Flavi Lopes /

Oriki de mim

Oriki de mim

Flavi Lopes na beira do rio Jequitinhonha. Foto de Markus Câmara.

Eu que já nasci rio, que já nasci montanha, que já nasci cobra, que já nasci onça. Sou filha do mundo, me forjei no ventre do tempo e escutei em mim o desejo de mais de mil mulheres de permanecer de pé.

O povo que me deu sangue, veio do vale do Rio Doce e do vale do Rio São Francisco. Eu, quando arrebentei da barriga de minha mãe, estava na bacia do rio das velhas, córrego do onça, sou fruto de um Brasil que se encontra e se encanta no êxodo rural.

Danço por que é preciso, tem um tambor dentro do meu peito, uma árvore frondosa na minha coluna e estrelas no meu assoalho pélvico. Bato os pés no chão e a vida vibra!

Gosto de caminhar distante, sou a porta e tenho as chaves.  Meus pés já pisaram fundo em terras de Abya Yala: Guaranís, Tucumãs, Atacamas, Aymarás, Mapuches, Alacalufes. Nadei em rios de prata e oceano pacífico. Foi assim que dentro do meu ventre cresceu uma vida chamada Manu.

Certa vez, um nariz de palhaço me revelou um segredo e tudo na minha vida mudou, me tornei artista. Outra vez, rodopiei brincando de dançar em roda aos pés de uma mutamba: a poeira subiu e tudo ficou mais colorido. Teve uma vez que fui até o outro lado do atlântico e coloquei os meus pés aos pés de um Baobab, chorei rios na beira do mar e andei por onde alguns infelizes disseram que certos negros não iriam mais pisar.

Gosto de inventar histórias e desfragmentar memórias. Ando correndo mas não tenho pressa. Desde menina tem muita coisa que dói no meu caminho, mas eu caço jeito de me aprumar. Danço as coisas que me atormentam e elas viram outras magias. Danço porque dançar, cura.

Flavi Lopes, Julho 2022