Práticas de convívio com a natureza no sertão
“Tem hora que a gente chega lá, esses dias mesmo eu cheguei lá, sentei assim naquela tabuinha que tá lá, né? Aí coloquei os pés dentro d´água e fiquei olhando, né? Olhando aquela água, aquele rio. Aí eu pensei comigo assim, né, falei assim: ô diacho, esse rio aqui era tão fundo, hoje tá tão raso, tão rasinho. E fiquei olhando ela, observando a água que vem e que volta. Só olhando pra ela. Eu sei que ela entende a gente, né? O pensamento da gente. Ela ensinou muita coisa, né? Ela ensinou a gente a viver aqui. Usar a água. Saber usar ela, saber carinhar ela e cuidar dela.”
Quando Maria de João de Alta, moradora da Estiva, comunidade que leva o mesmo nome de uma vereda vizinha ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas, fala das águas que passam nos fundos seu terreno, se dirige a elas como a uma antiga amiga. É ali que o rio Carinhanha, importante afluente do São Francisco, desce com sua formação rochosa criando pequenas corredeiras, com suas veredas formadas em toda extensão da bacia, desenhando as divisas entre os estados de Minas Gerais e da Bahia, até alcançar sua foz no Velho Chico na cidade de Malhada, na Bahia.
Essa forma de relacionamento entre Maria e as águas do rio revela algo mais do que um imenso afeto nutrido pela proximidade de ambas. É um sentimento de pertença, no sentido de posse íntima entre esses dois personagens, a mulher Maria e o rio Carinhanha. É lá que Maria vai para lavar roupa, refrescar-se do calor e olhar a natureza. Maria tem os olhos da cor das águas suas amigas, um “marron-esverdeado brilhante e molhado”, como descreveu uma vez uma jornalista visitando a comunidade. Às vezes Maria sente-se triste e vai para a beira do rio. Conta que põe os pés na água e que então a amiga líquida e esverderada a mira: “ela fica me ouvindo.”
Quando adentrarmos pelo território do Grande Sertão, onde mora Maria, quase sempre pensamos no espaço geográfico e simbólico descrito no mais importante romance do escritor João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. É nele que o personagem Riobaldo também precisou ouvir as águas num momento de grande tristeza:
“E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um corguinho que defrontei – um riachim à-toa de branquinho – olhou para mim e me disse: – Não… – e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei.”
Mas para além das histórias de jagunços, de amores e seres espetaculares, encontramos espaços de Cerrado ainda bem preservados, com suas veredas e nascentes que abastecem grandes rios em direção ao norte e ao nordeste do Brasil. Hoje ali habitam, em um mosaico de cidades e comunidades, povos indígenas, quilombolas, veredeiros, geraizeiros, vazanteiros, entre tantos outros. Essa variedade de nomes se refere não apenas a origens étnicas, como as populações negras e indígenas, mas também às formas de relacionamento com o espaço geográfico e a natureza, com práticas de cultivo, de moradia, de fé, cuidado e subsistência intrinsecamente ligadas às águas, aos ciclos de chuvas, aos rios e veredas, às plantas e animais que compõem as geografias do território.
O tio de Maria, Jacinto Pereira, conhecido por Jau e morador da mesma Estiva, sabe reconhecer as chegadas das chuvas pelo comportamento dos pássaros, dos insetos, dos frutos e das flores do sertão. E descreve a espera do tempo das águas como uma forma de intimidade entre o sertanejo e a natureza. É ela que oferece aos moradores do lugar muitos sinais para aguardar com paciência e com a certeza de não serem abandonados nas longas estiagens: “A gente tem umas experiências sobre as flores do cerrado, mesmo os pássaros, e tem um insetozinho que eles mijam muito nas flor, no outro dia amanhece tudo molhado debaixo. A gente já tem uma noção, por aquilo, que a chuva vem sempre mais cedo, né? A gente trata de ‘mijador’, ele fica na flor do pau lá, cê vê no outro dia amanhece molhado embaixo. É sinal que chove logo, não demora.”
Além dos insetos, Jau cita as curicacas e as garças, que começam a “sair mais pra fora, pro cerrado”, dizendo que as curicacas cantam muito e voam pelo buritizal porque “sempre têm essa noção da chuva.” Além de prevê-las, alguns bichos são capazes de apontar de onde virão as chuvas fortes, como o João-de-barro que constrói a porta da casinha virada para o lado contrário aos temporais, de forma a proteger melhor o ninho. A explicação de Jau é simples: “a natureza tem muita experiência.”
A mesma opinião tem o Pajé Vicente Xakriabá, da Terra Indígena localizada no município de São João das Missões: “o campo – a natureza – é movimentado de ciência. Os bichos, as plantas, tudo é movimentado de ciência.”
Mas não é apenas observando a natureza que o sertanejo aprende a esperar. Afinal, a ciência de que fala o Pajé Vicente tem suas ambiguidades, seus mistérios, que tornam mais complexa e necessária a experiência de interdependência entre as pessoas e seu entorno. É na imprecisão, no imprevisto e na beleza que surpreende mesmo o homem mais acostumado a vê-la, que se revela a força ativa desse relacionamento.
Zé Torino e Dona Nelinda são moradores da comunidade Peruaçu, vizinhos à Área de Preservação Ambiental Cavernas do Peruaçu, próxima às cidades de Januária, Bonito de Minas e Itacarambi. A propriedade onde moram é atravessada pelo rio Peruaçu, também afluente do rio São Francisco. No início da década de 80 o casal mudou-se para São Paulo buscando condições econômicas de sustentar a família. Mas o vínculo com a natureza falou mais alto, e Zé Torino com Nelinda resolveram retornar à terra. Perceberam que as sete minas existentes na propriedade haviam secado. Assim, começaram a recuperar a vegetação “subindo a roça para cima e deixando as áreas descansarem”, buscando orientação técnica. Com cuidado e paciência, acompanham o crescimento das mudas de mulungus, buritis e outras plantas que hoje protegem os brejos. Hoje as minas produzem farta água: “espia só, era aquela [mina] que queria mostrar, a mais difícil, a mais escondida”, seu Zé Torino aponta com brilho nos olhos, “assunta, meninas, vejam como ela faz”. Como na reciprocidade, o casal sabe que o trabalho de plantio daquelas águas, como eles mesmos nomeiam, não tem como destino o próprio consumo, mas a manutenção de um relacionamento que cotidianamente reconhece a origem comum da vida das águas e das gentes do sertão.
É também na reciprocidade que se ancoram outras formas de cuidado em parceria com a natureza. Um conjunto de saberes e de práticas que envolvem a produção e uso de remédios caseiros, orações e benzimentos, atenção ao parto e redes de proteção e cuidados, sobretudo entre mulheres de diversas comunidades, compõem o que podemos chamar de medicina popular. As chamadas raizeiras, que manipulam ervas e outros componentes na produção de remédios caseiros, conhecem não apenas os princípios ativos das plantas da região mas acompanham pessoas com necessidades de cuidados e tratamentos, onde o afeto é parte importante das dinâmicas sociais de cuidados com a saúde. Além disso, as práticas de medicina popular estão ligadas à proteção da biodiversidade do Cerrado porque mantêm viva a relação ancestral dos povos com a natureza. Os sertanejos vêem seu entorno não apenas como um conjunto de recursos à disposição, mas como parte de seus próprios corpos e relações comunitárias.
Vivemos em um contexto onde geralmente essa região brasileira – estendida geográfica e simbolicamente em direção ao norte e nordeste – é vista a partir de suas carências como a precariedade material, econômica e de acesso aos recursos públicos de saúde e mobilidade, ou seja, do que “lhes falta” ou do que “deveriam ser”. Ao mesmo tempo experimentamos que as respostas materiais e econômicas não sustentam nossas necessidades essenciais em consonância com a sobrevivência do mundo. Reconhecer as formas de subsistência, de cuidado, criação e invenção próprias das comunidades sertanejas, acompanhando, acolhendo e valorizando as diversas formas de sentir e de estar no mundo é parte necessária da ampliação de perspectivas e de respostas para nosso futuro comum.
Para conhecer mais os protagonistas das histórias contadas aqui, conheça a Manzuá, rede de conhecedores do Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu e a revista com artigos e matérias sobre o território.
Marcela Bertelli
é antropóloga pela UFMG com pós-graduação em Políticas Culturais e Gestão Cultural pela Universidad Autónoma do México. É membro do grupo Ilumiara de pesquisa, criação e interpretação musical de repertórios constituídos a partir da tradição oral, da criação espontânea e do cotidiano das expressões populares. Editora da Manzuá, do Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu, rede de comunicadores e revista com ênfase em patrimônio cultural imaterial, histórico e ambiental do território. Coordenadora executiva do projeto de digitalização, tratamento e divulgação do acervo da pesquisadora, compositora e cantora Marlui Miranda, pelo Instituto Çarê, sob direção musical de Ivan Vilela, e pela mesma instituição é coordenadora dos projetos de publicação de partituras dos compositores Heraldo do Monte e Antônio Madureira. Coordenou a publicação Elomar: Cancioneiro com as obras de Elomar Figueira Mello transcritas em partituras, além de livro sobre o universo sonoro do compositor. Coordenadora do Festival de Música Histórica de Diamantina.