REVISTA nº Especial

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1. Lygia e Amílcar: um recorte

Texto Nº 1 de uma série de 6

Davi Aroeira
22 Dez 2020 7 Min
1. Lygia e Amílcar: um recorte
“Tenho planos. Um espia o outro projetando sombras, mudando a realidade. O plano sombreado, reagindo, mudando de cor, adquirindo profundidade, desconhecidos perigos. Abismos. A deformação da refração: espelho. Deformação da estrutura”. Lygia Clark. Fotógrafo não identificado. 1972. Acervo: Arquivo Nacional
“O que caracteriza um artista é ele olhar para dentro de si mesmo. Toda experiência em arte é um experimentar-se, é a experiência de si mesmo, é uma pesquisa em você mesmo. Você não pode fazer experiências com os outros. Esse silêncio do olhar para dentro à procura da origem das coisas é que é o grande problema da arte. É por isso que eu acho que criar está junto com viver, que arte e vida são a mesma coisa”. Amílcar de Castro. Fotógrafo não identificado. Dec.1980. Acervo: Instituto Amílcar de Castro.

 

No dia 21 de março de 1959, o Jornal do Brasil trazia duas manchetes principais. A primeira, “Governo atende colégios, mas greve prossegue”; a segunda, “Eisenhower discorda de MacMillam”. Completando os destaques, a única foto impressa: um recém-nascido, que fora abandonado pela mãe biológica — cujo final feliz seria garantido pelas pretendentes a mães adotivas. Havia também uma enormidade de classificados, empilhados por toda folha; e a previsão do tempo para a (então) capital do Brasil: naquele sábado era previsto clima ameno, com poucas chuvas. Tomada apenas por suas principais notícias, aquela edição do Jornal do Brasil era completamente esquecível — bem diferente da edição publicada no dia 2 de janeiro do mesmo ano, que trazia no alto da página frontal: “URSS lança foguete cósmico: chega amanhã à lua”. E, no entanto, cá estamos falando dela.

Com absoluta certeza, pouquíssimos leitores notaram à época, mas a tiragem do Jornal do Brasil em questão era uma edição histórica. Não pelas suas principais notícias, é verdade, mas por suas páginas culturais. No “Suplemento Literário” daquele sábado estava publicado um documento de suma importância, que mudou o campo artístico do país — e dialogava diretamente com o contexto político-social daqueles anos de novidade, eufóricos, modernos. Trata-se do Manifesto Neoconcreto.

Vale a pena abrir um parêntese aqui. Verdade seja dita, a maior parte dos jornais traz manchetes que, na semana seguinte, já foram apagadas de nossa memória, servindo de interesse apenas aos historiadores do futuro — quando muito. Mas também é verdade que, inúmeras vezes, as pessoas que vivem o presente não sabem — e nem têm nem como saber — o alcance histórico e simbólico de eventos que, muitas vezes, são relegados à pequenas notas e pés de página. Como no caso mencionado acima — e continuado abaixo.

O neoconcretismo foi uma das mais importantes experiências artísticas na história da América Latina. Cada vez mais é reconhecido internacionalmente como a maior contribuição brasileira no campo da História da Arte mundial. Pela maneira como combinou poesia e rigor estrutural nas obras, e por desconstruir concepções sobre quem era o público e quem era o(a) artista no processor criador. Entre os oito signatários do manifesto estavam dois mineiros: Lygia Clark e Amílcar de Castro — ele, de Paraisópolis; ela, belorizontina das primeiras gerações.

Lygia e Amílcar surgiram para o público e crítica quase que simultaneamente, no início da década de 1950. Considerando o fato de terem nascido no ano de 1920, já estavam na casa dos 30 quando suas trajetórias artísticas ganharam súbita notoriedade. De quase anônimos, despontaram como dois dos mais promissores artistas de seu tempo. Em 1953, expuseram na 2ª Bienal de Arte de São Paulo; pouco depois, integravam a ala concretista no Rio de Janeiro, da qual derivou o neoconcretismo. Na década de 1960, se consolidaram como duas das principais referências artísticas do país. Ganharam prêmios, mostras individuais e tiveram suas obras visitadas mundo afora. Em 2020, ano do centenário de Lygia e Amílcar, exposições, colunas, matérias e documentários, só fizeram confirmar (e crescer) o reconhecimento da importância dos dois mineiros para as artes nacionais.

Não sem motivos. Ambos tensionaram a produção artística e a sensibilidade estética para além do concebido até então. Ele, por instituir um novo paradigma no campo da escultura. Amílcar foi revolucionário ao fazer esculturas cortes e dobras sobre a superfície material, sem extração (nem acréscimo) de matéria para produzir a obra — como Michelangelo, que esculpiu o magistral David extraindo os excessos da pedra, cavando um enorme bloco de mármore. Já Lygia Clark é possivelmente uma das brasileiras mais significativas no plano da cultura no século 20. Lygia pulverizou concepções sacramentadas a respeito dos objetos e conceitos no plano sensível. Subverteu hierarquias e papéis ao dissolver a dicotomia “artista-expectador” numa solução “proponente-participador”. Em seu percurso, passou a não se enxergar mais como artista. Não via seu trabalho como arte: acreditava em processos de cura terapêutica por meio da experiência sensorial, da poética de sua estética relacional — onde objetos e indivíduos criam e recriam relações consigo e entre si.

A despeito de Amílcar e Lygia possuírem caminhos próprios, as afinidades estéticas de seus anos seminais constituem um forte laço entre ambos. Trata-se de um momento crucial e riquíssimo não apenas para a trajetória pessoal e profissional desses artistas, mas da história política e cultural do país. Um período em que utopias modernizadoras saíam da imaginação para a realidade concreta.

Centenário

O ano de 2020 se mostrou uma fértil ocasião para se lembrar e rememorar Lygia Clark e Amílcar de Castro. Foram muitas as matérias, balanços críticos e as exposições retrospectivas — muitas delas disponibilizadas para visitação online, devido às impossibilidades de acesso causadas pela pandemia que marcou o ano de 2020.

Isso propiciou um olhar de espectro mais amplo sobre a obra de Amílcar de Castro, por exemplo. Seu trabalho, ao ser apresentado em conjunto, se mostra muito além das peças feitas de chapas metálicas. Há também esculturas em madeira, vidro, mármore; e não apenas esculturas: pinturas, desenhos, seu trabalho como artista gráfico… Recentemente, foi publicada uma compilação de poemas seus, revelando uma qualidade de Amílcar até então desconhecida pelo grande público. Que se produzam mais estudos sobre a atuação de Amílcar como professor universitário e orientador de jovens artistas; ou como responsável por uma transformação radical na comunicação visual do país ao promover a reforma gráfica nos veículos onde trabalhou — num momento onde o jornal era de longe o meio de comunicação mais consumido no país.

Lygia Clark, por sua vez, vem recebendo sucessivas demonstrações de prestígio internacional — principalmente entre as novas gerações de artistas. Em 2014, o MoMA (Museum of Modern Art) de Nova York dedicou uma colossal mostra reunindo todas as fases da artista. Entre outras exposições, em 2020, foi o museu Guggenheim de Bilbao, na Espanha, fazer sua mostra dedicada à Lygia.

Por sua amplitude conceitual e sua potência significativa parecem inesgotáveis as teses e artigos acadêmicos a seu respeito. São estudos que analisam suas reflexões sobre o campo da pintura; sobre a arte enquanto processo de cura terapêutica; à respeito da excitação sensorial e a ação corpórea na experiência estética; ou mesmo sobre sua figura enquanto mulher e artista no seu contexto… para citar apenas alguns exemplos.

Em suma, debater o pensamento e a arte de Lygia Clark e Amílcar de Castro permanece um gesto atual. Lygia antecipou muito do que mais tarde se chamou de arte contemporânea” — nos anos 60 Mário Pedrosa chamava de “arte pós-moderna”; Amílcar fez o que raríssimas vezes se viu no campo da escultura — dois gestos simples (corte e dobra da matéria), e nada mais. Nenhum dos dois esteve à frente de seu tempo — como na prática, ninguém jamais esteve ou estará —; mas ambos vivenciaram e fizeram parte de dinâmicas e processos históricos que reverberam até hoje. Referências ontem, referências hoje. Permanecerão assim nos próximos cem anos? Não há como saber. A lembrança do passado quem faz são os homens e mulheres do presente. Ou, como afirmou Mário Pedrosa: “nosso passado não é fatal, pois nós o refazemos todos os dias”.

Davi Aroeira

 

é historiador e professor, com mestrado pela UFMG. Atua como pesquisador há mais de uma década, buscando no encontro ente arte e política, e no diálogo entre texto e imagem, uma narrativa potente para abordar processos históricos.

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