REVISTA nº Edição comemorativa
A arte como ponte
Em entrevista, a cantora e diretora musical Titane compartilha histórias de sua conexão com a cultura e a música mineira, além de sua relação com o BDMG Cultural
Uma artista do mundo, uma artista de Minas Gerais. Titane nasceu em Oliveira, município do sudoeste mineiro, mas já morou em Belo Horizonte, São Paulo e, atualmente, reside em Lagoa Santa. Intérprete por excelência, sua discografia contabiliza sete álbuns solo e dois DVDs gravados. Em seu repertório, Titane cultiva, em estado híbrido, clássicos da música popular brasileira, compositores contemporâneos, artistas pouco conhecidos e influências da música do interior do país, em especial, do Congado mineiro. Desde o início de sua carreira em 1980, Titane mantém diálogo com diferentes linguagens, dedicando-se à criação de cenas musicais, preparação musical e vocal de elencos, atuando como diretora musical e conduzindo oficinas de criação artística integradas a processos de montagem de espetáculos.
Nesta entrevista, Titane traz um relato temporal e afetuoso da sua trajetória artística e de como se relaciona, enquanto trabalhadora da cultura, com a história do BDMG Cultural. Ao longo dos anos, a artista esteve presente em diversas ações da instituição, como a residência artística LAB Cultural — sua primeira bolsa artística em quatro décadas de carreira —, além de ter atuado em projetos musicais e na curadoria do Prêmio Flávio Henrique, edital que reconhece e premia álbuns de música mineira autoral e independente.
Por conta dessa forte ligação com o BDMG Cultural, Titane foi convidada a assumir a direção cênica do espetáculo musical em comemoração aos 35 anos do instituto, com cantos, tambores e tradição congadeira, celebrado em dezembro, no Grande Teatro do Palácio das Artes.
Titane, você tem 40 anos de carreira. Sua trajetória artística começou nos anos 1980, década em que o BDMG Cultural nasceu. Pode contar um pouco desse período?
O BDMG Cultural é de uma época, assim como eu, em que o setor artístico, mais especificamente o da música, não estava estruturado como está hoje. Na década de 1980, existiam poucos estúdios em Belo Horizonte. Vou me arriscar a citar aqui o estúdio HP, que trabalhava muito com publicidade, e o Bemol, que gravava os discos de todos nós. A história da música em Minas Gerais também pode ser lida através da produção do estúdio Bemol. O BDMG Cultural, na verdade, começou a atuar em um momento em que nós ainda não estávamos tão organizados, em que a gente estava começando a construir nosso público, quando os estúdios estavam começando a surgir, quando não havia uma produção audiovisual que sustentasse as carreiras musicais. De certa forma, o BDMG Cultural veio construindo junto, participando dessa estruturação do nosso setor enquanto uma instituição preocupada em fazer seus diagnósticos e em refletir sobre como atuar ali, digamos assim.
Logo nos primeiros anos do BDMG Cultural, aconteceram alguns projetos dedicados à música, buscando a valorização de compositores e instrumentistas mineiros. Naquele momento, eram mais compositores do que compositoras, mas já havia um pensamento: estruturação de projetos de música, de artes visuais e do próprio conhecimento. Você se lembra qual foi o seu primeiro contato com o BDMG Cultural?
Não foi um contato imediato, não. Naquele momento, realmente já havia esse entendimento da importância dos instrumentistas e compositores, mas não se falava tanto em compositoras porque éramos poucas mulheres na música. A maioria atuava como intérprete, como o meu caso. As compositoras eram muito raras: Mara do Nascimento, Junia Horta, Cláudia Cimbleris — que era arranjadora, trabalhava com orquestras e outras formações complexas, e, por isso, um caso à parte. Então não tinha muita coisa. A gente não tinha leis de incentivo. Éramos nós e o nosso público. É preciso contextualizar isso bem.
Foi apenas na década de 1980 que veio uma primeira geração, que é exatamente a que eu integro, que se fixou em Minas Gerais e consolidou sua carreira musical sem depender da aprovação do eixo Rio-São Paulo. Até então, para fazer música em Minas, você não construía uma carreira como criadora, no sentido de criar uma linguagem sua como intérprete ou como compositora. Até a minha geração, para se viver de música em Minas, você tinha que dar aula, trabalhar com publicidade ou cantar em bares os sucessos do momento. Não tinha essa história de se entender como intérprete, de construir um repertório próprio, inédito, com os compositores da sua geração.
Passei boa parte dos anos 1980 circulando no interior mineiro, porque logo entendi que as rádios não queriam tocar a música que eu queria fazer. Aqui, a gente tinha uma grande exceção, que era a Rádio Inconfidência FM, a Brasileiríssima. A indústria do disco estava investindo no pop e no rock nacional com convicção. E eu tinha o umbigo na música brasileira, desejava os caminhos que passavam, inclusive, pelo interior do país. Eu realmente sempre gostei daqui, fui muito estimulada pela cultura de Minas Gerais. Cantei muito no interior do estado, onde um movimento cultural efervescente ganhava forma. Nós mesmos construíamos os palcos onde queríamos cantar, em todos os lugares aonde queríamos ir.
Naquele tempo, fui muito a São Paulo, mas para trabalhos pontuais. Por exemplo, eu passei a gravar o programa do Rolando Boldrin sistematicamente. Eu era uma atração do Boldrin. Eu ia muito a Goiás, eventualmente ao Nordeste, e atuava muito no interior mineiro, de uma maneira muito empolgada, porque a minha geração se apaixonou por Minas em um momento em que ainda havia um discurso de que aqui não havia futuro. Nós acreditávamos que aqui tinha futuro, sim, mas não tínhamos alguém para nos apoiar. Eu lembro que a primeira vez que uma instituição me chamou atenção foi quando apareceu a Secretaria de Estado da Cultura, porque a gente não acreditava que instituições de espécie alguma fossem capazes de se interessar pela nossa música. O BDMG Cultural foi pioneiro nesse sentido, mas o nosso encontro também demorou um pouco.
A minha adolescência foi no final da ditadura militar, e eu comecei a cantar aos 19 anos dentro da campanha da anistia. Naquele contexto, da nossa parte, havia uma descrença muito grande em todo tipo de instituição. De alguma maneira, isso nos empurrou, nos estimulou para que construíssemos o nosso mundo, para que a gente entendesse que essa construção tinha que ser feita com as nossas mãos — literalmente nós, artistas. A gente fez isso durante muito tempo sem nenhum tipo de apoio mais consistente de outros setores da economia, da comunicação ou mesmo de outros setores públicos. Por isso, estou me surpreendendo ao rever essa história e perceber que o BDMG Cultural já estava ali atuando no final da década de 1980, pioneiramente.
O BDMG Cultural nasce em 1988, mesmo ano da Constituição, em um momento de reabertura e redemocratização. E nasce com um pensamento de desenvolvimento a partir da cultura e de valorização da arte. Acredito que isso dialoga muito com as vertentes artísticas não só da música, mas das artes cênicas, das artes visuais e outras. Como estava a sua vida e a sua carreira naquela época? Você já morava em BH?
Sim, fui para Belo Horizonte em 1976. No mesmo ano, eu me torno aluna do Coltec [Colégio Técnico da UFMG] e não volto mais a morar em Oliveira. Mas nunca perdi a relação com a cidade: minha família é toda de lá, e tenho laços estreitos com o Reinado do Rosário de Oliveira.
A criação do BDMG Cultural coincide com o ano em que eu fui para São Paulo, em 1988. Assinei contrato com a gravadora Eldorado e foi um momento da vida em que eu quis dar uma guinada na carreira mesmo. Já tinha passado dez anos em BH, já tinha me profissionalizado, já tinha me entendido como intérprete, já tinha uma assinatura vocal, já tinha uma assinatura de repertório, de sonoridades… Então, o contrato com a Eldorado aconteceu em um momento em que eu achava que precisava mudar tudo. Achei que era hora de viver situações diferentes das que eu já tinha vivido, em outros contextos, e decidi que São Paulo era o lugar mais estranho aonde eu poderia ir. Então eu fui.
Foi muito bom porque lá eu “consumi” muita cultura. Eu não tinha esse hábito de consumo de produtos culturais: discos, filmes, livros. Fui formada por uma música feita diante de mim, nas grandes festas populares, mais do que por espetáculos.
Quando fui para São Paulo, eu já tinha o meu primeiro disco , que foi produzido no estúdio Bemol. Graças a ele, assinei o contrato com a Eldorado e passei a ser convidada pelo Rolando Boldrin… Isso até o final da vida dele. Era também o auge do meu trabalho com o Klauss Vianna. Eu estava completamente abduzida, no melhor sentido da palavra, pela atividade técnica diária com Klauss.
O teatro entrou na sua vida nessa época ou você já tinha feito algum trabalho nesse campo em Minas Gerais?
Eu só me senti realmente ligada ao teatro quando comecei a trabalhar com o João das Neves, em 1992. Eu tinha uma necessidade muito grande de dizer que eu era da música — e ainda tenho, porque o que mais me move são fundamentos musicais, mais que cênicos.
O Klauss potencializou minha performance em cena. A técnica dele teve implicações definitivas na minha voz, colocou meu corpo todo a serviço da emissão vocal, e isso tem uma dramaticidade, isso é bonito de se ver, isso comunica muita coisa. E o espaço cênico me acolheu. Sinto que a indústria do entretenimento, que tem grande poder sobre a produção musical, é muito fechada. Acho ela até careta, porque só aceita um tipo de espetáculo. Fica tudo muito fechado…
Naquele momento da minha carreira, comecei a fazer espetáculos que, inclusive, eram difíceis de se definir. Musicalmente, eu já tinha dificuldade de me encaixar em segmentos de mercado explícitos e consolidados. Hoje sei que isso acontecia porque eu estava criando a minha própria linguagem, mas na época eu não tinha essa consciência. Digo isso por mim e por alguns companheiros que também já empunhavam o tambor herdado dos Reinados do Rosário, num esforço delicado de entender como nossa arte se relacionava com nossas origens sagradas: [Maurício] Tizumba, eu, posteriormente o Tambolelê, Sérgio Pererê, Sérgio Santos, Raquel Coutinho… Mas, naquele momento, eu não conseguia nem colocar minha produção dentro de um segmento já consolidado no mercado musical. Os espetáculos que eu criava — e continuo criando — encontram a mesma pergunta: “Mas isso é teatro ou isso é música?”.
Hoje temos uma grande profusão de musicais, mas quase sempre apegados à linguagem do musical americano, que tem um formato muito específico e bem diferente do nosso. O espetáculo Titane e o Campo das Vertentes , por exemplo, é das artes cênicas ou é da música? Perguntaram para mim e eu respondi: “Não sei. Por favor, assista Saudade do Brasil, de Elis Regina, e me diga. Me ajude a entender o que é o Titane e o Campo das Vertentes”. Para mim, o que eu estava fazendo ali era pura música popular brasileira protagonizada por uma intérprete da linhagem mais clássica possível das intérpretes brasileiras.
Eu acho que existe uma tendência muito forte de retirar o artista da sua cultura de origem. É muito fácil a gente ver isso no Milton Nascimento, por exemplo. Muita gente que ama Milton Nascimento, inclusive artistas importantes, às vezes não se pergunta devidamente que peso a cultura de Minas Gerais tem na sua obra e na sua formação pessoal. E o Milton fala disso o tempo todo, mas é muito comum você ver analistas de música que não compreendem os vínculos musicais profundos do Milton com a cultura e as sonoridades do Reinado. Isso é uma coisa recorrente, mais ainda no nosso caso. Eu não sou uma artista por diletantismo; eu não sou uma artista porque eu dei conta de sobreviver com a minha arte. Não, eu sou uma projeção da minha cultura. Isso fica cada vez mais claro para mim. Eu e uma série de colegas musicistas, compositores, compositoras, instrumentistas incríveis. Nossas personalidades artísticas são definidas pela nossa cultura.
Parece que não estou falando do BDMG Cultural nesse ponto, mas, na verdade, estou. O BDMG Cultural é uma das poucas instituições, seja pública ou privada, que atuam no setor e possuem uma leitura sensível da nossa realidade musical.
Pensando nessa questão, recorro ao programa mais longo e duradouro da instituição, o Prêmio BDMG Instrumental, que existe há 22 anos. Sei que você tem uma relação importante com o Prêmio, assim como vários outros instrumentistas, intérpretes e artistas ligados à cena também têm. Lembro aqui alguns músicos premiados que já tocaram com você, como Yuri Popoff e Rafael Martini. Pode comentar um pouco sobre o Prêmio?
A produção artística musical, como temos conversado aqui, é um grande empreendimento, e não cabe só ao artista desenvolvê-la. Você precisa de produtores executivos, das TVs e das rádios, de todo esse setor de comunicação e do audiovisual, você precisa de financiadores, investidores etc. Em geral, esses setores preferem investir nas linguagens com mercado mais consolidado, aquelas ligadas à ideia do entretenimento com retorno financeiro mais imediato. O BDMG Cultural fez uma opção clara por atuar no embrião das coisas. Atua na sala de ensaio, na sala de estudo, na pesquisa, na formação, no reconhecimento de lugares dentro da produção musical que são o coração da música, onde quase ninguém põe atenção. O coração da música é a mão da instrumentista, a elaboração sensível do compositor, o tempo de trabalho rigoroso dedicado ao domínio dos instrumentos musicais, à compreensão do imenso universo de sons que se articulam na construção das músicas do mundo. O BDMG Cultural compreende e investe nisso.
Ao se voltar para a música instrumental, para os e as instrumentistas, o Prêmio BDMG Instrumental impacta toda a nossa música. Ele colabora criando condições para que a gente avance. Yuri Popoff é importantíssimo para nós. É um dos compositores presentes no show de comemoração dos 35 anos do BDMG Cultural. O Rafa Martini é uma preciosidade, e todos sabemos o quanto o BDMG esteve presente reconhecendo seu trabalho como instrumentista, arranjador, compositor, curador e tutor de projetos voltados para diferentes gerações de músicos. Os programas da instituição oferecem bolsas de estudo, formam o músico, reconhecem sua excelência, permitem o diálogo entre músicos experientes e músicos em formação, impactam a criação musical, a produção de discos, a formação de público.
E vem o Prêmio Flávio Henrique, que joga luz sobre nossos compositores e nossas compositoras. Especialmente as compositoras! Cada vez mais, percebo que o Prêmio reconhece essas mulheres talentosas, compositoras que são também as principais intérpretes de suas composições, como é o caso de Irene Bertachini, Júlia Branco, Déa Trancoso…
Inclusive, você foi jurada da segunda edição do Prêmio Flávio Henrique, em 2019.
Sim, no ano em que a Júlia Branco foi premiada com o álbum Soltar os Cavalos. Para mim, é um trabalho muito gostoso, porque você se senta com pessoas que admira para poder conversar sobre música, ouvindo a música que é feita aqui em Minas.
Queria aproveitar a deixa e adiantar um assunto que havia guardado para falar mais adiante. Você está comentando sobre essas cantoras, compositoras, autoras, enfim, essas mulheres que despontam agora como protagonistas na cena. Se olharmos a história da música mineira, parece que há uma evidência das artistas nesse momento. E, ano passado, você participou do Simpósio Mulheres na Música, que aborda justamente essa pauta…
Veja só que deixa mais que bem-vinda! O BDMG Cultural, enquanto instituição promotora dessas ações todas, poderia não ter inquietação alguma. Poderia não se fazer qualquer pergunta. “Abri um edital e, que coisa, só homens se inscreveram… Nenhuma mulher se inscreveu… Que pena. Bola para frente, não tenho nada com isso”. Mas, ao invés de pensar assim, o BDMG Cultural investiga, se pergunta, demonstra uma inquietação muito parecida com a nossa, enquanto artistas. Percebe que existem alguns vácuos e tenta atuar nisso.
Eu achei esse simpósio uma iniciativa extremamente bem-vinda e bem planejada. Reunir mulheres que atuam em diferentes pontos da produção musical — instrumentistas de diferentes tipos de instrumentos, arranjadoras, compositoras, pesquisadoras, intérpretes como eu — e nos convidar a passar alguns dias refletindo sobre a presença das mulheres na música. Uma oportunidade ímpar. Desejo que ocorram muitas outras edições no futuro, porque a gente não deve só atuar, mas também parar para pensar juntas.
O Simpósio Mulheres na Música me pegou de surpresa. Existem muitas iniciativas importantes reunindo mulheres artistas, como o Sonora, o Negras Autoras, o Imune mais recentemente, só para citar algumas. Mas o Simpósio me pegou de surpresa porque não foi uma iniciativa nossa, de artistas, mas de uma instituição.
Isso é interessante para pensarmos também o papel de uma instituição pública; no caso do BDMG Cultural, uma instituição ligada a um banco de desenvolvimento público vinculado ao estado.
Sim. Percebo que a instituição tem atuado em consonância com as políticas públicas que o setor da cultura deseja ver criadas e implementadas. Às vezes, até um pouco adiante delas, conseguindo se colocar de maneira inteligente e sensível, mesmo nos momentos em que as políticas públicas ficam enfraquecidas por conjunturas políticas muito adversas.
Aproveitando que estamos falando aqui do setor público, quero fazer um comentário sobre pontos que, na minha visão, precisamos avançar. São pontos que eu espero que o BDMG avance também, entendendo, inclusive, que ele está dentro de um grande sistema, está inserido em uma certa maneira como as instituições públicas pensam o desenvolvimento a partir da cultura. É um pensamento que tenta, cada vez mais, entender a relevância da dimensão cultural na sociedade, mas que ainda destina ao setor infraestruturas e valores pequenos e tímidos.
No caso do BDMG Cultural, temos que reconhecer que o recurso destinado aos programas culturais é modesto, afinal trata-se de um banco de desenvolvimento. Mas são recursos que têm sido empregados com planejamento consequente de eficiência e impacto. Seus editais são cúmplices da produção artística, atuam nas diversas etapas da criação e fruição musical. Todos percebemos a dimensão desses editais. Eu mesma fui selecionada em um deles e tive a oportunidade de produzir de um modo muito coerente com o que desejava naquele momento, sem malabarismos de “readequação” de objetivos. E todos desejamos que, ao comemorar seus 35 anos, a vocação do BDMG Cultural seja fortalecida, seus recursos e sua abrangência sejam ampliados. O desenvolvimento do país, de Minas, passa pela educação, pela saúde, pelo meio ambiente e pela cultura, e todos sabemos que isso não pode mais ser apenas retórica.
O edital ao qual você se refere é o LAB Cultural, certo? Você foi uma das selecionadas na primeira residência artística online, em 2020.
Isso. Com 40 anos de carreira, foi a primeira vez que as minhas horas de trabalho diário tiveram um reconhecimento, porque eu nunca havia recebido nenhum tipo de bolsa até então. Nada, nem um tostão. Eu ganho para subir em cima do palco e cantar, para fazer um ensaio para tal música, mas não ganho para toda a criação que está por trás daquilo… Porque são horas de trabalho, né?
O LAB Cultural é muito importante não apenas por ser uma bolsa de investigação, mas por estar em consonância com a realidade do mundo hoje. É uma bolsa que pressupõe trabalhos com diálogos transversais entre áreas: música, audiovisual e outras. No meu caso, tinha um diálogo grande com as artes cênicas e a cultura popular, mais especificamente com o Reinado do Rosário, com os instrumentos de percussão do Reinado, como a gunga. E é um programa com proposta estética e ética, pois o edital reúne pessoas de diferentes origens culturais, diferentes origens socioeconômicas, diferentes vivências. Na edição que participei, éramos de raças diferentes, de gêneros diferentes, de idades diferentes. Eu poderia ser avó de alguns. Não fiz essa conta de idade na época, mas não que importe muito (risos). É porque em arte não existe muito isso, né? Um artista de 20 anos pode ser mais maduro do que um artista com 40 anos de estrada, então o nosso diálogo se dá muito nesse sentido horizontal. São cargas culturais completamente distintas, e o BDMG Cultural as colocou em movimento ali no LAB. Uma curadoria maravilhosa, de artistas muito consistentes, que já demonstravam personalidades artísticas construídas, mas também se mostraram prontos para conhecer outras coisas, dispostos a se deixar “poluir” por coisas desconhecidas e outras práticas. Naquele ano de 2020, o conjunto de artistas bolsistas e de tutores que integrei no LAB Cultural formou um grupo que encheu minha pandemia de vida, sabia? Encheu a pandemia de vida, literalmente.
Outro projeto marcante para mim foi o Dois na Quinta. Foi um verdadeiro presente porque a Loló [Leonora Weissmann] é uma dessas artistas que me encantam. Vejo nela aquela mistura de compositora, de um timbre lindo e de uma musicalidade potente, que me deixa fascinada. Meu encontro com a Loló foi um encontro bonito dentro de uma série de encontros também muito bonitos. Digo isso porque o público nem sempre associa a gente. Às vezes, replicamos a visão muito segmentada que o mercado tem e não conectamos, por exemplo, a cantora de uma geração a outras artistas, intérpretes ou compositoras que surgem depois. Então, precisamos estar sempre lembrando ao público que a vida artística não é assim fragmentada, não é cada um por si. Nós, artistas, somos a continuação uns dos outros.
Titane, inclusive, você participa de outro projeto no momento, ao lado de artistas como Maurício Tizumba, Sérgio Pererê e Sérgio Santos, assumindo a direção cênica do espetáculo que vai comemorar os 35 anos do BDMG Cultural. O show conta com musicistas de diversas gerações que passaram pelo Prêmio BDMG Instrumental. Como está sendo o processo de construção desse espetáculo?
Creio que estamos vivendo um momento especial de reencontro da nossa música com as suas matrizes ancestrais, e o espetáculo que estamos montando busca retratar exatamente isso. Antes de falar do espetáculo em si, queria comentar sobre esse reencontro.
Uma parcela importante da música feita aqui em Minas Gerais, falando de modo geral, possui influência muito forte das sonoridades do Reinado do Rosário. A obra do Milton Nascimento mesmo, como eu disse, está toda impregnada das sonoridades do Reinado. Até arrisco dizer que principalmente os Catopés, mais que os Moçambiques e os Congos, estão presentes na obra dele. A música do Milton sempre teve essa rítmica reinadeira, mas de uma maneira muito transcendida. Isso porque o Milton parece ter todas as músicas do universo passando por ele: tudo transcende, e ele nos devolve coisas encantadas. Então, só quem conhece bem o Congado é que relaciona uma coisa à outra.
Fora o Milton, é da minha geração para cá que esse diálogo musical começa a ser feito. E não começa de uma forma simples. Eu mesma sempre ouvi, dentro da minha cabeça, aquela potência do serra abaixo como parte de um show, como parte da nossa música, mas eu não tinha colegas com quem conversar sobre isso. Era uma coisa demorada de acontecer. Tanto que, no meu primeiro disco, é uma Guarda de Moçambique que canta comigo uma música escrita pelo meu irmão Sávio, um médico com potente alma de artista. Naquela época, não encontrávamos músicos que dominassem os tambores — os chamados “tambores mineiros”, hoje muito presentes no nosso meio — e muito menos compositores imantados pela energia reinadeira.
Maurício Tizumba é um desses compositores. Eu já era cantora e já tocava a minha caixa quando vim a conhecer Tizumba, esse artista gigante desde sempre, que atuava como cantor de samba e crooner nos bares. Demorei a saber que Tizumba tinha lastro no Reinado. Quando descobri, foi um alento. Eu pensava: “Ele sabe do que eu estou falando”.
Então, da década de 1980 para cá, houve uma construção coletiva de muitas gerações, que começou com o domínio dos instrumentos: primeiro o tambor, depois o patangome e, recentemente, as gungas. Junto com eles, toda a rítmica e as sonoridades reinadeiras. Só depois vieram os compositores. Porque não se trata de simplesmente compor com o ritmo serra abaixo do Congado; a questão é você compor com aquela cosmologia, com aquele caráter. Para isso, foi necessário que uma geração de artistas negros nascidos no Reinado, ou que dele se aproximaram com a maturidade, absorvessem e cultivassem dentro de si aqueles fundamentos, aquela lírica, aquela maneira de ver o mundo, de entender as relações com o sagrado e com os mistérios da vida.
Os intérpretes, por sua vez, acompanham esse processo desde o começo: eu, Marina Machado, Ana Cristina… Depois, surgem também atores e atrizes, como a Kátia Aracelle, que entendem essa presença do Reinado, justamente por virem de lá, e começam a contribuir para que o teatro se transforme, trazendo para o palco corpos que cantam, dançam e tocam o Reinado.
Chegamos, enfim, ao espetáculo dos 35 anos do BDMG Cultural. O que queremos apresentar nele é o encontro desse lastro de nossa música instrumental com a linguagem dos tambores. Por isso, é um momento muito importante para todos nós que estamos envolvidos. Contamos com um grande compositor e arranjador, que é o Sérgio Santos, autor de uma música importantíssima para nós, chamada “Galanga Chico Rei”. É uma parceria dele com o Paulo César Pinheiro, que encontrou a voz e as gungas do Tizumba. O que propomos para esse espetáculo, portanto, é apresentar ao público esses encontros dos nossos instrumentistas com as sonoridades do Reinado.
Algo que me chama a atenção quando você traz esse histórico da influência das matrizes do Reinado na cena musical mineira é que parece haver não apenas uma presença dos toques, sons e ritmos, mas também dos valores, das crenças, das visões de mundo. Isso também aparece no espetáculo?
Esses encontros da dimensão artística da vida com a dimensão sagrada e religiosa são sempre momentos delicados, que exigem cuidado e reflexão. São momentos em que muito se ganha e também muito se perde. Estamos vivendo intensamente tudo isso. Tendo nascido em Oliveira, sei que é impossível qualquer pessoa da cidade passar impunemente pelos dias do Reinado do Rosário, mesmo não sendo parte dele. A gente acaba se afetando, sentindo diferentes coisas de diferentes formas. Não só a nossa musicalidade é afetada, mas todas as questões e conflitos de uma sociedade escravocrata que o Reinado traz à tona afloram dentro da gente.
O Reinado do Rosário sempre existiu. E ele não vai deixar de existir, porque ele é um território de autodeterminação. É um território onde as pessoas se sentem plenas e vivas. Ali, dentro do Reinado, não tem opressor e oprimido. São pessoas plenas, em comunhão com sua história, com suas dores, com sua capacidade de resistir e, principalmente, de construir. É mais lugar de construção do que simplesmente de resistência. O Reinado nos mostra todo dia que, lá, não se está só resistindo. Lá se constroem, diariamente, significados para a vida. É a construção de uma cultura que se impõe no mundo. É uma dádiva da vida — e da cultura negra — que temos a oportunidade de conhecer e é uma pena que muitos não enxerguem algo tão precioso e tão próximo.
Queremos tentar mostrar algo disso no espetáculo de 35 anos do BDMG Cultural. Fizemos um levantamento dos compositores mineiros que têm atuado dentro desse universo desde a década de 1980 para cá e encontramos muita gente talentosa e querida, mas optamos por nos concentrar em fazer um roteiro com os autores que estarão presentes como convidados, principalmente o Tizumba e o Sérgio Pererê, que são músicos e reinadeiros.
Naturalmente, teremos também a presença das guardas. Elas vêm de duas maneiras: como as grandes homenageadas e, ao mesmo tempo, como uma forma de abençoar tudo o que tem acontecido. É um momento de agradecimento. Agradecimento por toda essa herança reinadeira, que os negros generosamente nos oferecem e que a gente deve, agora mais do que nunca, compreender e reverenciar. Fazer com que as pessoas entendam que nada nasce por acaso, que nada nasce por geração espontânea, que tudo são heranças. E que podemos nos encantar por essas heranças, compreendendo que sua essência é repleta de alegria, mas também de dores, de conflitos ainda a serem superados. Eu vejo o artista como uma ponte, por isso espero que a gente seja capaz de reconhecer publicamente essa herança, de contar de onde vem tudo aquilo de bom que recebemos e de ajudar a passar para frente. O artista é também uma ponte sagrada.
É muito bonito esse olhar do artista e da arte como pontes. Como trabalhador da cultura, em uma instituição que atua justamente nesse campo, gosto bastante dessa imagem.
É uma ponte. Tenho consciência quando falo isso, Paulo, porque eu sou intérprete. Eu não sei como seria se eu fosse compositora. Sempre achei que o intérprete é meio passarinho, que pega uma sementinha dali e joga para cá, ou, no meio do caminho, pega uma daqui e outra dali e mistura elas na boca. Você vai polinizando, tal qual uma abelha. Mas não é qualquer coisa que você engole. No meu caso, é tudo muito sensorialmente seletivo.
Eu vejo o artista como essa ponte entre um inconsciente coletivo e o mundo encarnado aqui, entre culturas diferentes. Uma antena, sempre ligada para receber sinais, decifrar e transfigurar. Eu acho que somos uma ponte, sim, por onde passam muitas coisas. Lembrei agora uma vez que, conversando com o João da Neves sobre isso, falei: “João, eu tenho que deixar meu corpo muito forte porque eu sou intérprete. As canções têm muitos espíritos. Algumas me atravessam e me arrebentam. Então, eu tenho que ficar muito forte, para ser um canal sem me destroçar”.
No fundo, eu acredito que a música abençoa mesmo. Desde o começo. A música é mãe. Sinto que ela me abençoa e, por mim, abençoa as pessoas. Não sou eu, é a canção que vem, me abençoa e abençoa quem me ouve. Nesse sentido, a arte é muito parecida com toda essa dimensão mística e religiosa do Reinado. Tem que pôr sentido. Lá em Oliveira, no Reinado, quando você está distraído, quando não sabe exatamente o que está fazendo, todo mundo fala assim: “Põe sentido, rapaz”. Em vez de falar “presta atenção”, a gente usa “põe sentido”. Acho que a arte ajuda a pôr sentido.