Ninguém vive sozinho
Meu nome é Selma, faço parte do MTSTC – Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Região Central – na Ocupação 9 de Julho, no centro de São Paulo. Desde 2011, quando entrei para o movimento, vinha atuando como coordenadora, mas hoje sou mediadora de andar e faço parte de um grupo de mães desempregadas que juntas articulam uma fonte de renda a partir daquilo que elas sabem fazer. Hoje somos 22 mulheres que fazem almoços cooperativos dentro da ocupação, tanto para quem mora ali, quanto para pessoas de fora.
Eu nunca tinha morado em uma ocupação. Vivia nas terras do meu pai na Bahia, onde sempre tive uma casa. E quando cheguei em São Paulo, comprei um apartamento em um imóvel que a imobiliária abandonou, os donos faleceram, e os inquilinos começaram a vender sem documento nem nada. E lá tinha muito conflito: do 1º ao 7º andar, havia muitas garotas de programa; do 8º ao 10º andar, a gente era proibido de passar; uma outra parte do prédio pertencia ao tráfico; tinha muito problema com a polícia. Eu fui ficando com medo, decidi sair de lá, e me mudei para Itaquaquecetuba. Levantava às 3 da manhã, porque tinha que pegar um trem, um metrô e um ônibus para chegar ao trabalho. E foi aí que apareceram as ocupações no centro da cidade, e eu resolvi me mudar para a ocupação do edifício Cambridge (antigo hotel abandonado no centro de São Paulo que agora cumpre a função social de moradia).
Quando o prefeito fez a doação do prédio para o movimento, nós corremos atrás dos editais, passamos nos critérios que a Caixa exigia e conseguimos o financiamento para a reforma. E agora estão reformando, e em 2021 cerca de 121 famílias vão poder voltar para o edifício para ganhar seus apartamentos – inclusive a minha. Quando tivemos que sair do imóvel para a reforma, muitas famílias voltaram para a casa de parentes, e outras deram preferência por morar de aluguel. Para mim, não era viável nenhuma das duas opções, até porque eu não tenho ninguém que mora aqui em São Paulo, além dos meus dois filhos e meu esposo. Então fomos reforçar a luta de outras pessoas, que criaram a Ocupação 9 de Julho em um edifício que era do Governo Federal, abandonado há 30 anos.
Depois de quatro tentativas de ocupar o local, finalmente conseguimos em 2016, e lá estamos até hoje. Como não tinha água, energia elétrica, janela e porta, decidimos que cada família ocupante iria ficar com um espaço e reformá-lo, para tornar tudo habitável. Tivemos muita ajuda dos arquitetos da Escola da Cidade, que fizeram o projeto dos espaços e deram ideias de como cada área poderia ser. Então nos reunimos, limpamos o prédio – tiramos 20 caçambas de entulho! – e compramos o material para a reforma. Entre idas e vindas e algumas lutas na justiça contra reintegrações arbitrárias de posse, conseguimos passar o prédio das mãos do Estado para a prefeitura, com quem estamos negociando uma concessão de uso pelo período de 90 anos. E agora estamos correndo atrás do corpo de bombeiros, que não quer assinar o laudo para nós, mesmo depois de termos instalado corrimão, alarme de incêndio, luz de emergência e piso antiderrapante nas escadas.
Quando cheguei na 9 de Julho, me deram o posto de mediadora de andar para resolver os problemas do andar onde eu morava, porque sabiam que eu consigo conversar com todo mundo e fazer todos darem risada. E esse andar era um conflito terrível!
Tinha um grupo da África, um grupo boliviano, um casal gay que criava uma filha, uma mulher evangélica, uma outra praticante do candomblé… Era uma loucura! Quando a vizinha do candomblé tocava o seu tambor, a evangélica colocava o louvor e gritava “expulsa Satanás!”. A primeira coisa que fiz foi bater na porta de todo mundo para organizar uma reunião de andar no corredor. Pedi para que todos se sentassem lado a lado e se apresentassem. Muitos nem se conheciam! Se odiavam, mas não se conheciam. E aí colocamos na mesa os assuntos polêmicos para todos debaterem juntos. Perguntei para cada um o que eles não gostavam no outro, e descobrimos que o que eles não gostavam dizia respeito à decisão de vida de cada um. A realidade de um não é a mesma de outro, cada um aprendeu uma coisa diferente. Mas pouco importa, porque existe um entendimento que deve ser maior que tudo isso: o respeito. Porque se eu respeitar você, você vai me respeitar, independente do fato de concordarmos ou não. Para termos uma convivência boa, precisamos nos respeitar.
Depois disso, combinamos que a cada encontro, uma pessoa ensinaria alguma coisa que sabia para os outros vizinhos. Cada dia uma pessoa aprendeu e ensinou alguma coisa. Então todos foram entendendo que estamos na mesma luta, na mesma condição, e que precisávamos respeitar as escolhas de cada um. Depois de umas três conversas tensas, todo mundo acabou se entendendo. A vizinha do candomblé e a vizinha evangélica se tornaram melhores amigas. Vão até à feira juntas! E o 4º andar tem hoje um dos grupos mais maravilhosos do prédio. Deu tão certo que me colocaram no 8º andar para mediar os conflitos de lá.
Nessa função de mediadora de andar eu percebi que as pessoas se uniram muito, conseguiram romper muitos preconceitos. Hoje eu consigo ver que cada um tem o direito de escolher o que é melhor para si. Todo mundo vai ser feliz quando respeitarmos a religião, a sexualidade, as escolhas do outro. E a ocupação te dá essa chance. Te dá a oportunidade de viver com pessoas completamente diferentes de você, e de aprender com cada uma delas.
Antes eu tinha muito preconceito em relação às ocupações, já que o que a mídia divulga é que elas são sujas, desorganizadas, cheias de vagabundos. Mas quando minha necessidade me obrigou a entrar em uma ocupação, passei a conhecer muitas pessoas diferentes – desde indígenas a estrangeiros refugiados – e a perceber que eram todas iguais a mim: pais e mães de família que só estão querendo sobreviver dentro de um sistema que os exclui. Nas ocupações coexistem muitas pessoas e culturas diferentes. Mas uma ouve a outra, uma se preocupa com a outra e tenta melhorar a vida da outra. Nós, que somos negras e nordestinas, sofremos exclusão da sociedade o tempo todo. As pessoas nos enxergam apenas como a mão de obra que elas podem explorar, a escada na qual elas vão subir para atingir seus objetivos. E dentro dos movimentos sociais por moradia aprendemos que nós também temos condições de sermos as donas da nossa própria existência. Descobrimos que a vida não é só o que o sistema impõe, e que podemos reivindicar pelas mudanças que consideramos importantes.
Olhando para tudo o que a sociedade nos impõe hoje, eu me pergunto: que Brasil teremos daqui a 50 anos? Que povo é esse que estamos criando? Será que estamos preparando as crianças para serem melhores que nós?
Acho que estamos nos tornando uma espécie de robô, cada um preso dentro do seu próprio mundo, com seus próprios problemas. Como eu fui criada no interior da Bahia, eu tinha costume de andar junto, ir para a casa de uma vizinha onde todo mundo se reunia em volta de uma fogueira e passava horas conversando. As pessoas eram amigas, se ajudavam quando alguém adoecia. Hoje não vemos isso. Todo mundo é muito individualista, não quer compartilhar nada.
É por isso que eu digo que as ocupações são experimentos de outro tipo de sociedade, onde as pessoas se preocupam realmente umas com as outras. Eu, por exemplo, vou ficar na 9 de Julho até a reforma do Cambridge terminar. Mas mesmo garantindo a minha moradia, eu vou continuar no movimento, pois foi um lugar onde eu me encontrei como ser humano, onde eu entendi que eu posso ir além dos limites impostos pelo sistema. Então eu não pretendo sair do movimento. Pretendo ganhar a minha moradia e continuar lutando para que outras e outros também consigam.
Selma de Jesus Oliveira
Costureira, liderança da Ocupação 9 de Julho e integrante da comissão de obras da restauração da Ocupação Cambridge, ambas em São Paulo.