Flavi Lopes /

A mulher que corre

 

Movendo dramaturgias no corpo

Durante todo o processo do LAB, atravessada pelas vivências com os provocadores e residentes, me peguei pensando em como construir uma dramaturgia no corpo, que desenha em movimento uma memória cinética e sinestésica, a um só tempo ancestral e futurista da minha corporeidade negra. 

Eu estava empenhada na feitura do vocabulário de uma dança afro-atlântica e poética, onde se faz fundamento reconhecer a natureza como integrante viva do cotidiano, a polirritmia como sonoridade musical, a oralidade como ferramenta de construção de narrativas, o corpo como uma extensão do cosmos e as energias do invisível como aliadas para a existência e produção de imagens.

Isso me levou a refletir sobre os caminhos que eu percorro coreograficamente na tentativa de fazer com que o discurso transborde a palavra e se torne movimento. Um modo específico de se fazer dança, que acontece no diálogo entre o domínio do gesto e as elaborações políticas, filosóficas e poéticas afrocentradas, atenta a ritmos, ritos, gestos, oralidades e narrativas que ficaram gravadas no profundo da composição de minha memória ancestral. Tudo isso faz ecoar em mim um assunto recorrente em nossos encontros durante o LAB, “toda estética, traz consigo uma ética”.

Nessa minha ética do mover, sinto que a dança existe a partir de imagens geradas por impulsos elétricos. Ela se produz e é produzida primordialmente por energia. Para dançar os assuntos que me interessam não importa o gesto puramente “técnico”, importa a força motriz, o que move o corpo, o que pensa o corpo, o que o anima. 

Acredito em um tipo de processo criativo errante. No sentido daquele que caminha muito e  está sempre em movimento. Mas também no sentido daquele que erra, e erra sempre, e erra muito até chegar em algum lugar inusitado.

Desde dentro, mover o cosmos que há guardado em mim. Capturar as imagens, codificá-las e compartilhá-las com o mundo. 

A mulher que corre é um desses processos de construção dramatúrgica no corpo, que nasce de impulsos elétricos e pensamentos sobre a hipotética existência de uma mulher que corre há três séculos, desde o dia que fugiu de um cativeiro no Brasil. Ela corre em círculos e sempre volta no tempo para resgatar mais alguém.

Fotografia, Luísa Machala

 

Fuga em sol maior

(Flavi Lopes)

no encanto na curva do vento

atabaques tocando no peito

360 correntes quebradas

365 anos em fuga

Black Label para molhar a garganta

água para lavar os pés

ervas para fechar o corpo

cantos para lavar a alma

danças para afiar espadas

espadas para cortar cabeças

o latido dos cachorros

o gatilho constante das armas de fogo

como um cavalo a galope

ela corre.