Vizinhança e Imagens

Imagens que aproximam

Micrópolis
28 Mai 2020 14 Min
Imagens que aproximam

Depois de estender a roupa no varal do quintal, Maria José volta para a cozinha e, ao lado da geladeira decorada com alguns imãs de lojas de gás, se acomoda para fazer as unhas. Cuidadosamente, a mesinha que serve de apoio à garrafa de café e à vasilha de pão de forma é coberta com uma toalha de rosto roxa, já meio desbotada, onde Maria José coloca um pote de acetona, uma lixa e o esmalte.

“Malute, que barulho é esse?”, pergunta Norberto do sofá da sala, ao escutar um som estranho vindo do quintal. “Não sei Norberto, estou ocupada fazendo unha”, responde calmamente a esposa, desde a cozinha.

Esse poderia ser o cotidiano de qualquer casal de idosos em um dia comum, não fosse o estranho som vindo do quintal que insiste em atrapalhar a concentração de Norberto em seu programa de TV regado a biscoito de polvilho. Já sem paciência, ele sai em direção à área externa da casa para verificar o que estava acontecendo, e se depara com um portal brilhante que misteriosamente se abre pairando em frente ao varal.

Por que não imaginar um portal cósmico no quintal de dois idosos? Por que não pensar coisas estranhas vividas por pessoas comuns? – são algumas perguntas que costumam guiar os diretores da Filmes de Plástico quando vão produzir um novo filme.

Moradores desde a infância da periferia de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, Maurílio Martins, Gabriel Martins, André Novais e Thiago Macêdo criaram a produtora Filmes de Plástico com a ideia de tecer, através do cinema de ficção, uma perspectiva sobre o dia-a-dia de seus parentes e vizinhos nesse território até então pouco representado nas imagens destinadas ao grande público. Praças, quintais, padarias, calçadas e lajes – cenários que poderiam facilmente pertencer à nossa própria vizinhança – são palco de acontecimentos por vezes extraordinários, como grandes assaltos, ventanias que levantam as pessoas do chão e viagens a outros planetas.

Cartazes dos filmes No coração do mundo, Contagem e Temporada, produzidos pela Filmes de Plástico.

Mas longe de serem gratuitas, essas situações inusitadas são um interessante recurso para que nós, espectadores, vejamos os lugares e as pessoas que nos rodeiam com um olhar um pouco mais cuidadoso. Afinal, estamos tão acostumados à paisagem da cidade que pouco nos atentamos ao que acontece ao nosso redor, assim como quase nunca nos permitimos olhar nos olhos das pessoas com as quais cruzamos todos os dias. Como bem apontou a psicanalista Maria Rita Kehl em seu brilhante texto Olhar no olho do outro, todos nós, na banalidade de nossa vida urbana, somos pessoas comuns. E justamente por sermos comuns, precisamos estar disponíveis para reconhecer que tudo o que diz respeito aos outros também diz respeito a nós.

Gabriel Martins afirma que as pessoas da periferia sempre foram representadas pelas imagens (sejam elas filmes, fotografias ou reportagens de TV) de forma distanciada e generalizada. Por isso, tensionar a forma como enxergamos esses sujeitos é procedimento central para os jovens diretores da Filmes de Plástico, ao evidenciar as particularidades, contradições e complexidades dessas vidas que se perdem no ritmo cotidiano da cidade. A ficção – ou as situações estranhas e a invenção de personagens inusitados – aparece como uma forma de fazer essas pessoas saírem das caixinhas que a sociedade impôs a elas, como completa Gabriel.

Ficcionalizar a vida dessas pessoas é adicionar a ela uma camada de complexidade, revelando outros aspectos desses sujeitos que talvez não sejam apreendidos num cotidiano banal. Recurso através do qual passamos a entender melhor as ações do outro, abrindo maiores possibilidades de nos conectarmos com ele. Esse outro deixa de ser aquele que pouco conhecemos para se tornar alguém com quem nós facilmente poderíamos nos identificar – mudança de perspectiva até mesmo para os diretores, que desconheciam o potencial imaginativo dos próprios familiares que, não raro, participam dos filmes como atores e atrizes.

“Colocar essas pessoas que nunca atuaram, como os nossos pais, para representar personagens fictícios em um filme abriu nossa mente para um preconceito que nós mesmos tínhamos, de acreditar que essas pessoas não eram capazes”, revela Gabriel. “Mas há uma potência e uma beleza no cotidiano. Nosso território, assim como nossos familiares e vizinhos, são uma fonte infinita de criatividade”.

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Quando a artista Aline Motta chegou pela primeira vez em Vassouras, no Rio de Janeiro, também buscava olhar de outras formas para sua família através das imagens. Ou, melhor dizendo, partia das próprias imagens para tecer novamente a memória de seus antepassados, fortemente borrada pela experiência do processo histórico de escravização.

“Eu, filha de Everaldo e Vilma. Vilma, filha de Valdir e Doralice. Doralice, filha natural de Mariana. Mariana, filha natural de Francisca. Francisca, filha natural de quem?”, se pergunta a artista diante do incômodo hiato em sua linha genealógica.

Em seu trabalho Filha Natural, Aline sai munida de uma foto de sua bisavó Mariana à procura de vestígios de sua origem até chegar a uma fazenda de café, onde sua tataravó Francisca trabalhou como escravizada. Tudo o que descobre é um atestado de óbito de alguém com o mesmo nome e idade aproximada, listada como um dos “bens” dos proprietários da fazenda na época; e duas fotografias do antigo senhor do local com suas escravas, que usou para cruzar as informações encontradas e traçar uma possível trajetória de sua ancestral.

Fotografia estereoscópica, sobrepondo imagens do passado e do presente, produzida por Aline Motta durante suas pesquisas

Muita informação sobre os senhores da fazenda, pouquíssima sobre as mulheres escravizadas. Quem é que registra a história oficial? Quem escolhe aquilo que deve ou não ser contado? Porque a memória genealógica de uns é contada, escrita e tornada acessível e de outras é deixada de lado ou apagada? – poderíamos questionar junto com Aline. Nessa difícil jornada em busca de suas raízes, a artista encontra várias lacunas que a história oficial deixou para trás, e na impossibilidade de preenchê-las com dados igualmente oficiais, fabula hipóteses e conexões imaginárias. Ao encontrar a líder comunitária Claudia Mamede, que também participa do trabalho, Aline percebe uma notável semelhança física entre suas ancestrais e aquelas de Claudia, ao comparar as fotografias das duas famílias. “Será que somos parentes?”, indaga a artista.

Talvez não de sangue, mas de barco. Pessoas cujos antepassados sofreram a mesma experiência, de serem tiradas à força de seu continente para se tornarem escravizadas do outro lado do Atlântico. Experiência que até hoje reverbera no cotidiano de Aline, Claudia, e tantos outros negros e negras que compartilham a memória do sofrimento da escravidão, mesmo sem nunca a ter vivenciado.

Imaginar um parentesco fictício em relação a Claudia a partir das fotografias poderia ser, no fim das contas, uma forma de criar avizinhamentos entre sujeitos que, apesar de não se conhecerem, compartilham uma memória ancestral. Mais uma vez as imagens e a ficção são usadas como forma de aproximar pessoas através de afetos comuns: ao fabular sobre sua história pessoal e cruzá-la com outras trajetórias de vida, Aline propõe um rompimento com a verdade única das narrativas oficiais excludentes e opera uma história coletiva, ainda nebulosa, dos quase sempre violentos processos de formação das famílias brasileiras. Uma forma de nos familiarizarmos com aqueles e aquelas que nos são desconhecidos, mas dos quais poderíamos facilmente nos avizinhar através de nossas histórias.

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Uma garrafa de Coca-Cola e outra de Guaraná, esperando para serem abertas por Tio Ricardo. Sobre a toalha estampada com rosas vermelhas, vários copos de vidro – alguns que um dia foram potes de requeijão – e um prato com pasteizinhos de carne moída recentemente fritos pela Vó Rita. No centro da mesa, um enorme bolo de coco com abacaxi, decorado com um delicado escrito de parabéns. A vela, símbolo da comemoração do aniversário de três anos, acaba de ser acesa.

“Gente, está na hora dos parabéns! Quem não vier não ganha brigadeiro”, exclama a mãe ao apagar a luz. Marcos se posiciona ansioso bem ao lado do bolo, enquanto Aninha se certifica de que ele não vai colocar o dedo antes da hora certa. Joana, Kevin, Wellington e Samantha puxam o coro, e os coleguinhas de escola, junto com a tropa de primos e primas, seguem animados. Seu Afonso, do canto da sala, faz um sinal para todos olharem para a câmera: momentos como este não podem ser esquecidos.

Aniversário da Renata, Aglomerado da Serra, 1986

Esse poderia ser o relato de uma das inúmeras situações registradas em fotografias que compõem a coleção de toda uma vida dos fotógrafos João Mendes e Afonso Pimenta, recentemente reunidas pelo projeto Retratistas do Morro. João tornou-se um dos primeiros fotógrafos do Algomerado da Serra, em Belo Horizonte, em uma época em que as fotos eram para poucos. Afonso, por sua vez, dividia seu tempo entre o emprego de gari e o bico na loja de fotos de João, que viria a ser seu parceiro de trabalho entre os anos 1971 e 1982 – parceria que rendeu incontáveis fotografias por encomenda de festas, botecos, casamentos, batizados e cenas do cotidiano de uma das maiores favelas do Brasil.

Desse precioso acervo reunido e restaurado por Guilherme Cunha, organizador do projeto Retratistas do Morro, as fotografias dos bailes black dos anos 1970 são as preferidas dos moradores do Aglomerado da Serra. Frequentes – mesmo com a constante repressão policial dos tempos da ditadura militar –, os bailes reuniam uma multidão de jovens das periferias de Belo Horizonte que, através da música, despertavam uma consciência da própria negritude como potência cultural. História pouco representada pelas mídias oficiais, e que hoje podemos vislumbrar graças à atuação de profissionais também periféricos, como João e Afonso.

Ao organizar esse acervo e disponibilizá-lo como documento, Retratistas do Morro propõe a construção de uma outra narrativa possível para a história de Belo Horizonte. Uma narrativa multifocal, que para além das grandes avenidas e dos monumentos do centro, coloca em relevo uma vizinhança quase inexistente nos arquivos públicos, cartões postais e livros de história: uma cartografia visual não só de becos, barracões e salas de estar, mas também das profundas relações comunitárias que se fazem presentes nesses espaços.

Quando olhamos para o estiloso Fernando Black no baile do Italiana, para a orgulhosa Simone em sua festa de quinze anos, para Lourdinha preparando um pão com manteiga em sua cozinha ou para Joaquim e Paulista jogando conversa fora no balcão da mercearia, inevitavelmente nos aproximamos desse território que nos desperta memórias de nossas próprias vidas.

“Apesar de serem documentais, essas imagens não mostram um olhar objetivo que nos distancia das situações registradas, mas nos colocam em contato com os laços de proximidade que constituem essas vizinhanças”, nos conta Guilherme Cunha.

A proximidade tão evidente de João e Afonso com relação àqueles e aquelas que registravam tornam essas fotografias capazes de provocar novos afetos, possibilitando, em alguma medida, que o espectador também participe daquelas relações, ou se sinta representado por elas: apesar de serem registros de uma comunidade e de um território bem específicos, tais imagens não cessam de falar sobre nós mesmos. Afinal, muitos de nós compartilhamos memórias de situações semelhantes àquela festa de aniversário ou ao divertido baile noturno.

Como bem disse Guilherme Cunha, “as imagens não são planas”. Em toda a sua potência, elas possibilitam a criação de vínculos afetivos, incorporam um “gesto de avizinhamento”, conforme propôs o pesquisador Érico Lima.

Ou, para ir mais além, as próprias imagens podem cumprir o papel de vizinhança, ao serem atravessadas pelas forças que constituem uma relação de proximidade entre diferentes (como os moradores-personagens das fotos de João e Afonso, e o espectador, nem sempre familiarizado com aquela realidade).

Ao fim e ao cabo, pouco importa se conhecemos ou não o contexto e o território registrados nas fotografias reunidas pelo projeto Retratistas do Morro. Pois imagens tão íntimas e afetuosas como as de João e Afonso são impossíveis de passarem despercebidas mesmo para quem as situações representadas fazem parte da banalidade do cotidiano. Eis aí a inversão que as imagens podem curiosamente produzir: ao mesmo tempo em que nos fazem estranhar o familiar, são capazes de tornar familiar aquilo que nos é estranho.

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Ela já tinha passado por ali muitas vezes, sempre protegida dentro de um carro. Conhecia bem aquela rua no baixo centro da cidade, embora percorresse o lugar com alguma pressa e desconfiança, sem tempo suficiente para que aqueles edifícios, pessoas e pixos nos muros pudessem imprimir uma imagem íntima em sua memória.

No penúltimo sábado antes da pandemia transformar radicalmente seu cotidiano, ela se juntou a um grupo de fotógrafos amadores e profissionais para participar de uma expedição fotográfica na mesma rua. Com seu celular em modo avião e se deslocando dessa vez com seus próprios pés, ela desacelerou o seu olhar sobre aquele espaço e pôde, pela primeira vez, enxergar aquela rua estranha, anônima e às vezes insegura, como bela, particular e até mesmo familiar.

Participantes da oficina Expedição Fotográfica na rua Aarão Reis, Belo Horizonte

O que muda quando olhamos a cidade por meio das lentes de uma câmera? – poderíamos perguntar junto com o coletivo de fotografia Mofo, responsável por essa expedição que, naquela tarde de sábado, aproximou pessoas de um território usando as imagens como ferramenta. Motivado pela exposição Avenida Amazonas do artista Felipe Chimicatti (que se propôs a realizar uma arqueologia urbana de uma das mais extensas avenidas de Belo Horizonte por meio de fotografias em suporte analógico), o coletivo Mofo conduziu uma oficina onde os participantes, vindos de diversas partes da cidade, produziram sua própria leitura visual de uma das ruas mais antigas do hipercentro de Belo Horizonte, a Rua Aarão Reis. A partir de seus próprios celulares, o grupo experimentou um processo artístico de construção de narrativas sobre essa rua a partir de imagens, que foram posteriormente organizadas em pequenas publicações artesanais – cada uma com uma visão diferente sobre o mesmo espaço.

A partir de um olhar mais atento, aquela rua se transformou em uma fonte inesgotável de imagens: conversas despretensiosas em um boteco; a longa espera no ponto de ônibus; vegetações que insistem em crescer por entre as fendas do asfalto; rebeldes águas que afloram em superfícies áridas; objetos quebrados que revelam uma descomedida vitalidade daquelas calçadas; palavras de protesto gritando pelos muros sem precisar fazer barulho; casas antigas de um único pavimento, quase invisíveis, espremidas entre os prédios. Qualquer pequeno detalhe captado pela câmera, antes imperceptível, agora operava um movimento de aproximação entre quem fotografava e o que é fotografado, despertando memórias pessoais, interesses e afetos. A cada novo ponto de vista, uma outra cidade é fabricada pela relação que se estabelece entre um território e aquele ou aquela que se propõe a observá-lo.

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As imagens estão por toda parte. Somos diariamente bombardeados por elas, desde o primeiro meme que chega via Whatsapp logo de manhã até o noticiário noturno na TV. Quando ligadas aos circuitos midiáticos, essas imagens, sem nos darmos conta, condicionam a forma como entendemos o mundo e nos fazem pensar que aquilo que vemos é a mais pura e única verdade sobre o que é representado. Mas o que a prática de artistas e grupos como Aline Motta, Retratistas do Morro, Filmes de Plástico e Mofo nos faz pensar é que existem, de fato, muitas formas diferentes de olhar para as mesmas coisas.

Seja partindo de arquivos existentes ou produzindo novas imagens, o que esses trabalhos propõem é a criação de um outro tipo de sensibilidade para o contexto no qual estamos imersos: uma reescrita do mundo muito mais múltipla, diversa e inclusiva, e por isso muito mais próxima de nosso cotidiano e passível de identificação. Imagens que nos familiarizam ao invés de nos afastar, que constroem pontes ao invés de muros, que estabelecem vizinhanças onde antes havia indiferença.

Ao questionarem determinadas certezas enraizadas em nossas mentes, essas imagens são capazes de operar afetos, conectar pessoas que não se conhecem e desconstruir estereótipos sobre territórios como procedimento de aproximação.

E se nesses gestos de avizinhamento trata-se não só de compreender o outro, mas, como bem disse o filósofo Peter Pál Pelbart, “de embarcar e assumir traços do outro, e com isso às vezes até diferir de si mesmo”, não seriam as imagens um espaço de troca em meio a cidades que tanto segregam e excluem? Não seriam, enfim, uma possibilidade de inventarmos novas formas de viver juntos?   

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Caso queira se aprofundar nas questões sobre Vizinhanças e Imagens, disponibilizamos algumas referências:

Filmes de comentário, reportagem sobre a Filmes de Plástico na Revista Piauí

A imagem digital no contexto pessoal, fórum organizado pelo Instituto Moreira Salles

Quando o cinema se faz vizinho, artigo de Érico Oliveira de Araújo Lima

A ética do documentário: o rosto e os outros, artigo de César Guimarães e Cristiane da Silveira Lima

Varais, série de fotografias e texto de Adriana Galuppo

Jardim Nova Bahia, documentário de Aloysio Raulino

Eu, um negro, documentário de Jean Rouch

Vizinhança do Tigre, filme de Affonso Uchoa

Micrópolis

 

é um grupo de arquitetos que atua nos cruzamentos entre espaço, design e educação. Colaborador do programa educativo do BDMG Cultural 2020, o coletivo se dedica a projetos e ações em pequena escala, capazes de fazer emergir particularidades e imaginários locais que apontem para novas possibilidades de envolvimento e transformação coletiva do espaço.