a necessidade de desligar-se de um passado de opressão e violência, encontrando em Belo Horizonte outras possibilidades de vida. Ou seja, é a busca por viver e fazer-se a partir de outros modos de estar e perceber o mundo.

É importante refletir que ‘’o quilombo surge do fato histórico que é a fuga. É o ato primeiro do homem que não reconhece que é propriedade de outro, daí a importância da migração, da busca do território’’ (ÔRÍ, 1989). Migrar mais do que uma mudança territorial, significa para os quilombolas a possibilidade de se encontrar consigo mesmo e com sua ancestralidade. ‘’O fundamento do quilombo é a terra. O homem se identificando profundamente com a terra’’ (ÔRÍ, 1989). Como podemos ver, na fala da historiadora Beatriz Nascimento, narradora no filme Ôri (1989) da diretora Raquel Gerber, o quilombo é muito mais que um espaço físico:

‘’O quilombo é uma história… Essa palavra tem uma história e também tem uma tipologia de acordo com a região e de acordo com a ordem do tempo; sua relação com o território. É importante ver que hoje o quilombo traz para gente, não mais o território geográfico, mas o território a nível de uma simbologia. Nós somos homens, temos direito ao território, à terra. Várias e várias parte da minha história me contam que eu tenho direito ao espaço que eu ocupo na nação e é isso que Palmares está dizendo naquele momento. Eu tenho direito a um espaço que eu ocupo dentro desse sistema, dentro dessa nação, dentro deste limite geográfico que é a capitania de Pernambuco. A terra é o meu quilombo, meu espaço é o meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Onde eu estou, eu sou’’

A compra dos lotes coloniais nº41 e nº42 da ex-Colônia Américo Werneck, pode ser interpretado enquanto essa necessidade de resgate de uma identidade, a construção de alternativas para além de uma interpretação rasa que vai entender a vinda para a capital somente enquanto uma necessidade de encontrar emprego, ou ainda, que a escolha dos lotes nº 41 e nº 42 se traduz na sujeição de comprar o que sobrou, o que mais ninguém gostaria de ter comprado, pelas dificuldades topográficas do terreno, pode ser lugar com pouca relevância para o mercado imobiliário, com poucas possibilidades de gerar renda fundiária.

Essas percepções destituem esses sujeitos do lugares de atores que para além do território do Kilombo Souza, contribuíram também com a conformação da cidade de Belo Horizonte. É importante refletir que esse processo de resgate da memória nos permite examinar, quando não perceber, a capacidade desses sujeitos de definirem e pensarem sobre o espaço que ocupam, contrariando o senso comum que vai interpretar esses processos enquanto somente — mais ou menos capazes —, não reconhecendo, que enquanto sujeitos de ação, suas escolhas não estão menos dotadas de um senso crítico, como podemos perceber na decisão de Petronillo de Souza e Elisa de Souza de pagarem pelo terreno onde hoje está abrigado o Kilombo Família Souza e seus descendentes.

Os relatos orais de membros da comunidade, nos contam ainda que eles plantavam diversos tipos de plantas, árvores e ervas medicinais, podendo citar: mandioca,  goiaba, quiabo, jabuticaba, bananas caturra e prata, pimenta do reino, canela, cravo, louro, mexerica, limão, cana-de-açúcar caiana. Além dessas plantações, a comunidade relata, em memória, que também havia mandioca, batata-doce, quiabo, cará, beterraba, cenoura, cenoura baroa, chuchu, feijão, milho; verduras como taioba, couve, alface, almeirão; diversas frutas, dentre elas mangas ubá, coquinho, sapatinha e espada, maracujá doce, ameixa, acerola e pitanga preta.

As ervas medicinais também faziam parte da produção agrícola da família, e assim fabricavam remédios caseiros utilizando, por exemplo, o fumo para tratamento de caxumba. Também havia no quintal funcho, lágrima de nossa senhora, picão, dentre outras ervas medicinais.

Pátio, caminhos e horta no Kilombo Souza em 2020. Fonte: Léo Tafuri

 

Devido ao processo sistemático de perda do território, atualmente não existe mais a prática de plantar e colher como fonte geradora de renda, ainda que seus membros (Maria Adélia, Simone, Marquinhos e tantas(os) outras(os) continuem com a prática como forma de subsistência. Atualmente, podemos perceber a presença de diversas árvores e plantas, algumas do tempo da fundação do Kilombo Souza, tais como as bananeiras. Há ainda a presença de pés de mamão, manga, romã, limão sicialiano, canela, mandioca, jaca, uvas, bananas, pitanga, amora, graviola, abacate, laranja, mexerica, camu-camu e muitas outras hortaliças. 

Proposta do Coletivo

É a partir dessa potência ancestral, que a proposta deste projeto surge, tendo como viés o processo agroecológico já experimentado no Kilombo Souza, vislumbrando um processo onde essas práticas possam ser ampliadas fortalecendo a soberania alimentar desta e de outras comunidades tradicionais e originárias. Nossa proposta vai de encontro diretamente com o item 11 da Agenda 30 da ONU, ‘’Cidades e Comunidades Sustentáveis’’, uma vez que a proposta pretende entrelaçar um processo que considere a gestão e reaproveitamento da água, a produção de alimentos e a compostagem, produzindo no território do Kilombo Souza um organismo socioambiental de produção e gestão de alimentos e recursos hídricos.

É uma proposta com potencial, uma vez, que o que for experimentado no Kilombo Família Souza, poderá ser reaplicado, guardando as proporções, escalas  e contextos, em outros lugares. A proposta vai explorar o aproveitamento da água da chuva, assim como o melhor uso e  aproveitamento de seu terreno, a partir de uma ecologia de integração do território, processo já experimentado pelos fundadores do quilombo, que fizeram usos do território condizentes com a perspectiva ambiental, visto na dinâmica e traçados originais do quilombo, que respeitava o percurso da água e a topografia. A forma como a proposta será tratada perpassa por formação e trocas entre saberes da tecnologia ancestral e contemporâneas, a considerar os princípios técnicos dos seus ancestrais, desenvolvendo as atividades de forma horizontal e preferencialmente através de oficina, buscando sempre a socialização dos saberes. 

Culturas alimentícias produzidas em 2021 no Kilombo Souza. Fonte: Daniel Menezes

 

Algumas práticas são centenárias, outras mais recentes, o que denota a necessidade de interpretar e tratar os quilombos enquanto manifestações socioculturais que se atualizam e caminham para o futuro, sempre um continuum da história, reconfigurando-se sem perder sua essência original e fundadora. Apesar de tanto tempo de história, a memória dos ancestrais, das práticas primeiras, da luta e de toda a história construída ao longo dos anos no Kilombo da Família Souza segue viva nos mais jovens, tal como uma referência de horizonte a ser seguido, encontrando possibilidades outras de futuro. Um futuro que não seja somente de luta e resistência, mas de dignidade e direitos garantidos, percepções  de futuro que remetem ao ideograma Sankofa, apresentado no começo do texto. 

Futuro que a contragosto de investidas desonestas e um sistema social deslegitimador de subjetividades e existências tem se concretizado e se mostrado sólido, sobretudo, na presença e na participação daqueles que descendem de Petronillo de Souza e Elisa de Souza, mesmo após mais de um século. Parafraseando fala da historiadora Maria Beatriz Nascimento, ‘’a memória são conteúdos de um continente, de sua vida, de sua história, do seu passado. Como se o corpo fosse o documento’’ (ÔRÍ, 1989). Os quilombos são pequenas áfricas em diásporas pelo mundo e os Estados desse grande continente são cada membro que o compõem, tendo inscrito em seus corpos essa memória ancestral. “A invisibilidade está na raiz da perda da identidade’’ (ÔRÍ, 1989), portanto, não podemos permitir que essa memória quilombola no bairro de Santa Tereza seja apagada da história da cidade de Belo Horizonte pela ganância da especulação imobiliária que atua em ‘’processos de apagamento voluntário – porque naturalizado – da existência simbólica da população de origem africana e sua experiência diaspórica como agentes da produção do espaço’’ (PEREIRA, 2019, p.11-12), cujo quais foi imposta uma ‘’cidade planejada e construída a partir de referências culturais europeias’’ (PEREIRA, 2019, p.11-12).

    Agradecemos por nos acompanharem até aqui.

 

Referências bibliográficas

ÔRÍ.  Direção:  Raquel  Gerber; Roteiro: Maria Beatriz Nascimento; Edição: Renato Neiva Moreira; Elenco: Maria Beatriz Nascimento. 1989. Vídeo,  formato  digital, colorido.

PEREIRA, J. A. Pós-emancipação, racismo estrutural e produção de esquecimento acerca da população africanas/os e descendentes em narrativas de memória das cidades: o caso de Belo Horizonte. In: 9º ENCONTRO – ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL, 2019, Florianópolis. Anais… Florianópolis (UFSC), 15p. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/.

PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Estudos para dossiê de registro do Kilombo Família Souza enquanto Patrimônio Cultural Imaterial de Belo Horizonte. 2020.

PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Quilombo Souza é registrado como Patrimônio Cultural Imaterial de BH. <https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/quilombo-souza-e-registrado-como-patrimonio-cultural-imaterial-de-bh> Acesso em 17/06/2021.

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