Fabulações da Rua

O currículo da rua

As ruas são verdadeiras plataformas de educação dos corpos. Neste texto, a educadora Gláucia Carneiro nos convida a ver as ruas com seus encontros imprevisíveis em um exercício fabulatório.

Gláucia Carneiro
01 Set 2021 5 Min
O currículo da rua
Espaço Comum Luiz Estrela. 14º Festival Internacional de Teatro de Palco e Rua de BH. Foto: Divulgação

Desde muito cedo, nossas experiências são permeadas por currículos. Seja na escola ou na vida profissional, os currículos conduzem a nossa trajetória educacional, organizando e registrando conhecimentos e habilidades que, supostamente, nos tornam indivíduos capazes de lidar com os desafios colocados pela vida em sociedade. Mas essa visão de currículo, entendida como um artefato cultural que dispara modos de aprender, pode também deixar escapar uma infinidade de experiências não oficializadas pelas instituições de ensino. Uma música pode também nos ensinar sobre o mundo, sendo, portanto, um currículo; assim como podemos aprender também ao encararmos uma obra de arte no museu ou ao assistirmos a um filme no cinema. 

Todavia chamam a minha atenção os currículos clandestinos, aqueles que disparam movimentos subversivos e que escapam dos poderes que tentam controlar o pensamento e os corpos. São currículos menores, experimentados nas ruas e que implicam em aprendizados, rupturas e repertórios de vida muitas vezes desconhecidos e marginalizados pela grande maioria da população. São currículos carregados de existências que sobrevivem ou se reinventam em sua invisibilidade, tornando-se lampejos de resistência nos espaços por onde circulam. Currículos povoados de existências menores, capazes de reativar nossa imaginação política, teórica, afetiva, corporal e territorial.

Eu sinto que fomos forçadas nesta pandemia a dar primeiros passos em direção a tanta coisa nova, a nos reinventar de infinitas maneiras, que voltar a exaltar as ruas com seus encontros imprevisíveis me parece um exercício fabulatório de grande importância.

As pessoas querem voltar a habitar mundos possíveis: nossos corpos estão voltando, aos poucos, para as ruas; voltando a produzir nelas pequenos sendeiros de resistência e fortalecimento da vida; voltando a movimentar zonas de efervescência, mesmo que não possamos nos juntar como gostaríamos. 

Até mesmo essa efervescência pode ser pensada de outras maneiras no cenário de incertezas em que vivemos. Se caminhar lentamente no contrafluxo de uma multidão apressada já era um ato de desobediência à ordem cada vez mais acelerada na qual (sobre)vivíamos, isso se intensifica a partir de agora. Inventar novos modos de viver as ruas pode ser um exercício imaginativo capaz de oferecer possibilidades para o futuro das cidades. Eis o que pretendo com este pequeno manifesto a favor das ruas: discutir como o encontro dos corpos e as inventivas práticas cotidianas que se dão no espaço público podem inaugurar outros modos de existência e resistência nas cidades, oferecendo possibilidades de currículos clandestinos que aumentem a nossa potência de vida.

Pedagogias do controle e os saberes clandestinos

As ruas são verdadeiras plataformas de educação dos corpos. Pode ser que você ainda não tenha reparado, mas as cidades investem muito nos corpos. De acordo com as mais diversas imposições culturais, os corpos são condicionados a se adaptarem aos critérios econômicos, estéticos, higiênicos e morais das cidades onde circulam e habitam.

As imposições de saúde, vigor, vitalidade, juventude, beleza e força são distintamente significadas e atribuídas aos corpos nas ruas. Por meio de muitos processos, cuidados físicos, exercícios, roupas, odores e adornos, vai se formando aquilo que chamamos de “identidade” e que, consequentemente, cria o sentido de diferença entre os corpos que habitam as ruas.  

De inúmeras maneiras, o modo de vida nas cidades contribui com a educação do nosso jeito de perceber e decodificar essas marcas de diferença. Desde cedo, aprendemos a classificar as pessoas pelas formas como se apresentam corporalmente, pelos comportamentos, pelos gestos que empregam e pelas várias maneiras como se apresentam nas ruas. Tudo isso implica na instituição de hierarquias, ordens e desigualdades que estão, sem dúvida, na base da redistribuição de poder na vida urbana.

As ruas, como qualquer outro tipo de currículo, disparam pedagogias – que ainda que sutis, são quase sempre eficientes e duradouras. Ao longo de nossas vidas, nossos corpos são educados, esquadrinhados e condicionados pelas horas do dia, pelos dias da semana, pelas jornadas de trabalho e pelo curto (e muitas vezes controlado) tempo de lazer. Esse ordenamento cria uma espécie de currículo oficial da cidade que ensina modos de ser e de se comportar, controlando o movimento dos corpos nas ruas. Desta forma, aprendemos a reproduzir padrões normativos que, ao mesmo tempo que determinam o comportamento de muitos de nós, colocam em condição de marginalidade todos aqueles que dessas normas escapam.

Ideais de gênero, raça, etnia e sexualidade também fazem parte desse currículo oficial que nos é imposto pelas ruas. Homens e mulheres indígenas, negros, pessoas com deficiência e LGBTQIA+ são interpretados como “diferentes” – leia-se inferiores – por não seguirem as mesmas regras de socialização e convivência entendidas como normais. O reconhecimento do “outro” passa a ser, portanto, baseado em ideias de inferioridade, fracasso e precariedade. 

Mas nem só de controle vive uma cidade. Existem linhas de fuga minúsculas que operam desde sempre por fissuras quase invisíveis. Elas formam currículos menores e múltiplos que, de diferentes modos, atravessam o denso tecido do currículo oficial das ruas. São os currículos das ocupações urbanas; dos saraus de rua; dos sound sytems; das hortas e jardins coletivos; das rodas de samba; dos terreiros; das danças e das performances. São currículos que acionam diferentes modos de existência e múltiplas redes de saberes clandestinos, e traduzem-se em acontecimentos que persistem, resistem e inventam-se em direções diversas. Anunciam faíscas de mundos por vir.

Esses currículos clandestinos, muitas vezes mobilizados por modos de vida dissidentes, nos ensinam sobre outras possibilidades de existência, conteúdos extra e transdisciplinares, e, em sua maioria das vezes, espontâneos — não respondendo, portanto, às exigências de instituições de ensino, movimentos partidários ou linhas de pensamento acadêmicas.

Os currículos das ruas compõem zonas de vizinhança com a arte e a política, tirando da imagem, do som, do ritual, da festa e do imprevisível um conjunto de singularidades que inspiram e afetam outros corpos, ativando saberes que abrem caminhos para outras formas de ocupação da cidade.   

Seja ao recitar um poema, virar a noite em festa, fazer um grafite ou cultivar uma horta, quando disponibilizamos nossos corpos ao encontro de outros, experimentamos outras formas de fazer cidade. Um fazer muito mais pautado pelo pertencimento do que pela propriedade, que nos restaura como indivíduos e como parte da humanidade. Essas são as fabulações que os currículos das ruas são capazes de provocar. Como qualquer outro currículo, são artefatos capazes de produzir futuros, caminhos e subjetividades coletivas.

Gláucia Carneiro

 

Doutora em Educação pela Linha de Currículos, Culturas e Diferença da Faculdade de Educação da UFMG. Participa do GECC- Grupo de Estudos de Currículos, Culturas e Diferença e do grupelho – grupo de estudos e ações em filosofia e educação da UFMG. Atua na área de Educação Básica do Município de Belo Horizonte há mais de 25 anos. Por detestar quatro paredes, amar a sensação de liberdade e se interessar pelos artivismos urbanos se aliou a uma artista trans e caminhou pelas ruas do Baixo Centro de Beagá para produzir o que chamaram de currículo das errâncias.