Sangue de bairro: re-conhecer o que parecia conhecido
Mostra que reúne acervo visual e sonoro do bairro Nacional, em Contagem, chega a Galeria de Arte BDMG Cultural
“Uma cidade dentro de Contagem”. É assim que começa a matéria do Jornal O Tempo de 2011 sobre o Bairro Nacional, o grande personagem da mostra “Sangue de bairro”, dos artistas Affonso Uchôa e Desali. A exposição, que encerra o Ciclo de Mostras 2021, está para visitação até dia 23 de janeiro na Galeria de Arte do BDMG Cultural e em plataforma virtual.
Idealizada nos anos de 2007 e 2008, o projeto mostra, por meio de fotografias, o olhar da dupla para o bairro em que moram. São imagens que retratam o cotidiano local e que, ao mesmo tempo, exploram particularidades no que parecia comum aos dois. “O trabalho com a série foi desafiar a gente a conhecer algo que, supostamente, conhecíamos, fazer com que se descobrisse um novo bairro”, comenta Affonso Uchôa.
Além das fotos, a mostra conta com o vídeo “Agravo” e a instalação sonora “Rádio Nacional”, desenvolvida por Francisco César e por Lucas Morais. Tudo se compõe, criando uma atmosfera que mescla imagens, sons e percepções sobre o local, registros da intimidade que estabelecem novas relações e experiências. A artista visual Marta Neves entende que o projeto de Affonso e Desali pode ser pensado a partir do ponto vista do cachorro de rua, figura tão emblemática em diferentes bairros: “O cachorro de rua, dentro de casa, continua na rua, é puro bairro. O cachorro olha sem espanto o mundo que quer viver. Pro cachorro tanto faz, ele não mexe com gratidão, resiliência, empoderamento, palavra de ordem. Ele está. Ou você está dentro do lugar ou é mentira”.
A dupla, como esse animal deambulante, atravessa os locais e captura, através das lentes das câmeras, rastros de um cotidiano. São ritos que foram deixados para trás e que reafirmam um pertencimento ao mundos dos dois, ao Nacional.
“O bairro é o meu lugar, o lugar onde eu moro, o lugar onde eu vivo, o lugar onde as minhas amizades foram consolidadas, onde eu também encontro boa parte da minha família. O lugar onde eu me sinto bem, eu aprendi a me sentir bem. Não nasci aqui, mas me encontrei aqui”.
É dessa forma que Affonso enxerga a importância da localidade para a sua trajetória. Ele avalia que seu trabalho artístico passou a fazer sentido quando começou a dialogar com a realidade ao seu redor.
Do cangaço ao Nacional
Perguntado sobre o nome da exposição, Affonso indica que a ideia veio de uma música do grupo Chico Science e Nação Zumbi, também chamada “Sangue de bairro”. A canção menciona diversos nomes de cangaceiros e funciona como um documento de lembrança ao cangaço, movimento caracterizado por uma dualidade entre rebeldia e banditismo. É essa duplicidade que inspira o nome da mostra. Affonso explica que a ambiguidade do cangaço é tão inapreensível que, muitas vezes, as pessoas resumem toda essa complexidade a uma idealização preconceituosa sobre o assunto.
https://youtu.be/rVD0Q2kyYUA
Para ele, o mesmo ocorre nas periferias: “Isso ecoava na nossa relação com o bairro Nacional, em que essa gama de experiência e suas variedade, também tornava o bairro e a periferia, por extensão, como algo também irredutível. Algo tão múltiplo que só pode ser reduzido por algum preconceito ou por alguma cegueira”.
Além disso, a palavra “bairro” tem um significado muito potente para a ligação entre a música e o lugar em que moram. Mais do que uma associação direta, o artista compreende que “sangue de bairro” traz uma ideia de um sangue especificado, classificado e que, portanto, se torna de segunda classe, distinto do sangue dos normais. “Ele também é muito simbólico da experiência da periferia, nos lugares precários, nos lugares pobres. Está sempre sendo classificado e sempre sendo ‘segundizado’”, completa.
A junção disso tudo explica, também, a proposta para as 60 fotos exposta e que compõem a mostra:
“Representa muito do que a gente queria, enquanto criadores de imagem aqui no nossa bairro, misturando, fazendo essas sampleagens, essas associações de sentido desde o cangaço até essa melodia sanguínea, de uma vida de segunda classe, de uma vida sempre classificada, de uma vida sempre particularizada”.
Affonso e Desali
Affonso aponta que, quando a série fotográfica foi pensada, poucas pessoas estavam inclinadas ao trabalho criativo no Bairro Nacional. Nesse sentido, a relação com Desali se consolida, ao entenderem que ambos estavam tomando o mesmo rumo: trabalhar com arte. A fotografia, assim, foi o ponto de encontro.
“A gente reconhece que, por caminhos distintos, estávamos na mesma balada, a fim de fazer a mesma coisa. Depois, a série fomentou nossa amizade, virou um rito, um compartilhamento, algo que fazíamos juntos, virou uma oportunidade de a gente estar em contato e dialogar constantemente”, comenta o artista.
Segundo ele, aquele período representou o início de um processo de democratização do ensino, em especial nas periferias do país, o que promoveu, também, um interesse nas artes, associado a um investimento na área. Quem quisesse poderia, agora, não só estudar, mas, também, tirar o projeto do papel e produzir. A exposição “Sangue de bairro” é exemplo disso. “Nosso trabalho reflete algo que estava acontecendo em Contagem e no Brasil, em que os periféricos estavam se sentindo mais confiantes, mais livres e mais potentes para tomar a arte de assalto e fazer da atividade cultural algo importante para a sua vida”, explica.
A soma de tudo isso é um projeto que conta tanto a intimidade dos dois como a do bairro em que vivem, que traz as nuances do cotidiano local, em um processo de imersão, de conhecer e desbravar aquilo que parecia ser tão comum aos olhos dos dois. Não é à toa que Affonso considera a série de fotografias como um ponto alto na amizade e no diálogo entre os dois. Uma conversa que permitiu a criação artística em uma interlocução constante com a periferia.
Volta ao presencial
“Sangue de bairro” marca a reabertura diária da Galeria de Arte BDMG Cultural, depois de meses em que estava fechada e, mais recentemente, só podendo ser visitada mediante retirada de ingressos. A capacidade no espaço está reduzida, 20 pessoas por vez, mas o que se vê são mudanças e indícios de novos tempos, em especial para a cultura. Affonso enxerga que o setor, junto com o lazer, foram sacrificados dentro do contexto da pandemia. Uma medida que, diante dos números da Covid-19 no país, era necessária, mas que não deixa de ser simbólica: “Viemos de dois anos de crise, em que a primeira relação com a arte e cultura foi de que ela pode ser cortada ou tratada como algo dispensável, meramente acessório”.
Nesse sentido, o artista espera que a retomada das atividades culturais seja um estímulo para relembrar o quanto a arte é importante para enfrentar momentos difíceis e a vida como um todo. “Precisamos de espaço para o imaginário, espaço para a fabulação, espaço para desejar. E a arte e a cultura fornecem isso para nós”.