Vizinhanças e Linguagens

Por que aproximar mundos?

Renata Marquez
28 Mai 2020 8 Min
Por que aproximar mundos?

Os saberes tradicionais

A tradição inerente aos saberes tradicionais não é exclusividade desta forma de conhecer; tanto a arte como a ciência têm também suas tradições. Se alguém disser que os saberes tradicionais assim se chamam porque não se modificam com o tempo – ao contrário da arte e da ciência, para as quais a palavra inovação é imperativo feroz e dominante –, não será um argumento totalmente correto, e a resposta poderia ser sim e não.

Por um lado, podemos concordar com o argumento: sim, trata-se de uma forma de conhecer baseada na ancestralidade e na rememoração dos mais antigos, respeitados por serem fonte inegável do conhecimento coletivo ancestral. Mas, por outro lado, podemos discordar do argumento: não, pois se trata de uma forma de conhecer que sempre soube receber aquilo que era de fora, dialogando com outros mundos e abrindo-se para a transformação. Ou seja, os saberes tradicionais vêm de um passado que não terminou de acabar e que age sobre e com o presente. [1] E isso é bem diferente da ideia – que pode chegar a ser pejorativa no contexto do ímpeto demolidor moderno – de um saber considerado arcaico, antigo ou ultrapassado para, assim, ser negada sua condição política de um saber contemporâneo.

“Mulheres Maxakali e os Yãmiy”, foto de Sueli Maxakali

A arte

Longe de ser um luxo ou um privilégio dos poucos da elite, que a entende como algo extraordinário, a arte é, em sua base sensível, constituinte da experiência humana. A dicotomia entre subjetividade e objetividade, que vinha separando arte e ciência, é uma das muitas falácias da modernidade, que também tratou de separar natureza e cultura para poder acreditar que dominaria a natureza – inverdade que nos é hoje flagrante, enquanto tentamos seguir vivendo em plena pandemia global e crise climática.

A estética, em vez de ser “a filosofia da arte” – que vem excluindo os espectadores e os praticantes cotidianos para resguardar o lugar dos experts – pelo contrário, pode ser entendida como um modo sensível de traduzir e partilhar os fenômenos do mundo. Afinal, como disse Edgar Morin, a arte ensina a viver (melhor) e defende a qualidade (poética) da vida. [2] Assim, outra dicotomia da modernidade – arte e artefato – pode perder seu sentido e sua força de, respectivamente, qualificar e desqualificar a produção sensível.

 

A ciência

Este também maravilhoso mundo de invenção e sensibilidade vem nos salvando de quase todo tipo de males, não é? Embora, em sua história, especificamente em sua temporada moderna que começa no século XV, a ciência tenha registrado, também, um triste rastro epistemicida, que desqualificou outras formas de conhecimento, como os saberes indígenas e quilombolas, por exemplo. Conduzida pelo contexto político e econômico positivista, a ciência moderna ocidental conquistou o privilégio de definir, não só o que era ciência, mas, mais do que isso, o que era conhecimento válido; o resto eram crenças, opiniões, magia, intuição e subjetividades. [3]

Se a ciência dispensava elogios, dada sua hegemonia como conhecimento, o cenário hoje é diferente. No atual contexto político, a ciência tem sido cotidianamente atacada e destinado precioso tempo ao esforço de não deixar desmoronar os outrora criticados alicerces da razão. A ciência, assim como os saberes tradicionais e a arte, interage com sua época e se transforma, dialogando com os acontecimentos do mundo.

A palavra epistemologia, assim como a palavra estética, merece também uma observação: epistemologia, em vez de ser sinônimo de “a filosofia da ciência” – que aceita, sem pestanejar, a ciência como única forma de conhecimento –, pode ser entendida como estudo do conhecimento, em suas múltiplas formas possíveis.  Sendo assim, podemos falar de uma episteme estética, de uma episteme ameríndia, de uma episteme quilombola, de uma episteme popular. Epistemes coexistentes à episteme científica.

No ciclo 2 de podcasts do BDMG Cultural, conversamos com o apresentador Bernardo Esteves do podcast de ciência, “A Terra é redonda”, da revista piauí.

Distraídos

Depois deste preâmbulo, vamos exercitar a complexidade do ato de perceber em vez de deixar passar desapercebido? Ver parecia ser algo simples, automático. Mas se confrontamos duas palavras – ver e olhar – podemos refletir sobre sua crucial diferença. Se pensarmos que ver é uma atividade fisiológica enquanto olhar é um gesto cultural para fazer o mundo significar alguma coisa, notamos que o gesto de olhar pode ser um exercício potente para calibrar nossos sentidos e potencializar nossa capacidade social de perceber e viver junto. [4]

No momento em que começamos a escutar o que antes nos parecia ruído e a acolher com o olhar aquilo que nunca havíamos visto – mas que sempre esteve ali – somos desafiados pela percepção de que há muitos mundos no que chamamos de mundo; de que há muitos modos de viver e de conhecer; de que há muitas formas de sentir e de se expressar; e de que há muitas histórias dentro da história. [5]

Linguagem

“O que se diz está sempre sendo dito em outro lugar, em muitos lugares”, escreveu Sylvia Molloy em seu livro de memórias Viver entre línguas. [6] Como podemos imaginar esbarros, encontros e vidas em comum dentro de tantas histórias? A linguagem aparece como um vínculo em potencial. É pura potência porque, dependendo da maneira como a aplicamos, em vez de vínculo pode ser risco, atuando também como abismo que separa em vez de juntar.

Há política no gesto tradutório. Quem escutar? Quem deve ser percebido? Como se fazer entender? Como compreender os outros? Como não repetir o esforço de tradução que aniquila a diferença e busca equivalências a partir de uma das línguas envolvidas, a mais poderosa?

Uma mesma palavra pode se referir a coisas distintas, dependendo do mundo no qual é proferida, como nos ensinou Marisol de La Cadena, refletindo sobre a palavra território. [7] O que podemos aprender com Sueli Maxakali a respeito da palavra cinema? Para os saberes tradicionais, inexiste a linha divisória ocidental que separa arte, ciência e espiritualidade. O cinema, então, é sinônimo de espírito e funciona como uma episteme estética, simultaneamente lugar de guarda, transmissão de conhecimento e prática cotidiana. Aqui, podemos enxergar a dinâmica ativa da tradição: a tecnologia de fazer um filme é apenas uma técnica a mais no inventário de técnicas maxakali, posta a serviço da narrativa ancestral, em vez de ser um fetiche demolidor da tradição.

As palavras podem ser ditas de muitas formas. O que podemos aprender com Jonathas de Andrade, em sua visita à Várzea Queimada, no Sertão do Piauí? Em uma comunidade de surdos-mudos, o exercício de escuta é especialmente desafiador. Ao assistir às histórias recontadas pelo filme que o artista produziu, estamos diante da manifestação da arte como prática de fronteira, interessada em expandir seus limites em direção a outros campos de conhecimento, a outros interlocutores e a outros espectadores. Pedagogia? Geografia? Antropologia? História? O filme é um atravessador de mundos.

Jogos Dirigidos, 2019 – Jonathas de Andrade

“Um dicionário começa quando já não dá o significado das palavras, mas as suas tarefas”, dizia Georges Bataille. [8] Qual a tarefa da ciência hoje? O que podemos aprender com a ciência retornada oral num podcast? Na conversa com Bernardo Esteves, aparece o intuito de fazer a ciência conversar com as coisas do mundo, com aqueles que não são cientistas mas que são solidários aos alicerces da razão.  Podemos conhecer, por alguns minutos, a tradição da ciência em seus protocolos e métodos internacionalmente compartilhados. Uma tradição singular que, movida pela autossuperação, tenta aterrissar, para conhecer junto com aquilo que julgava objeto de estudo. [9] Afinal, o progresso não é, como pensavam os dicionários do século passado, sinônimo de desenvolvimento tecnológico. O progresso, pelo contrário, pode se transformar em mecanismo do “bem viver” em vez do viver-bem-a-qualquer-custo. [10]

Entre semelhanças, diferenças, tradições e linguagens, esse bloco educativo de três epistemes nos convida a perceber os outros e a pensar por nós mesmos. Uma reunião de mundos que se aproximam quando se trata de defender um futuro: a possibilidade de um mundo compartilhado para vidas em comum.

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Caso queira se aprofundar nas questões apresentadas neste texto de Renata Marquez, disponibilizamos algumas sugestões de leitura:
  1.  VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Brasil, país do futuro do pretérito. Manuscrito para a aula inaugural da PUC-Rio proferida no dia 14 de março de 2019.
  2.  MORIN, Edgar. Aprender a viver. In: A cabeça bem-feita : repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
  3.  SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Eurozine. Viena, 14 de fev. de 2008.
  4. CALVINO, Italo. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  5. Exculturas. Emerson Santos, 2014. Disponível em: https://vimeo.com/80643035
  6. MOLLOY, Sylvia. Viver entre línguas. Belo Horizonte: Relicário, 2018.
  7. DE LA CADENA, Marisol. Natureza incomum: histórias do antropo-cego. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, p. 95-117, abr. 2018.
  8. BATAILLE, Georges. Formless, Documents 1, Paris, 1929.
  9. LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
  10.  ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária e Elefante, 2016.

Renata Marquez

 

é professora da Escola de Arquitetura e Design da UFMG e coeditora da revista Piseagrama. Com doutorado em Geografia e pós-doutorado em Antropologia, pesquisa práticas curatoriais, teoria e crítica na interface entre arte, arquitetura, geografia e antropologia.