Beiras d’Água e o cinema vagalume
Uma navegação imagética pelo acervo colaborativo que conecta produções audiovisuais realizadas nas margens da Bacia Hidrográfica do São Francisco
Povos indígenas. Juventudes. Pequizeiros. Organizações. Gênero. Xakriabá. Cosmologia. Comunidades. Quebradeiras de coco babaçu. Mineração. Fulni-ô. Caatingueiros. Expressões culturais. Movimento dos Pequenos Agricultores. Quilombolas. Pankararu. Energia. Comissão Pastoral da Terra. Camponeses. Agronegócio. Kapinawá. Articulação Popular São Francisco Vivo. Canoeiros. Articulação Nacional de Agroecologia. Apanhadoras de flores. Modo de vida tradicional. Transposição.
Do jogo de palavras acima, a última é, provavelmente, a que ganha mais visibilidade midiática quando associada às águas do Rio São Francisco. Os demais termos podem até ficar, costumeiramente, em segundo plano, mas são capazes de remeter a diferentes localidades geográficas; elencar distintas formas de articulação social; enunciar múltiplos arranjos identitários; exprimir conflitos sociais e indicar particulares processos históricos. No Beiras d’Água, além de não perderem a força expressiva que carregam por si só e estarem lado a lado (e não subjacentes) ao tema da transposição, eles são articulados de forma a confluir para um mesmo propósito: permitir que uma navegação imagética pelo Opará, nome dado ao rio por povos indígenas que habitam parte da região por ele atravessada.
O projeto que permite a experiência é um acervo colaborativo cujo intuito é conectar produções audiovisuais realizadas nas margens da Bacia Hidrográfica do Velho Chico. As obras estão disponíveis para acesso público no site beirasdagua.org.br, e são estruturadas por meio de coleções. A cada palavra utilizada para organizar o acervo, um conjunto de filmes se desvela e contextos socioculturais ganham nomes e rostos. Com eles, são abertas também possibilidades narrativas, percursos possíveis pelo rio que entrecorta boa parte do Brasil. Ou seja, embora remeta às mesmas águas, nem de longe o conteúdo reunido é homogêneo: há uma variedade de histórias e tradições que se interligam e se emaranham pela força de um mesmo curso.
Ampliar as margens, disputar imaginários
Alimentado por uma parceria entre a Cooperativa Eita e a FioCruz Pernambuco, o Beiras d’Água sistematiza a produção cinematográfica em torno da Bacia do São Francisco desde 2017. Bernardo Vaz, idealizador do projeto, conta que, naquela época, já estava empenhado em perceber como comunidades rurais, ribeirinhas e quilombolas poderiam produzir filmes que explorassem suas histórias e memórias. Mas, o que alavancou de fato a iniciativa foi certa curiosidade, que surgiu durante o processo de pesquisa necessário para começar a mergulhar no tipo de cinema em que estava interessado: “Quais filmes já haviam sido produzidos sobre o São Francisco?”, questionava o realizador audiovisual.
No início, a rede de contatos com instituições que atuam ao longo da Bacia, como a Articulação Popular São Francisco Vivo, por exemplo, foi responsável pelo registro das primeiras obras. Hoje, a catalogação é mais espontânea: qualquer pessoa pode cadastrar uma nova peça, desde que obtenha os direitos autorais sobre ela. Com isso, pouco a pouco, o acervo cresceu. Já são cerca de 400 filmes catalogados no site. A ampla coletânea abrange imagens captadas desde a década de 1920 e permite que o espectador conheça diferentes modos de apreender o São Francisco e seus arredores.
Para Bernardo, conectar a riqueza encontrada na Bacia por meio de imagens é multiplicar vozes e incentivar outros olhares sobre o rio, já que, quando começou a pesquisa para colocar o portal em atividade, percebeu que a maioria dos filmes que apareciam como resultado de buscas na internet era de empresas ou do governo, e, em geral, se limitavam a tematizar a transposição das águas. Com o Beiras, o idealizador acredita que é possível navegar de diversas formas, sejam elas baseadas em critérios espaciais, temporais, identitários ou temáticos. Além disso, a conexão entre todos eles, diz Bernardo, também provoca significados e tem o potencial de contar outras histórias, menos institucionais, de modo a revelar novas facetas das diferentes realidades banhadas pelo conjunto hidrográfico.
“O Beiras é um vagalume, não um holofote da grande mídia. Não é nem algo que ofusca, nem a escuridão total. Apesar de todas as questões e problemas que uma comunidade pode ter, ela ainda pode dizer: ‘a minha comunidade está aqui, ela vive, ela resiste, alguém nos encontrou, alguém nos catalogou. Meu filme existe e ele está aqui’, comenta Vaz sobre a importância do projeto para os grupos e organizações que estão nas margens do São Francisco e que buscam registrar os modos de vida dos que vivem naquele território.
Abrigar histórias singulares
Uma das manifestações que se pode conhecer por meio do acervo colaborativo é a Festa das Yabás, rito dedicado às orixás femininas nas religiões de matriz africana. A celebração está registrada no filme Águas Sagradas (2017) e é tradição do Quilombo Mangueiras, que faz parte da área urbana de Belo Horizonte. A produção audiovisual congrega memória e sabedoria popular ao abordar a ligação entre a ancestralidade africana e as águas da nascente que jorra no território quilombola.
O enredo é apresentado por meio da história de Tatiane de Oliveira, que é também a figura central do curta. Filha de uma moradora que precisou se mudar quando casou, Tatiane pôde revisitar suas origens quando a mãe, já viúva, retornou para sua terra. “O filme mostra a pessoa voltando para casa, descendo do ônibus e reencontrando o quilombo. Ali, eu chego e abraço a minha tia Ione”, conta Oliveira para demarcar como a peça audiovisual traça um paralelo entre a celebração das orixás e a relação entre as mulheres da própria família.
Ainda que seja uma história pessoal, Tatiane faz questão de ressaltar que o fio condutor da trama foi definido coletivamente e tinha o intuito de chamar a atenção para a situação das águas no local:
“As nascentes sempre foram e ainda são muito importantes para o quilombo. Antes de termos água potável aqui, a gente usava a água da nascente para todo [tipo de] consumo: para tomar banho, para fazer comida, para o cuidado da casa, para alimentar nossos animais, para alimentar nossas plantas. Mas também para o lado espiritual: usamos para o banho de folhas, para a lavagem e para fazer as comidas no axé. Então, a água, para a gente, é a vida, é o começo de tudo”.
O realizador audiovisual e educador Gustavo Jardim, coordenador da oficina em que o filme foi produzido, destaca que a ideia era, desde o início, “trabalhar menos com um cinema narrativo, clássico, e mais com a observação e transformação do real a partir da câmera”, o que exigia experimentar e deixar que tanto as águas quanto o entorno delas “dissessem” como queriam ser filmados. Só então um roteiro poderia ser definido. No caso do Águas Sagradas, Jardim conta que a relação com a espiritualidade apareceu tão logo o exercício foi proposto e a participação ativa dos cuidadores e das cuidadoras da nascente foi central para o desenrolar da trama, além de ter auxiliado a criar uma forma de captar imagens que estivessem efetivamente alinhadas com o cotidiano do quilombo.
“A realidade muda dependendo da forma como você a captura. O cinema trabalha muito com isso: dar vida para alguma coisa ou matá-la. A câmera tem o poder de apagar as pessoas e tem o poder de fazer com que elas apareçam também. Então, o envolvimento das comunidades na criação de suas próprias imagens e o exercício de capturar a partir de suas singularidades acabam renovando o próprio cinema. Na experimentação e na potência de registrar o singular, a gente acaba alcançando dimensões de linguagem que, às vezes, nem mesmo o cinema conhece”.
Entre fluxos e refluxos
O que é possível aprender com a catalogação dos filmes produzidos desde a nascente até a foz do São Francisco? Essa foi a segunda curiosidade que motivou Bernardo a criar o Beiras. Três anos depois, ele consegue listar, com facilidade, alguns dos ganhos que o projeto é capaz de proporcionar ao cinema brasileiro. Um deles é a oportunidade de exercitar métodos de pesquisa sobre o conhecimento que é produzido nos territórios que compreendem a Bacia. Outro é estimular que se trabalhe cada vez mais a relação entre cinema e memória, de modo a promover referências audiovisuais para uso de pesquisadores, escolas, ONGs e instituições que estejam em busca de um olhar amplo sobre o atual contexto do rio.
Uma terceira contribuição envolve a visibilidade dos filmes. O portal não arquiva nenhuma obra, por exemplo. Elas apenas estão alocadas no site, o que faz com que a audiência seja redirecionada para os canais originais dos criadores, facilitando, assim, a aproximação e o diálogo com as comunidades. Tatiane vê aí, a propósito, uma chance para que mais pessoas conheçam e se interessem pelas causas do Quilombo Mangueiras, com atenção especial para a situação da nascente, que, segundo a moradora, atualmente está contaminada:
“Acredito que a divulgação do filme pode nos ajudar a partir do momento que a gente consegue levar para as mídias sociais e, às vezes, até o poder público a nossa realidade, o que estamos passando. E também pode divulgar nossa história porque nós, quilombolas, somos muito esquecidos”.
Gustavo, que é também pesquisador em cinema e comunicação, enfatiza que a abertura para narrativas audiovisuais mais próximas do contexto das comunidades, que deem conta de algumas das nuances e complexidades da vida nas margens do Velho Chico, é um bom ponto de partida para repensar, inclusive, os modos de fazer e divulgar cinema: “Há uma troca nesse processo. Quando as singularidades de cada nascente, de cada trecho do rio aparecem, começam a existir também possibilidades de curadorias e coleções em torno desse tipo de filmes. Então, a partir do momento em que eles começam a existir, cria-se uma demanda pela organização de festivais ou iniciativas de divulgação, como o Beiras, que possam mostrá-los. O próprio filme cria possibilidades de novas janelas”, conclui.
Embora sejam muitas as palavras que rondam o Beiras e que definem suas coleções, talvez a que mais importe para entender o trabalho colaborativo que o sustenta seja aquela que quase não aparece formalmente na maneira como a iniciativa é descrita, mas que os filmes nele reunidos praticamente gritam: diversidade.
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