Coleção de um Jequitinhonha

Existe algo na obra de arte que nos atrai. Um fascínio às vezes difícil de se explicar, um interesse, uma lembrança, uma admiração… E existe também algo de histórico e de cultural nesses objetos: eles representam imaginários, filosofias de vida, tradições e práticas, entre outros elementos, das sociedades em um determinado recorte temporal.

Priscila Freire acredita que foi por conta dessa atração misteriosa e sedutora que se tornou colecionadora. “A relação com a arte é uma que se forma aos poucos, mas, quando você assusta, vai pela vida afora”.

Por influência forte do pai, desde criança, Priscila criou o hábito de leitura e demonstrou interesse pelas artes visuais. Provavelmente por isso sua mãe lhe disse quando jovem: “você dá para trabalhar em biblioteca ou em museu”. Como, na época, não havia curso de museologia em Belo Horizonte, cidade onde nasceu e vive até hoje, Priscila formou-se em biblioteconomia pela UFMG.

Os museus, porém, eram seu destino. Trabalhou como superintendente de museus de Minas Gerais e como diretora do Museu Mineiro. Participou da criação dos museus Casa Guignard (Ouro Preto), do Zebu (Uberaba), Museu Regional do Sul de Minas (Campanha), entre outros. Em Brasília, foi coordenadora do Sistema Nacional de Museus e depois, já de volta a Belo Horizonte, esteve à frente do Museu de Arte da Pampulha por 14 anos.

Com o tempo, Priscila foi constituindo também uma importante coleção de arte particular, que, em 2014, foi doada em sua totalidade à UEMG, juntamente a uma área da Chácara Santa Eulália, terreno de sua família na região Norte da capital. Dentre as quase 600 peças do acervo, destacam-se as 17 telas de Guignard e uma ampla coleção de arte popular de artesãos do Vale do Jequitinhonha, sobre a qual conversamos com Priscila na entrevista abaixo.

Exposta atualmente em uma olaria desativada dentro da própria chácara, a coleção é um trabalho de reunião e preservação de peças únicas vindas de diferentes artistas do Vale, muitos deles pouco ou nada conhecidos. Todas elas são feitas de barro, com técnicas tradicionais da região, e dão forma à cultura, ao cotidiano e ao imaginário do Jequitinhonha.

Ampliar o acesso a essa coleção e transformar sua atual casa em um museu é um dos grandes projetos atuais de Priscila, hoje com 87 anos. O outro é terminar sua autobiografia – seria o seu quarto livro publicado, sendo os demais voltados ao público infantil (um deles sobre a vida de Guignard). “Vamos fazer os dois acontecer. Essas memórias não vão se perder”.

• Como você começou a sua coleção de peças de barro do Jequitinhonha?

As primeiras peças que comprei foram na loja de artesanato da Dona Coraci, no Palácio das Artes, ainda no governo Israel Pinheiro [1966-1971]. Eram peças muito bem escolhidas, foi a primeira vez que tive contato com a arte de lá.

Na época, a Codevale [Companhia de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha] também tinha uma loja em BH, com trabalhos lindíssimos. Eu visitava essas lojas e comprava o que me interessava, inclusive para dar de presente. Era engraçado, porque as pessoas estranhavam, achavam um presente esquisito (risos). Mas eu sempre adorei arte popular e, aos poucos, fui me apaixonando pelo trabalho dos artistas do Vale.

Antigamente, porém, era tudo mais difícil e o acesso aos artistas não era fácil. As estradas não eram boas, muitas vezes as peças eram transportadas de cavalo, e, por serem de barro, um material frágil, ficavam danificadas ou se perdiam.

Nos anos 1980, eu já comprava com regularidade. Não só de artesãos do Jequitinhonha, mas do São Francisco, da Zona da Mata… Até hoje, se eu encontro alguma peça interessante, eu compro. Atualmente, meu acervo tem cerca de 300 peças.

Mas a coleção cresceu mesmo após uma exposição que minha amiga Vera Pinheiro organizou na Cemig que me deixou encantada. Tanto que fiz uma oferta e comprei as peças.

• E o que te fascina nessas obras em especial? Por que elas?

Eu costumo dizer que o objeto te atrai. Ele tem algo que te chama, que te seduz. Ao mesmo tempo, ele também quer ser seu (risos). É meio que uma troca.

Eu acredito que, a partir da obra de arte, é possível perceber um imaginário do lugar. Guimarães Rosa percebeu no ar uma série de contextos do nosso sertão. Creio que as peças da coleção façam o mesmo a respeito do Jequitinhonha.

• Em outra entrevista, você comenta que muitas dessas peças surgem com um intuito utilitário: armazenar objetos, água, dinheiro, entre outros. Como é essa relação entre o utilitário, o artesanato e a arte popular no Jequitinhonha?

A princípio, a produção desse tipo de peça era quase exclusivamente utilitária. As pessoas que trabalhavam com isso eram conhecidas como “paneleiras”, pois faziam panelas e potes para guardar água, e vendiam nas estradas. Em algum momento, elas perceberam que poderiam dar outras formas ao material: começaram a criar formas animais e humanas, e também a misturar as duas. Tenho peças que são homem-sapo, homem-cavalo, mulher-cachorro…

E é curioso, pois o homem-cavalo parece um centauro, da mitologia grega; já a mulher-cachorro lembra uma esfinge egípcia. Então, o artista nunca ouviu falar de esfinge e centauro, mas criou essas formas ao fundir a mulher com o cachorro, o homem com o cavalo. São impressões que vão passando entre os povos e formam um ideário coletivo. É fascinante.

• Quem são os artistas que produziram essas peças? Há algumas obras na coleção que se destacam?

As mais valorizadas, hoje, são certamente as do Ulisses Pereira. Ele é uma espécie de Picasso do Vale. Suas peças são estranhíssimas, possuem forma de monstros, coisas desfiguradas… Ele mesmo conta que, quando começou a fazer os monstros, as pessoas inventaram que ele tinha um pacto com o diabo por imaginar aquelas coisas. Tanto que, durante um período, ele parou de produzir o que bem entendia. Eu acho o seu trabalho espetacular.

Mas, para além dos trabalhos mais singulares, é possível perceber uma estética que é típica de lá.

São vários artesãos, que geralmente vivem longe uns dos outros, mas que produzem um trabalho que possui algo em comum. São pessoas que criam ou criavam isolados, mas, ao mesmo tempo, produzem um trabalho coletivo.

É possível reconhecer uma peça que vem do Vale, entende?

Nesse sentido, a coleção ajuda a dar uma identidade coletiva a essas obras. E, simultaneamente, nos permite identificar as particularidades de alguns artistas. A Noemisa, por exemplo. Suas obras são sempre cenas do seu cotidiano: o padre na igreja, uma casa simples, um encontro familiar… Ela conta a sua história através do cotidiano da sua região, e nós conhecemos a sua vida através das peças. Noemisa é uma figura singular. Sua casa é paupérrima, com guirlandas pintadas nas paredes. Seu semblante é sofrido e suas mãos são de trabalhadora rural, porém ela modela o barro com uma delicadeza incrível. Como ela tira do barro aquelas figuras? É impressionante.

Já a Dona Izabel era mais heráldica. Produzia figuras com mais “nobreza”, mulheres de “alto teor”. E a coleção tem obras desses artistas todos. Alguns são poucos conhecidos, o que é fruto de um problema de longa data. Os governos nem sempre deram muita atenção ao trabalho de preservação e valorização dessas peças do Vale. Há muitos museus na região com acervo impressionantemente bom, mas que não sabem informar de qual artesão eram as peças, quando foram feitas etc. Isso me preocupa demais.

• Qual é o cenário atual do artesanato com barro no Vale do Jequitinhonha? Ainda há artistas trabalhando com essa técnica?

Bom, há várias maneiras de trabalhar o barro. Toda a tradição do Vale é originária de uma tradição indígena de queima do barro, mas, aos poucos, isso parece estar acabando. O auge da produção e da qualidade das peças do Vale foi nos anos 1970. A maior parte da minha coleção é dessa época. Com a chegada da TV, da estrada asfaltada, de outras influências, algo vai se perdendo… Há algumas pessoas, como os netos da Isabel e os do Ulisses, que ainda trabalham com barro, mas não é a mesma coisa. Não cozinham no mesmo tipo de forno, usam forno elétrico, logo a queimadura é outra. A tinta tradicional é uma mistura feita com o próprio barro para dar o colorido das peças. Hoje é comum comprar a tinta química, e não produzir.

Então as coisas vão mudando, as formas de se fazer a arte mudam. Por isso as coleções são importantes, para resguardar um conhecimento e servir de memória. A tradição continua, mas sofre influências de outros equipamentos. Portanto, preservar a coleção é preservar um momento.

Eu acredito que é o passado quem constrói o futuro. Nós achamos que “tradição” é o mesmo que “parado no tempo”. Não, ela é dinâmica. Vem do latim traditio, que significa “passar para a frente”. Passar adiante.

• Assim como as coleções, os museus também podem ser considerados espaços de preservação de tradições e cultura. Como pensar, então, as relações entre a coleção particular e o museu, esse lugar do público, da visitação?

A minha intenção em colecionar vem do prazer que tenho em olhar para as obras. Vem da emoção que isso me dá. O objeto tem algum imã que te conquista, que te sensibiliza. Então, quando comecei a coleção, foi por um prazer meu de apreciar as peças.

Por outro lado, eu sempre fui grande frequentadora de museus e trabalhei muitos anos com isso. O museu te explica uma cidade, uma região, um país, e ele te explica pelo objeto. É a possibilidade de ler um lugar e um momento pelo objeto. De certa forma, o museu é como um livro ilustradíssimo.

Então, tem as duas frentes. Eu gosto de pensar que criei um pequeno museu, e, agora, é hora de passar ele adiante. Uma preocupação que eu tive durante muito tempo é a de que a coleção fosse dizimada, depois de todo um trabalho de constituição que levou anos da minha vida. Isso me dava muita preocupação, pois meu desejo é que a coleção viva além de mim. Quero que outras pessoas tenham o mesmo prazer de olhar para esses objetos que eu tenho.

A casa onde vivo hoje foi construída em cima de uma olaria. E a estrutura dessa olaria é bastante preservada, então eu decidi transformar esse “porão” da minha casa em um espaço de exposição da minha coleção. No momento, não temos uma estrutura formal que permita receber público a qualquer hora, mas meu plano é que, em um futuro próximo, aqui possa se tornar uma casa-museu.

Eu recebo visitas de crianças, universitários, artistas e outros interessados, e percebo a atração pelas peças, por essa expressão de vida do Jequitinhonha. São obras que têm uma magia, despertam essa atração, a admiração do olhar. E eu fico feliz de ter reunido isso e de poder compartilhar. Tenho um carinho muito grande por essas peças. É uma coleção muito especial.

*Retrato de Priscila Freire por Daniel Mansur