REVISTA nº 3

Sertão das mulheres – entre raízes e tecidos

A terra seca e a poeira da estrada colorem o horizonte de marrom e alaranjado. Entre os tons do Vale do Jequitinhonha, destacam-se também pontos de cor – no verde do mandacaru e da palma, nas diferentes roupas das mulheres. Tecelãs, bordadeiras, benzedeiras, parteiras, tamborzeiras, jogadoras de verso. Nos estandartes, são representadas como anjas.

Lívia Campolina
04 Nov 2020 8 Min
Sertão das mulheres – entre raízes e tecidos
Bordadeiras do Curtume. Foto: Érika Riani

O trato das galinhas, o batuque dos tambores, burrinhos que andam pra lá e pra cá. Um lobo-guará te encara de frente, uma roda de músicos evoca as comemorações do passado. A partir das linhas, do tear e dos encontros, tudo isso aparece no trabalho das Mulheres do Jequitinhonha. Este projeto, da Associação Jenipapense de Assistência à Infância (Ajenai), assessora dois grupos – as Bordadeiras do Curtume e as Tecelãs de Tocoiós. Por meio do resgate dos saberes e da geração de renda, as mulheres se fortalecem e criam sua própria rede de apoio.

“Meu trabalho é de muita escuta”, diz Viviane Fortes, coordenadora do Bordadeiras do Curtume. “Não trabalhamos só o produto, e sim o contexto, se a mulher está bem, saudável, com a cabeça ruim, a coluna doendo… Vamos trabalhando a partir da necessidade e da potência delas.”

Assim começou, em 2015, sua atuação no Curtume, área rural e quilombola em Jenipapo de Minas.

“Um certo dia, Viviane veio na minha casa e viu alguns dos meus bordados. Eles estavam lá, em cima da mesa, da televisão… Ela viu e gostou muito. Eram simples, eu não tinha muito recurso. Mas ela gostou. E, me perguntando sobre o que eu queria de melhoria na comunidade, fui contar a história do bordado”, conta Marli de Jesus da Costa.

Marli, que é bordadeira, tingideira, parteira e jogadora de versos, também é descendente de um dos fundadores da comunidade, Joaquim Teodoro. Segundo ela, seu tataravô foi quem trouxe a tradição do ponto cheio para o Curtume, técnica de bordado própria da região.

“Na época eu não tava muito legal, tava meio adoentada. Falei com ela que a minha vontade seria ter um grupo pra gente se encontrar, trabalhar junto, deixar de lado a televisão e ter um vínculo de amizade… Reviver os encontros que tínhamos antigamente, com todas aquelas coisas que só os antigos sabiam.
E eu tinha aquela raiz comigo: o bordado tava na minha família.”

Segundo Viviane, o desejo de se encontrar e produzir algo manual foi unânime entre as cerca de 30 mulheres que entrevistou na época. A escuta foi proposta pela Ajenai após observar alto índice de depressão entre a população feminina do Curtume.

Em uma área rural de poucas oportunidades, é comum que os homens saiam de casa para trabalhar na colheita de cana, café ou algodão, ficarem meses fora – e por vezes não retornar. Com a saúde física e emocional fragilizada, essas mulheres revelaram o desejo de se fortalecerem por meio do encontro, do trabalho e da amizade. Assim nasceu o projeto Bordadeiras do Curtume.

O bordado em ponto cheio foi relembrado por quatro mulheres que ainda dominavam a técnica, ensinando às demais. Os desenhos foram fruto de oficinas entre as bordadeiras, que foram trazendo elementos da região para o trabalho. Na época, Maria do Carmo Guimarães pediu ao filho, Diogo, que ilustrasse animais dos presépios que confeccionavam no Natal.

Trabalho das Bordadeiras do Curtume. Foto: Érika Riani/AJENAI

Do primeiro cabritinho, que Marli lembra como sendo o desenho que mais lhe chamou a atenção na época, os bordados foram se desenvolvendo para abarcar também os mandacarus, os burros e as galinhas, a música, as mulheres e a fé.

Em 2017, as bordadeiras receberam também uma consultoria da designer têxtil Ana Vaz, que culminou no lançamento da primeira coleção do grupo, intitulada “Estandartes do Curtume”.

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A 20 quilômetros de Jenipapo de Minas, ainda no Médio Jequitinhonha, do galpão das tecelãs ouve-se um forte batuque. Apesar de lembrar o “batuco”, que acompanha danças de roda em comemorações do Vale, este é um som de trabalho. A batida do algodão, realizada pelos braços fortes das Tecelãs de Tocoiós, comunidade em Francisco Badaró.

O processo, no entanto, começa muito antes, nos canteiros de casa, entre um afazer e outro. Essas mulheres, agricultoras em primeiro lugar, plantam, capinam e colhem na roça.

Em seus quintais e matas do semiárido, resistem algodoeiros arbóreos, cuja variação parda se encontra apenas no Jequitinhonha. Este é o tipo de algodão ideal para fiandeiras e tecelãs que, por ali, podem colher diretamente da terra.

Depois de colher o algodão, é preciso descaroçar e, então, bater. Para tingir, usam plantas e raízes. Após separar a fibra das sementes, fiar e urdir os fios, começa o trabalho da tecelagem.

 

Maria Emília Alves da Silva, a Dona Mila, conta como aprendeu todo esse processo com a avó e as tias: em comunidade.

“As fiandeiras se reuniam desde sempre, cada dia na casa de uma, para tecer juntas. Junto com as comadres, a gente fiava, cantava, jogava verso, descaroçava algodão, cozinhava… A vida toda nossa foi assim mesmo: comecei a mexer com artesanato desde os 7 anos de idade. Enquanto minha avó e minhas tias fiavam, eu mexia com os novelinhos.”

Em 1987, as Tecelãs de Tocoiós se formalizaram como associação, para ajudar mulheres a gerar sua própria renda e a se manter sem precisar deixar a comunidade.

Hoje, trabalham junto à Ajenai para ampliar o plantio de algodão, se aprimorar no tingimento e no uso de diferentes tramas para tecer. O cultivo é sustentável, o tingimento é natural, tudo seguindo o ritmo da natureza – que aprenderam a acompanhar observando os mais velhos.

Dona Mila no tear. Foto: Érika Riani

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Andar na mata seca com as mulheres do Jequitinhonha, conta Viviane, é descobrir os usos de cada casca, raiz e folha pelo caminho.

“Conheço bastante as plantas porque meu pai e minha tia, que é raizeira e parteira, me ensinaram tudo o que sei. Os remédios, como fazer, pra que servem, como tomar… E a minha avó fazia antigamente todas suas roupas, fiadas com algodão, tingidas com lama e casca,” relembra Marli, do Curtume.

Tanto as Tecelãs quanto as Bordadeiras resgatam da tradição o tingimento natural dos fios que utilizam nas peças. Das cascas da Aroeira, rosa e marrom. Do fruto do Jenipapo, azul acinzentado. Com casca do pé de manga, o tom verde amarelado e, com urucum, alaranjado.

Tingimento com urucum. Fotos: Mulheres do Jequitinhonha/Reprodução Instagram

Tingui, casca da cebola, gema do ovo, mangueira, anil, murici do cerrado, anjico, romã, pequi, amoreira, erva de passarinho e tantos outros, fervidos por horas. Com muito cuidado, Marli conta que ela sua companheira de tingimento, Maria Aparecida, a “Nêga”, escolhem a “lua certa” para passar o dia todo realizando o processo.

Queimou carvão, quero ver carvão queimar
E eu canto para Nêga até o dia clarear
Nêga é bonita, bonitinha, Nega é
Parece um cravo branco nos pezinho de São José
Ah, quem me dera uma chuva bem fininha
Pra molhar a sua cama e Nêga vim dormir na minha
Queimar carvão, quero ver carvão queimar
Eu canto para Nêga até o dia clarear

No perfil @rodadeverso, no Instagram, Marli jogou um verso de bem-querer para a amiga.

 

Uma tarde de trabalho com as mulheres do Jequitinhonha vem acompanhada de muita cantoria e contação de história. No improviso, também jogam verso, tradição que durante a pandemia de Covid-19 viajou o Brasil em um novo projeto: Versinhos do Bem-Querer.

Para “jogar” um verso para alguém, uma pessoa canta algo novo ou de um repertório já tradicional. Esse verso pode ser de bem-querer ou desafio – e quem o recebeu tem a chance de responder com seu próprio versinho.

Durante o isolamento social, os versos começaram a circular online. A partir de uma articulação da Ajenai com algumas mulheres dos projetos, elas espalharam o bem-querer e ainda conseguiram gerar renda para suas comunidades no Vale do Jequitinhonha.

No site www.versinhos.com.br, ainda é possível comprar um versinho. Funciona assim: a pessoa interessada fornece informações sobre a pessoa para quem vai jogar o verso e as mulheres do Jequitinhonha criam, gravam e o enviam para ser compartilhado em áudio.

Até Chico Buarque entrou na roda, depois de receber um versinho de Marli. A filha do cantor, Helena Buarque de Holanda, havia encomendado o presente para uma amiga e Marli, aproveitando a oportunidade, acrescentou um segundo áudio na hora de enviar:

A lua já vem saindo
De trás do pé de fulô
Não é lua não é nada
É o Chico puro amor
Joguei meu barquinho na água
Com carinho e amor
Chico você é tão lindo
Que nem sereno na flor

Dias depois, Marli recebeu a resposta, cantada pelo próprio Chico:

Durante a noite inteira
Escuto como quem sonha
A Marli bordadeira
Lá de Jequitinhonha

Com mais de 4 mil versinhos vendidos, a renda será revertida para projetos em sete comunidades, incluindo a de Tocoiós, que se prepara para começar novo plantio de algodão.

O grupo ainda realizou uma performance que estreou on-line no Circuito Cultural UFMG, disponível no canal Cultura UFMG no Youtube.

 

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“Antes da pandemia, começamos um novo grupo de aprendizes aqui no Curtume. Agora, elas tão bordando em casa – mandam o paninho pra gente, a gente analisa com o devido cuidado e vai ensinando as mais novatas,” conta Silvana Ferreira, uma das bordadeiras que está no grupo desde o início.

“Não só eu, mas várias – a maioria – aprenderam com as mais experientes: Carmen, Diva, Toninha e Dona Sena. Fomos aprendendo uma com a outra, e hoje a gente consegue ensinar.”

Para Silvana, mesmo essas aulas à distância são uma satisfação. Ela conta da alegria imensa de passar o saber da comunidade para as novas gerações.

Jaquielly Gomes de Sousa, em Tocoiós, ecoa a mensagem: “Antes de entrar para os projetos, talvez tudo isso podia passar batido pra mim. Eles me ajudaram a valorizar ainda mais a minha identidade”.

Jac é a mais jovem tecelã do grupo, com 22 anos. Ela aprendeu a arte logo após a mãe, Maria de Jesus, quando esta entrou para a associação em 2014. O talento é de família – a avó de Maria também era tecelã.

Jac e Maria de Jesus. Foto: Érika Riani

Jaquielly e Maria, que também é benzedeira, fiandeira e mãe de quatro filhos, experimentaram a potência de trabalhar juntas com os saberes do Jequitinhonha.

“Com a ajuda das mulheres que mostram a beleza que a gente já tem e não conseguia enxergar, a gente consegue se fortalecer cada vez mais”, diz Jac.

Lívia Campolina

 

é jornalista e publicitária, especialista em social media. Ensaia ser escritora e reúne leitoras no grupo Palavra de Mulher, clube para ler e discutir obras femininas em BH. Experimenta diferentes formatos em seu Medium, @acampolina

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