Bordejo
Dentro do meu corpo passa, lenta, uma rua entrecortada por outras ruas que se movem todo o tempo em busca de outras possíveis ruas que porventura nasçam dentro do meu corpo como se fossem rios e não ruas.
Como eu já disse, o povo da rua não desgruda o olho de mim, não sabe? Proteção. Porque eu canto a rua. Eu sou da rua. Quase não saio de casa, nestes tempos de peste, mas vou vivendo com a rua no pensamento. No coração. & quando me dá na veneta de fazer uma ruaçãozinha, de leve, eu faço, sim, porque sou filho de Ogum, mas não sou de ferro. Sendo um Zé qualquer, também. De José. Ricardo José.
Certa noite a bombogira me disse, rodopiante, o dedo bem na minha cara, que apesar de eu ser meio atrapalhado ela gosta de mim. Já um dos velhos não tolera é que eu fique parado em esquina. Aí eu vou e obedeço. Não paro.
Dentro do meu corpo passa, lenta, uma rua entrecortada por outras ruas que se movem todo o tempo em busca de outras possíveis ruas que porventura nasçam dentro do meu corpo como se fossem rios e não ruas.
Eu não sei sempre o que é corpo. O que é um corpo. O que é meu corpo. Redigo para mim mesmo, de quando em quando, um fragmento do meu poema Gertrude Start: “O que é corpo? E se você sabe o que é corpo, o que não é corpo?”
Dentro do meu corpo passa uma rua entrecortada por outras ruas que se movem todo o tempo em busca de outras possíveis ruas que porventura nasçam dentro do meu corpo como se fossem rios e não ruas. Escrevo meu corpo mesmo sabendo que não sei o que é corpo, um corpo, meu corpo.
Daqui de onde escrevo agora eu vejo uma parte da cidade. Uma parte até bonita. Com praça e tudo. Do alto. Eu nunca tinha visto Belo Horizonte como tenho visto desde que Ela veio morar aqui. Há quantos meses mesmo? Ela já teria brincado com o “meses mesmo”. Ela, que não gostava de trocadilhos até começar a me namorar, passou, primeiro, a tolerá-los (quando eu expliquei, meio por blague, que preferia gastar em ambiente íntimo esses adoráveis jogos de linguagem do que correr o risco de transformá-los, como fazem tantos poetas, em versos “cabeçudos” como os de X, os de P e os de T), e depois, a criar as próprias gozosas paronomásias.
É bonito ver o que acontece, bem neste instante, visto assim do alto, e que mais parece cinema, sei lá, um filme com roteiro escrito por um Georges Perec, sei lá, uma tentativa de esgotamento, sei lá, do que consigo anotar do intenso fluxo lá embaixo.
É que, contemplada através do vidro, a cidade se torna uma outra coisa [“Se observarmos a rua através da janela”, escreveu V. Kandinsky, “seus barulhos são atenuados, seus movimentos são fantasmagóricos e a própria rua, por causa do vidro transparente, mas duro e rígido, parece um ser isolado palpitando num além.”]
Ouvir o que ouço daqui de onde escrevo não é tão agradável. Barulho de carros e ônibus, todo o tempo, a noite inteira, sem qualquer intervalo ao longo do dia. Só fica interessante quando, em meio a alguma tarefa, como agora, percebo o gotejante e suave contraponto que a pequena fonte com água para os gatos, bem aqui do meu lado, faz aos motores e às buzinas lá embaixo. [“Mas”, continua V. Kandinsky, “abramos a porta: saímos desse isolamento, participamos desse ser, tornamo-nos ativos nele e vivemos sua pulsação por todos os nossos sentidos.”]
Lá embaixo é a cidade. Lá embaixo sou eu, são pessoas a pé, dezenas, centenas, milhares, quase ninguém, e sempre com pressa. Todas têm pressa, muita, às vezes, muitíssima. Mesmo eu, que me gabo de ser do tempo lento, muito lento, muito lentíssimo, muitíssimo lentíssimo, ricardoalentíssimo, tenho sempre mais pressa do que penso ter.
Dentro do meu corpo passa uma rua entrecortada por outras ruas que se movem todo o tempo, como eu já disse, em busca de outras possíveis, compossíveis e incompossíveis ruas que porventura nasçam dentro do meu corpo como se fossem rios e não ruas. [Não sei onde vai dar essa cantilena que anotei outro dia, mal saído do sonho, envolvido pelo breu silencioso da madrugada, na minha casa, que fica naquela lonjura benfazeja chamada Campo Alegre. Que ninguém sabe onde fica. O vento sabe, porque é lá que ele faz a curva e volta a ser raiz fincada no fundo infinito das nuvens].
Daqui de onde escrevo agora eu vejo uma parte da cidade que ainda não sei se gosto. Da cidade eu aprendi a gostar de novo. Aos poucos. Quase contrariado por ainda gostar, por voltar a gostar, por gostar mais do que eu imaginava gostar.
Como eu já disse, dentro do que chamo de meu corpo passam várias ruas entrecortadas por outras incontáveis ruas que se movem todo o tempo em busca de outras possíveis e até impossíveis ruas que porventura nasçam dentro do meu corpo como se fossem rios, ribeirões, córregos, e não ruas (nem avenidas nem travessas nem praças).
Eu sei, vez ou outra, o que é corpo. Ou acho que sei. O que é um corpo. O que é meu corpo. O que é o corpo da pessoa minha amada e que me considera o seu amado. O que é a cidade como um corpo. Um corpo sonoro. Que dança, apesar de sua aparente imutabilidade. Existirá algum dia uma cidade dançante, dançável, dançarina? Duvideodó.
Um dia eu vi uma moça apaixonada falando ao celular. Como sei que ela estava apaixonada? Ela dançava, o rosto todo aberto em risos de alegria, o corpo também rindo. Era uma moça negra, óbvio. Óbvio? Inóbvio. Como é inóbvia a visão de outra moça negra, certo álacre dia de muito tempo atrás [Um corpo-dissenso. Com pouca roupa por cima. Que mal cabia, ali perto de onde as pernas se encontram, dentro do minúsculo short-jeans com que ela saiu para o shopping de sábado à tarde, uma criança em cada mão. Mais para gorda. Altivez. De rainha? De operária virada em deusa jeje-nagô. Passos firmes. Cadenciados. Bonita e gostosa ao modo dela. Cara de riso medido, para poucos, propensa a ironias. Decotão. Cabelos presos no alto da cabeça. Você talvez nem percebesse uma mulher assim. Comum. Esqueça mulata globeleza, ideias de sexo bom e barato. Ela certamente não olharia para você, meu querido amigo branquelo & pós-democrata racial. Não, nem me olhou. Ela não parece ser uma daquelas que dependem da opinião da gente até para respirar. Não mesmo.]
O que é corpo? O que é um corpo negro? O que é um corpo negro descapturado e à solta na selva das cidades?
Um amigo me falou, outro dia, que há algo de “sambístico” – como dizia a gente negra das primeiras décadas do século XX – no meu modo de andar pelas ruas e avenidas do centro da cidade. Que coisa mais gozada. Ando como ando porque preciso gingar, a cabeça erguida e os braços soltos, para não perder o equilíbrio e acabar estatelado no chão. Por causa da cegueira monocular, que, desde os 18 anos, me faz ver tudo, o mundo todo, pela metade, sem profundidade nem contornos, por trás da lente muito grossa, de alta miopia. Ver com um único olho faz da cidade, dos carros e das pessoas que velozeiam na minha frente uma mancha (vídeo)gráfica compacta de imagens ainda mais fugidias do que já são de fato. Nem sempre eu acho ruim que seja como é.
Em tais momentos, é frequente eu me sentir uma personagem de filme. Qualquer filme que tenha música e gente negra andando sem rumo definido, com aquela elegância felina que se vê, por exemplo, num Luiz Melodia ou num Itamar Assumpção – dois dos artistas nossos que melhor proveito estético tiraram dos possíveis do próprio corpo, dos cortes de cabelo ousados e das becas sempre muito transadas, tudo isso entendido por cada um deles (“Quem é cover de quem?”, Itamar pergunta e repergunta numa canção-sarro) dedicada como um elemento composicional a mais, tão importante quanto os textos, as melodias, as harmonias, os ritmos, os arranjos e as performances vocais e instrumentais.
O povo da rua é tudo amigo meu. Porque eu canto a rua. Sou da rua. Ruas me atravessam, eu já disse. Soam desde dentro de mim. Bispo do Rosário disse, no documentário O prisioneiro da passagem, de Hugo Denizart, que ouve vozes. Eu também ouço vozes enquanto deambulo pelas ruas da cidade. As vozes das pessoas no meu entorno imediato, sim, mas também outras, talvez as dos parentes do felino em que preciso me transformar para não cair. [O “Exu afelinado” do meu poema Cine-olho, sou eu, está mais do que visto: há mesmo quem leia/escute o verso “um ponto riscado a laser” como uma permutação pelintra do meu nome, o que muito me agrada, embora o inconsciente tenha feito todo o trabalho por mim].
Eu não sei sempre o que é corpo. O que é um corpo. O que é meu corpo, ainda mais quando eu todo me felinizo, me onço, jaguaretê perdido no cinza horroroso da anti-selva que o pessoal branco chama de cidade. Redigo para mim mesmo, de quando em quando, um fragmento do meu poema Gertrude Start: “O que é corpo? E se você sabe o que é corpo, o que não é corpo?”
Daqui de onde continuo a escrever eu vejo uma parte da cidade. Uma parte até bonita. Com praça e tudo. Do alto. Eu nunca tinha visto Belo Horizonte como tenho visto desde que Ela veio morar aqui.
Minha morada, ao contrário da do meu amor, fica num buraco. O Campo Alegre inteiro é um buraco, e por isso, a minha casa é um metaburaco. De lá eu nem vejo nem ouço a cidade. Mal vejo um pedaciquinho da minha rua, para ser sincero, e, para ser ainda mais sincero acho isso muito bom.
Me perguntam, volta e meia, sobre o corpo negro. Como se eu tivesse a obrigação de definir um corpo negro. Logo eu, que sou menos de pensar o corpo do que de dialogar com o que o corpo (o meu, o das outras pessoas e o da cidade) pensa e propõe enquanto interpretante do pensamento sensível que é o mundo – esse mesmo mundo embrutecido, enfeiado, fedido, que a cada dia tenta, ainda mais, nos apequenar e invisibilizar.
Dizer, taxativamente, o que é um corpo negro, eu que nem sei o que é um corpo, não posso e não quero. Mas posso e quero e vou é mudar em poema um conceito da física que sempre me ocorre quando penso em modos de pensar-sentir de bicho aceso na encruzilhada e no meio do redemunho que é a cidade:
Um corpo negro é um corpo
hipotético
que emite
(
ou absorve
)
radiação
eletromagnética
em todos os comprimentos
de onda,
de forma que: toda a radiação
incidente é completamente absorvida,
e em todos os comprimentos de onda
e em todas as direções
a máxima radiação
possível para a
temperatura
do corpo é
emitida.
A cidade sou eu. E eu sou muitos. Atravesso os vidros de onde observo a parte da cidade que consigo ver daqui de onde escrevo estas notas erráticas e viro uma parte a mais da cidade lá embaixo. [“A alternância contínua do timbre e da cadência dos sons” me envolve, “os sons sobrem em turbilhão e subitamente se esvaem”, como já predissera V. Kandinsky]. Sou muitos, pessoa-muitas, todo mundo já sabe. Vantagem nenhuma: todo mundo é muita gente. A diferença é que eu sei que sou o que sou. Tanto que minha poesia, hoje, é isso, é esse não saber que mais lembra o das pessoas-nuvens, o das pessoas-árvores, o das pessoas-rios, o das pessoas-bichos, o das pessoas-sons.
Eu sou um som. Uma alternância contínua de timbres, alturas, intensidades e durações. Uma pessoa-som viva, muito viva, à solta na anti-selva que é a cidade. No meio da encruzilhada – essa trama de entrelugares que se arma, todo o tempo, à nossa frente, do nosso lado, à esquerda e à direita, acima e por dentro de nós, dentro.
Este escrito é um bordejo.
Ricardo Aleixo
é artista-pesquisador intermídia, ensaísta e editor. Suas obras mesclam poesia, artes visuais, vídeo, dança, performance, música e design sonoro. Tem 15 livros publicados. Além do Brasil, já se apresentou na Alemanha, Argentina, Portugal, México, Espanha, França, EUA e Suíça. Desenvolve seus projetos de pesquisa, criação e formação no LIRA/Laboratório Interartes Ricardo Aleixo, situado no bairro Campo Alegre, periferia de Belo Horizonte.