Fabulações da Natureza

O caçador e o Curupira

Descendente do povo Macuxi, de Roraima, a escritora e pesquisadora de literatura indígena Julie Dorrico nos aproxima do corpo da terra ao compartilhar uma das inúmeras histórias contadas pelos mais velhos de seu povo. Escutar essas histórias não só é um modo de compreender a importância de uma vida que se tece junto à natureza, mas uma forma de desnaturalizar o conjunto de códigos racistas que pesam sobre os indígenas contemporâneos, como a própria Julie nos ensina.  

Julie Dorrico
26 Mai 2021 4 Min
O caçador e o Curupira

Quando o caçador foi atrás de caça, não achou nada. Nadinha. Desolado já se preparava para voltar para sua comunidade quando viu um outro caçador se aproximando. O caçador estranhou aquele homem porque não se lembrava dele como morador de sua comunidade, nem das vizinhas, mas como a nação Macuxi era grande, podia ser que sua comunidade fosse mais distante. 

– O que faz aqui? Perguntou o velho.

O caçador pensando que era um velho normal falou:

– Vim caçar. 

E os dois foram caçar juntos. O velho perguntou o que o homem comia e ele respondeu: 

– Como anta, porco, viado, mutum, paca. 

Estranhamente na caça mataram muitos todos esses bichos. Na hora de ir embora, o homem viu muita carne, mas muita mesmo. O velho que tinha um panacu pequeno começou a guardar a carne. Foi colocando, colocando, colocando, carne de anta, veado, mutum, paca, todos os tipos de caça couberam naquele panacuzinho. O homem ficou desconfiado, nunca tinha visto aquilo, de tanta carne ser armazenado num recipiente tão pequeno. 

Ao terminar de guardar a carne, o velho disse para o homem: 

– Agora sim você pode ir embora. Eu preciso ir embora também. Mas tem uma coisa para te falar. 

– Pode falar – respondeu desconfiado o homem. 

– Aqui está sua carga. Eu coloquei tudo aqui dentro. Não abra no caminho. Eu separei um pouco de carne para você comer na viagem.

 – Tá bom – respondeu o caçador. 

– Você vai ter muita carne para comer com sua família – aconselhou o velho. E partiram. 

Nos dias de viagem, o homem comeu a caça separada. Mas antes de chegar em casa, acabou. A fome apertou no viajante que ficou intrigado diante da proibição. 

– E agora? Estou com fome. Preciso comer. Por que será que esse velhinho me falou para não abrir o panacu? Eu só quero um pedaço – pensava.

Desceu o panacu das costas, quis abrir imediatamente, mas ficou pensativo se deveria ou não. Titubeou por um tempo, até que a fome falou mais alto. Então ele resolveu abrir para tirar só um pedaço de carne. 

Enquanto ia desatando, sentiu a pressão do cesto, e explodiu! Ele conseguiu abrir o panacu e pegar a carne que queria. 

– Pronto – pensou. – Agora vou colocar essa carne de volta, que saiu com a pressão. 

Quanto mais ele tentava guardar, mais carne aparecia. E quanto mais empurrava, mais caça surgia. O velhinho tinha guardado muita caça. Ficou triste porque percebeu que não conseguiria guardar de volta tudo para levar para sua mulher. 

– Vou levar um pouco e depois volto para buscar o restante – disse. O panacu era muito pequenininho, mesmo assim ele guardou. O restante ele guardou nas árvores para quando voltasse, ainda achasse. 

Chegou na comunidade dizendo que tinha trazido caça, mas que tinha mais e onde buscar. Chamou alguns parentes para ajudar a carregar o restante que ficara para trás. Quando os homens e os parentes chegaram no local onde o homem havia deixado a caça, não tinha mais nada. Nada de carne. Alguém tinha levado tudo. Tudinho. 

A carne que ele levou acabou na comunidade. E nunca mais ele viu aquela caça. Até que um dia o velhinho encontrou o homem: 

– Por que você abriu o panacu? Eu te disse para não abrir, porque você abriu, estragou a carne. Eu estava lá, pertinho de você, quando você decidiu abrir. Eu pensei que você queria carne, mas agora você não vai ter nadinha de carne – dizia o velhinho se sentindo desrespeitado. 

– Não, eu estava com uma fome tremenda. Eu queria tirar só um pedaço para comer. Não queria estragar. Mesmo assim, eu voltei para buscar. Não queria estragar carne não! Apelava o homem ao velho. 

Isso tocou o velhinho, então ele disse que daria carne pra ele, mas que se ele estragasse carne novamente apanharia. Assim o velho foi novamente e caçou para ele. O homem que queria mais caça levou seus parentes para caçar com ele, com medo da ameaça do velho. Mas os outros homens começaram a matar caça por diversão. 

O velho ficou profundamente irritado e foi perguntar por que ele estava estragando caça. Ele tentou justificar que tinha ficado com medo por isso levara seus amigos, mas não teve perdão, levou uma surra, uma surra, mas não matou porque era pra ser só uma surra mesmo. Os amigos agitados disseram: 

– Vamos vamos embora! Se não o velhinho vai nos surrar também! Ele está chateado que estamos caçando por diversão! 

Pegaram o homem e levaram de volta para a comunidade. O velhinho é o Curupira, pai das caças. Ele que fez o primeiro panacu e deu ao homem macuxi. É por isso que até hoje nós temos o panacu para carregar as caças. Também não caçamos por diversão em respeito ao Curupira.

Julie Dorrico


é indígena Macuxi. Doutoranda em Teoria da Literatura na PUC – Rio Grande do Sul, mestre em Estudos Literários e graduada em Letras pela Universidade Federal de Rondônia. É autora do livro “Eu sou Macuxi e outras histórias”, idealizadora do canal no Youtube “Literatura Indígena Contemporânea” e administradora coletiva da página no Instagram @leiamulheresindigenas