REVISTA nº Edição comemorativa
Não sou idêntica a mim mesma
Ao longo de seus 35 anos de existência, o BDMG Cultural teve a honra de receber inúmeros talentos que apresentaram ao público seus trabalhos em nossa Galeria de Arte. Aproveitamos a ocasião de aniversário para revisitar nosso acervo de artes visuais e pensar lugares que artistas mulheres ocupam, ocuparam e ainda podem ocupar tanto nele quanto no panorama das artes em Minas Gerais
Toda pesquisa pressupõe um recorte e, ao ser convidada a fazer a curadoria da exposição comemorativa dos 35 anos do BDMG Cultural, resolvi abordar as obras de artistas mulheres, foco do meu trabalho como professora da UFMG e pesquisadora da história de mulheres artistas em Belo Horizonte e Minas Gerais. Em estudos de viés histórico sobre a produção artística em locais determinados, as coleções formadas nas instituições são um objeto fundamental de análise, e, ao longo de 35 anos, o BDMG Cultural constituiu relevante acervo com obras de artistas que, de algum modo, relacionaram-se com a instituição ao longo de sua existência. Desde o início do meu trabalho de curadoria, antes mesmo de analisar minuciosamente a coleção, minha percepção era de que essa seria uma das coleções mais equilibradas em termos do número de obras de artistas mulheres e artistas homens, justamente pelo número de exposições de artistas mulheres que recordava ter visitado na Galeria. E realmente, a pesquisa demonstrou que mais de 50% do acervo do BDMG Cultural é composto por obras criadas por mulheres.
Iniciado em fins da década de 1980, o acervo artístico do BDMG Cultural abriga, no momento de escrita deste texto, mais de 260 obras, compondo, assim, um panorama interessante e diverso da produção artística contemporânea em Minas Gerais. A maior parte dessas obras foi doada pelos próprios artistas que expuseram na Galeria de Arte e está disponível para consulta online e visitação na própria sede do instituto.
Por reunir um conjunto diverso de linguagens e registrar a produção de alguns artistas em diferentes momentos de suas carreiras, considero a coleção do BDMG Cultural bastante representativa da cena das artes visuais mineiras dos últimos anos, pois nos permite ter uma perspectiva microscópica e temporal do que ocorria no estado em termos de produção artística. O incentivo da instituição às artes visuais nessas últimas décadas foi responsável por primeiras exposições individuais de artistas relevantes no cenário das artes em todo o Brasil, como é o caso de Efe Godoy, cuja obra estará na exposição comemorativa dos 35 anos, e Paulo Nazareth, reconhecido hoje nacional e internacionalmente e que expôs em 2008 na Galeria de Arte do BDMG Cultural. Sonia Gomes também realizou a mostra “Um Lugar” nesse mesmo ano de 2008, no momento em que se destacava nas artes no Brasil. Jorge dos Anjos, hoje reconhecido por seus 50 anos de carreira, expôs no BDMG Cultural em 1989, integrando o evento “Primeiro mês da cultura afro-brasileira e norte-americana”, quando foram exibidas três esculturas em ferro fundido no pátio do instituto. O mesmo artista também realizou a marcante exposição-instalação “Instante Infinito” junto com Ricardo Aleixo em 2017, que, além de diversas obras suas, contou com uma performance intimamente relacionada às vivências afrodiaspóricas. Em artigo apresentado poucos meses depois, a historiadora da arte Marília Andrés Ribeiro nos conta um pouco do que foi essa performance: “Jorge estende uma folha de papel plastificado no chão ou numa mesa, desenha os pontos dos orixás com cola, derrama a pólvora sobre o desenho e joga o fogo que incendeia a pólvora, deixando as marcas dessa ação no papel de plástico. Jorge transforma os pontos de fogo usados nos rituais de purificação do Candomblé em desenhos de fogo”.
Diante de uma coleção com tantos registros marcantes, a escolha por analisá-la pelo ângulo específico da produção das artistas mulheres revela um protagonismo presente desde os seus primeiros anos. Ainda em 1989, por exemplo, dois lados da arte em Minas se encontram: o que geralmente é nomeado como “arte popular”, com a exposição “Cerâmica de Itinga e Caraí — Vale do Jequitinhonha”; e o da chamada “arte contemporânea”, com a individual da gravurista mineira Mônica Sartori, que, com suas linhas, aponta caminhos para a arte feita por mulheres em nosso estado. A multiplicidade de formas artísticas sempre esteve presente na proposta do BDMG Cultural, e a arte popular sempre se encontrou com a arte contemporânea em seus espaços.
O ato de colecionar é um ato de recortar partes de um mundo existente e selecionar o que dele se pretende deixar em um determinado espaço, fomentando a existência desses objetos por um tempo estendido. Percebemos, ao longo desses últimos 35 anos, a constante profissionalização do BDMG Cultural e o compromisso em ampliar de forma organizada o seu próprio acervo.
As obras doadas que constituem a sua coleção se originam especialmente dos editais do Ciclo de Mostras, realizados anualmente desde 2001. A cada edição, uma banca diferente de especialistas seleciona as propostas e os artistas que irão compor o programa daquele ano, sendo que, nos próprios editais, já está prevista a doação de um trabalho escolhido pelo artista, em diálogo com a equipe da instituição. Assim, a pesquisa conjunta no acervo documental e no acervo artístico mostrou como o programa expositivo foi aprimorado.
A condição feminina e a coleção do BDMG Cultural
Nas últimas décadas, a escrita sobre mulheres artistas tornou-se um dos principais temas dos mundos das artes. Há mais de 50 anos, em 1972, era publicado o texto “Por que não houve grandes mulheres artistas?” pela historiadora da arte estadunidense Linda Nochlin, considerado fundamental por inserir explicitamente a temática nas pesquisas sobre artes. Anteriormente à publicação desse texto, o movimento feminista dos anos 1960 clamava por um novo lugar social para as mulheres. Uma revolução, por vezes silenciosa, por outras nem tanto, já começara a tomar corpo a partir da presença de mulheres artistas em academias e escolas livres de arte, como amadoras e, principalmente, como profissionais, desde o século XIX.
Uma das primeiras estudiosas da presença de mulheres nas artes do Brasil, Ana Paula Cavalcanti Simioni remonta a presença de mulheres artistas ao final do século XIX e início do XX na Academia Nacional de Belas Artes. As mulheres ingressam nos mundos das artes rompendo barreiras de gênero, mostrando que são capazes de produzir a partir dos códigos e formas existentes, mas também trazendo formas próprias de existência e expressão criativa.
Para ampliarmos nosso repertório sobre mulheres artistas e suas produções, é fundamental estudarmos as realidades locais. Assim, um dos focos do recorte curatorial que propusemos em nossa pesquisa pelo acervo do BDMG Cultural está na diversidade presente na produção das artistas em termos de materiais, suportes, temas e expressões artísticas, sem realizar uma curadoria restritiva sobre o que se define como arte de mulheres cisgêneras e transgêneras. Para além do acervo artístico, o acervo constituído por fotografias e documentos também se mostrou material fundamental para a memória das artes visuais em Minas Gerais. Outra parte importante, refletindo sobre o significado do BDMG Cultural em termos de incentivo às artes em geral, não somente às artes visuais, são os prêmios dedicados à música, que, ao longo dos anos, contemplaram várias artistas mulheres cujas obras também estarão na exposição comemorativa.
Gostaria, ainda, de frisar o trabalho realizado sobre o acervo por parte da equipe dos funcionários da instituição. A pesquisa foi realizada no arquivo documental do BDMG Cultural, com documentação desde a primeira exposição, realizada em dezembro de 1988 com obras de Alberto da Veiga Guignard, até documentos atuais, referentes ao Ciclo de Mostras de 2023. Além do acesso à documentação, possibilitado pelo esforço dos trabalhadores da instituição em manter viva a memória constituída ao longo desses 35 anos, foi central o trabalho realizado por Márcio Sampaio e Marconi Drummond na ocasião do aniversário de 30 anos. Os artistas foram responsáveis pela pesquisa e curadoria que culminou na produção da publicação Arte sempre: o catálogo do acervo, de 2019. O catálogo reúne registros fotográficos e informações acerca de 145 das 242 obras que compunham o acervo à época.
A terra, o barro, corporalidades, além das minas de ferro
Não sou idêntica a mim mesma
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto de vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria
Sou a própria lógica circundante
(“Poema óbvio” — Ana Cristina César)
Nosso recorte curatorial buscou focar nas obras de artistas mulheres que expuseram no BDMG Cultural nos últimos cinco anos. Foram selecionadas 51 obras, algumas de autoria de duas ou mais artistas, para integrarem a exposição “Não sou idêntica a mim mesma: mulheres artistas no acervo do BDMG Cultural”. Nesse período selecionado, exposições de mulheres aconteceram em todos os anos. No Ciclo de 2019/2020, anos de pandemia de Covid-19, as artistas Esther AZ e Eugênia França, com poéticas distintas, realizaram individuais na Galeria de Arte do BDMG Cultural, uma enfocando a memória pessoal entrelaçada em matérias diversas com o cotidiano, caso de Esther AZ, e a outra, a denúncia da violência contra a mulher, abordada nas pinturas de Eugênia França. Temas que tanto sentido fizeram em tempos de pandemia.
Em 2021, Clarice G. Lacerda, em individual intitulada “Longo prazo”, reuniu obras em que o fazer artístico múltiplo — de fotografias, objetos, cadernos — se encontra pelo seu fazimento comum, no qual um tempo suspenso transforma-se em objeto representativo do ato. A exposição de Lucimélia Romão e Jéssica Lemos, também realizada em 2021, apresenta foto-performances em que o corpo está no centro. São corpos reinscritos no mundo, suas corporalidades afro em diálogo com o espaço e com a crítica social.
No ano de 2022, apresenta-se a paisagem das Minas fraturadas pela mineração, na exposição “Quando o Tempo dura uma tonelada”, do duo Paisagens Móveis, composto por Bárbara Lissa e Maria Vaz. Outra paisagem possível é enfocada em “Terreiros — às margens do velha”, de Massuelen Cristina: a paisagem dos rios, fundante das comunidades abordadas pela artista. No ciclo de 2023, o corpo feminino se torna central nas exposições de Vânia Barbosa, “Impregnação”; Yanaki Herrera, “Warmiwasi: lutas coletivas e subjetivas”; e Priscila Rezende, “Aqui jaz”. São exemplos fascinantes de artistas de gerações e origens distintas, que representam a diversidade que propusemos na exposição “Não sou idêntica a mim mesma”.
A seleção das obras se deu a partir de uma curadoria composta por quatro núcleos. No primeiro núcleo, Arqueologia, são homenageadas as que vieram antes a partir das obras de duas artistas da geração Guignard, Sara Ávila e Solange Botelho. Reverenciamos as duas como mulheres artistas que abriram caminho para que outras mulheres pudessem trilhar sonhos e existências. No núcleo Terra, o foco é na cerâmica, pigmentos e barro. Nas obras aqui reunidas, reforçamos que, da nossa terra, se extraem pigmentos que servem a bordados e fotografias. Da nossa terra, brotam cerâmicas e formas tridimensionais, arte popular, arte contemporânea.
O barro do núcleo Terra se mistura ao núcleo Corpo e corporalidades, a partir de cerâmicas que mostram a terra transformada pela ação humana criativa, não predatória, criando novas formas e expandindo para imagens fotográficas que mostram a paisagem, compreendida em seu sentido humano e natural. Em oposição à ideia de que Minas não há mais, importa mostrar que Minas são muitas. Nas fronteiras de Minas, encontramos a arte sem fronteiras. Por fim, o corpo múltiplo do terceiro núcleo aponta para o quarto núcleo, Múltiplas matérias, múltiplas formas, no qual pinturas e desenhos figurativos e abstratos trazem a forma, a imaginação, o sonho, a existência plural de mulheres no mundo. Como em um mundo diverso do apontado por Ana Martins Marques, em diálogo com Carlos Drummond de Andrade:
No meio do caminho
a falta da pedra
(minerada):
oco
na paisagem que
o olho fatigado
(como a um cisco)
não esquece.
(“Quatro pedras” — Ana Martins Marques)
As artistas cujas obras foram selecionadas para compor a exposição são: Solange Botelho e Sara Ávila; Luciana Radicchi, Lorena D’Arc, Vânia Barbosa, Emilia Sakurai, Aneli Brandão, Laila Kierulff, Bordadeiras do Curtume, Mulheres da Ponte, Liliza Mendes, Erli Fantini e Lira Marques; Mariana Fonseca Laterza, Eliane Roedel, Iara Ribeiro, Poliana Nascimento, Isabel Rodrigues, Jade Liz, Márcia Guimarães, Lucimélia Romão e Jéssica Lemos, Yanaki Herrera, Ana Luiza Magalhães, Isabela Prado, Eugênia França, Massuelen Cristina, Efe Godoy e Priscila Rezende, Mônica Sartori, Esther Az, Maria do Carmo Freitas, Duo Passagens Móveis — Maria Vaz e Bárbara Lissa, Clarice G. Lacerda, Maria do Céu Diel, Camila Otto, Cristiani Papini Arantes, Juliana Gontijo e Tatiana Cavinato, Priscila Heeren, Carolina Botura, Sônia Gomes, Virginia Braccini, Lauren Marinho, Ana Maria Braga, Sara Lambranho, Sabrina Azevedo Hemmi, Noemi Assumpção, Rosceli Vita, Edna Moura, Niura Bellavinha e Sara Lana.
Pelas mãos das mulheres, brota a arte. Suas existências nas Minas gerais, plurais, cosmopolitas, onde o local e o global se encontram, marcam presença no acervo através de fotografias, vídeos, pinturas e gravuras. O corpo aparece como tema em várias peças. São corpos de mulheres — primordialmente, imaginados por mulheres — e também de crianças e homens. O corpo sofrido, o corpo celebrado, a solidão, a violência, o fantástico.
Diversidade de materiais, de linguagens, de expressões artísticas que ocupam os mundos das artes, não enquadrando um ser mulher único e rígido. O mundo se abre em formas, cores, suportes, perspectivas, imagens múltiplas em universos imaginados por mulheres. Não há um modo de fazer feminino, modos de fazer de mulheres são múltiplos. Nem só de figuração vive a produção de mulheres. Em abstrações, em quase abstrações, em recortes precisos e imprecisos de fotografias, as mulheres mostram que fazer arte é praticar liberdade.