“E eu não sou uma mulher?”, de Sojourner a Jessica e Lucimélia
E eu não sou uma mulher? em cartaz na Galeria de Arte do BDMG Cultural. Foto: Miguel Aun
17 Ago 2021 |

“E eu não sou uma mulher?”, de Sojourner a Jessica e Lucimélia

Dupla de artistas visuais ocupam a Galeria de Arte do BDMG Cultural com reivindicações e temas caros às mulheres negras

Teresa Cristina
17 Ago 2021 6 Min

“Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”

— Sojourner Truth, 1797-1883


Em 1851, na
Women’s Rights Convention, em Akron, Ohio, Estados Unidos, a ativista pelos direitos das mulheres e abolicionista Sojourner Truth, em um discurso que entrou para história, indagou ao feminismo branco: “Ain’t I a woman?”. Sojourner apontava a incoerente e ilusória tentativa de universalizar experiências, revelando a insatisfação de mulheres negras com o movimento predominantemente encabeçado por mulheres brancas.

 

Hoje, 170 anos depois de Sojourner, mulheres racializadas de todos os cantos do mundo seguem lutando para pautar que suas identidades raciais trazem demandas específicas, diferentes de mulheres brancas. Ainda que oprimidas pelo machismo e sexismo, elas, brancas, estão livres de opressões como o racismo, o que as colocam “à frente” na corrida pela liberdade, contra a repressão.  

Vozes potentes dessa movimentação são as artistas Jessica Lemos e Lucimélia Romão, que juntas ocupam a Galeria de Arte do BDMG Cultural com a mostra “E eu não sou uma mulher?”, que reverbera o questionamento de Sojourner e traz luz a anseios e demandas das mulheres negras. Lucimélia Romão já havia sido destaque no cenário artístico, evidenciando a pauta racial e criticando o genocídio da juventude negra — a cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil, dados do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) — na performance Mil Litros de Preto (a maré está cheia).

Até 5 de setembro, a exposição da dupla promissora de artistas visuais traz para o espaço do BDMG Cultural, e para a plataforma virtual exclusiva mostrasbdmgcultural.org, uma série de fotoperfomances e instalações, pautando temas e questões caras às mulheres negras.

Obra A cinza que foi produzida I, II e III exposta na Galeria de Arte. Foto: Miguel Aun

Jessica é também fotógrafa e Lucimélia performer. As duas se conheceram em São João del Rei, no interior de Minas Gerais, quando estudavam na Universidade Federal de São João del Rei. O primeiro trabalho juntas acontece a partir de uma performance individual de Lucimélia, que, em 2018, realizou o jantar performático “Mulher de Pau”. Para este trabalho, a artista traz a necessidade de muitos recursos, mas a colher de pau como motor da ação; na performance, a mulher negra era comparada ao objeto, considerando ambas enquanto marginalizadas. Nesse mesmo período, Jessica já estudava e trabalhava com a linguagem da fotoperformance, sempre pautando em suas obras as relações políticas e sociais na vida de mulheres negras. A partir dessas similaridades, Lucimélia convidou Jessica para desenvolver a fotoperformance Mulher de Pau, promovendo novas possibilidades de circulação e acesso do público à obra.

“Mulher de Pau é essencial para pensar como nossa sociedade digere o racismo de maneira fácil, fechando os olhos para o extermínio físico e subjetivo da população negra”, diz Lucimélia.

A obra é, hoje, uma das expostas na Galeria de Arte.

Fotoperfomance Mulher de Pau II. Foto: Jessica Lemos

Além do lugar de servidão destinado às mulheres negras, outros temas caros à população feminina preta e parda são trabalhados na mostra. O conceito de colorismo aparece, por exemplo, nos trabalhos Qual a cor da sua pele? e A cinza que foi produzida, criados por Jessica Lemos durante a Residência Artística do Fórum de Fotoperformance, em 2019, no próprio BDMG Cultural. A artista vinha investigando como a variedade de tons de pele afetam as diversas formas de opressão, principalmente na vida das mulheres negras.

“A questão do colorismo e a problemática da confusão identitária que a miscigenação causou na população brasileira é uma temática que me afeta de maneira bastante pessoal, considerando minha origem: uma família miscigenada”, diz Jessica.


E
la decide, então, fotografar diversas mulheres, dando destaque aos tons de suas peles. Esses retratos são apresentados ao lado de espelhos, na instalação Qual a cor da sua pele?, com fones de ouvido para a escuta de relatos em áudio dessas mulheres, criando uma narrativa única e intercalada sobre suas histórias, dores e anseios.

Foi durante essa pesquisa sobre identidade, colorismo e eugenia, realizada por Jessica, que o Boletim de Eugenia foi encontrado. Criado por Renato Kehl em 1932, trata-se de um documento científico que valida e influencia a sociedade a buscar o branqueamento da população. “Parece um absurdo, mas esse projeto recebia incentivo do governo, de médicos e cientistas e circulou não só no Brasil como em toda a América”, narra Jessica. Para o ciclo de Mostras do BDMG Cultural em 2021, Jessica e Lucimélia resolveram trazer o documento por completo, exposto na galeria para ser confrontado pelo pensamento da Sojourner Truth.

Instalação Qual a cor da minha pele? na Galeria de Arte do BDMG Cultural. Foto: Miguel Aun

Novas formas de viver a arte e a luta

O tempo agora é outro. É o que dizem Jessica e Lucimélia ao falarem da experiência de expor em meio a uma pandemia. Para elas, realizar a mostra foi um desafio desde a produção até a abertura. “Tudo mudou”, resumem. A exposição foi toda concebida já no período pandêmico, a partir de reuniões virtuais e ligações. “Agora acontece o reencontro presencial, com todos os protocolos necessários. Esperamos que o público consiga acessar essas duas experiências, a virtual e a presencial”, complementam.

Certamente, todas as linguagens artísticas foram afetadas pela pandemia, com as artes visuais não seriam diferentes: foi necessário criar novas formas de vida. Brilhantemente, Jessica e Lucimélia conduziram o momento até chegar no que a pesquisadora, performer e dramaturga Nina Caetano, que assina o texto de curadoria da mostra, defende ser mais do que contemplação. “Ela [a exposição] produz experiência e pede escuta”, afirma Nina. Presencialmente ou de forma virtual, o mais importante, para as artistas, é que a potência das discussões levantadas pelas obras cheguem ao público: “desejamos que as pessoas consigam refletir sobre os impactos do racismo e das diversas opressões na vida de mulheres negras, para que novas experiências sejam produzidas. É uma cura gradual de nossas gerações”, concluem.

Jessica Lemos e Lucimélia Romão. Foto: Miguel Aun

Ciclo de Mostras 2021

A exposição “E eu não sou uma mulher?” foi selecionada no edital de concorrência pública divulgado em novembro de 2020. No Ciclo de Mostras BDMG Cultural 2021, que começou com mostra da artista visual  Clarice G Lacerda, ainda vão passar por exposições, na Galeria de Arte e em plataforma virtual, a dupla de artistas Affonso Uchoa e Desali e o artista Marc Davi. 


Funcionamento da Galeria de Arte

Seguindo os protocolos de segurança do Estado e do município de Belo Horizonte, a Galeria de Arte funcionará às terças, quintas e sextas-feiras, em horário reduzido, das 10h às 12h e 14h às 17h, com número de visitantes restritos. Para visitação, será necessário a retirada de ingresso gratuito, de acordo com disponibilidade de data e horário, por meio do Sympla


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