O amor como antídoto
Fabular sobre o amor é um gesto de inventar outro mundo possível. Neste texto escrito por Silvane Silva, a historiadora reflete sobre a importância política de um retorno à vida comunitária, e do amor como prática transformadora contra a barbárie e o ódio que nos rodeiam.
O crítico literário Antonio Candido nos ensinou que a fabulação é um complemento da vida. A humanidade tem a necessidade de fabular. Para ele quando embarcamos nos voos propostos pela literatura, nos tornamos seres humanos melhores. Seja na leitura dos contos de fadas infantis ou na literatura mais erudita, sempre encontraremos caminhos que levam a uma maior compreensão da nossa realidade, e teremos mais elementos, ferramentas e conhecimentos para interagir com as pessoas com as quais convivemos. Sendo assim, Antonio Candido afirmou também que a literatura tem a ver com justiça social, pois todas as pessoas deveriam ter acesso a todos os tipos de literatura.
Se a fabulação sempre foi algo tão importante, nesses tempos de isolamento, de morte e de crescente ódio, ela tornou-se ainda mais necessária. Especialmente as fabulações sobre o amor.
Pensemos as fabulações não apenas como possibilidade de sonhar e inventar outros mundos na imaginação, mas também como capacidade de ter utopia. No sentido de inventar um outro mundo possível, como propõe Ailton Krenak em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo.
Vivemos um cenário de morte cotidiana, mortes das quais não vivemos o luto, porque são tantas e tão constantes que não damos mais conta de chorá-las. Ao mesmo tempo em que se multiplicam os discursos de ódio na política institucional, os noticiários nos bombardeiam com dados que apontam para o aumento da violência doméstica, dos feminicídios e dos ataques e chacinas em comunidades onde a maioria da população é preta e pobre. Diante dessa realidade, falar de amor pode parecer algo sem sentido ou mesmo uma demonstração de alienação. No entanto, líderes como Martin Luther King Jr., nas lutas pelo direitos civis da população negra nos Estados Unidos dos anos de 1960, e o sul africano Nelson Mandela, no movimento contra o regime racista e segregacionista do Apartheid entre os anos 1950 a 1990, mostraram a importância e capacidade do amor em promover uma transformação social. Nesse sentido, precisamos compreender o amor como ética de vida e não como algo piegas, fofinho ou bobo. A atitude amorosa diante da vida inclui indignação e luta.
A pensadora estadunidense bell hooks, no livro Tudo sobre o amor: Novas perspectivas, faz uma defesa contundente do amor como prática transformadora. “O amor é o que o amor faz”. Portanto, o amor é ação e não apenas um sentimento, uma mera afeição por outra (s) pessoa (s). Ele requer de nós responsabilidade e comprometimento. Sendo assim, amar é um ato político. Um dos capítulos que mais gosto desse livro é o intitulado “comunidade: uma comunhão amorosa”. Nele bell hooks retoma as palavras do psiquiatra Scoth Peck que diz que “nas comunidades e por meio delas reside a salvação do mundo”. Os modos de vida ocidental, moderno e capitalista com o seu excessivo individualismo e mercantilização da vida, nos tornaram seres humanos solitários, desconfiados, inseguros e mentirosos. De modo que vivemos num permanente estado de falta, de desejo infinito que fortalece e aquece o mercado. Com diz bell hooks, “o desamor é uma benção para o consumismo”. Vivendo cada vez mais isoladamente, nos tornamos presas fáceis. Por isso o retorno a vida comunitária é o que pode nos salvar da barbárie e do ódio.
A burquinense Sobonfu Somé, contou as experiências da sua aldeia no livro O espiríto da intimidade: Ensinamentos ancestrais africanos sobre as maneiras de se relacionar. Pertencente ao povo Dagara, Sobonfu Somé nos apresenta um exemplo de como é possível viver com propósito e como a comunidade a qual pertencemos pode nos ajudar nisso.
Dentre tantos ensinamentos importantes, a pensadora nos diz que a comunidade tem como objetivo assegurar que cada membro possa ser ouvido de modo que possa contribuir com seus dons e receber as dádivas dos outros. Ela acredita que talvez seja difícil para nós reproduzirmos no ocidente a sociedade que se tinha no continente africano, porém nos alerta que se permitirmos que os nossos/as amigos/as participem da nossa vida, isso por si só nos auxiliará a reconstruir a falta de comunidade que temos.
Sonbofu Somé traz uma imagem muito bonita para pensarmos a vida em comunidade. Ela nos conta que para o povo Dagara a aldeia é vista como uma grande árvore com milhares de galhos, e que se uma parte, um único galho adoece, torna-se necessário examinar a árvore inteira para verificar onde está o problema. De modo que se uma pessoa adoece na aldeia todos se preocupam, pois se lembram de que “existe um risco que afeta a todos”.
É com base nessa ética amorosa proposta por essas duas pensadoras que acredito que juntes possamos investir em novas fabulações sobre o amor. Nesse momento histórico, no qual mais uma vez os discursos de ódio mobilizam multidões e acionam esse afeto como categoria política, talvez seja oportuno nos lembramos que o amor constrói vínculos, traz confiança, equilíbrio, solidariedade, saúde mental e cura. Se o desamor está na ordem do dia, falar de amor pode ser revolucionário. Oxalá permita que o amor seja antídoto.
Referências citadas:
Hooks, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2020.
Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Sobonfu, Somé. Ancient African Teachings in the wais of relationships. New York: HarperCollins Publishers, 1999.
Silvane Silva
Doutora em História Social pela PUC São Paulo, com a tese O Protagonismo das Mulheres Quilombolas nas Lutas por Direitos em Comunidades do Estado de São Paulo (1988-2018). Participou do Programa de Incentivo Acadêmico Abdias Nascimento, é co-organizadora do Livro Narrativas Quilombolas: dialogar, conhecer, comunicar (Imprensa Oficial, 2017), e escreveu o prefácio à edição brasileira de Tudo sobre o amor: Novas perspectivas, de bell hooks (2021). Atua como professora e pesquisadora nas temáticas História e Cultura Afro-brasileira, Educação para as Relações Étnico-raciais, Educação para a Igualdade de Gênero e Educação Escolar Quilombola.