Tecelãs de Tocoiós: tradição e coletivo
Entrelaçar saberes, histórias de vida, experiências e técnicas. Tecer para as Tecelãs de Tocoiós é mais do que entrecruzar fios de trama com fios de teia ou urdume. É um processo de respeito com o próprio tempo e com os conhecimentos que já existiam antes e além delas.
Tecelãs de Tocoiós é uma associação da comunidade rural de Tocoiós de Minas, na cidade de Francisco Badaró, no Vale do Jequitinhonha, que existe desde 1985. Em um movimento de resgate de saberes e de aproveitamento de potenciais compartilhadas entre as tecelãs, trabalhos recentes têm revolucionado as atividades desempenhadas por elas.
Assessorado pela organização Mulheres do Jequitinhonha, da Associação Jenipapense de Assistência à Infância – Ajenai, um projeto em andamento está criando uma nova coleção de peças e trabalhando, em paralelo, valores importantes para o grupo: a tradição e o coletivo.
Atualmente, são 30 mulheres. Elas se dividem entre as fiandeiras e quem tece e têm idades que variam entre 30 a 70 anos – com exceção de uma das integrantes que tem menos de 25. São trabalhadoras rurais, professoras, estudantes, aposentadas, mães, filhas e avós. Grande parte delas encontram na tecelagem oportunidade de complementar a renda, ou até mesmo a tem como fonte principal. Além da produção, os encontros para tecer e fiar o algodão também são momentos de terapia, como dizem. No galpão com os teares, elas conversam, cantam, brincam e se divertem.
Reprodução Instagram @mulheresdojequitinhonha
A nova coleção está sendo desenvolvida desde o ano passado e abarca, em seu projeto, não só as peças que serão produzidas no final, mas também a valorização de um processo que é rico em técnicas tradicionais e de um trabalho coletivo que fortalece a autoestima e o desenvolvimento dessas mulheres e da comunidade como um todo.
Em apoio a iniciativa, o BDMG Cultural concedeu um patrocínio que permitiu que as Tecelãs de Tocoiós adquirissem mais dois teares, comprassem um aparelho celular para fotografar as peças e processos, desenvolvessem embalagens que retratam melhor a identidade do grupo e estabelecessem parceria como uma designer externa. Essa é uma prática anual do Instituto, que, através de um chamado público de incentivo, apoia projetos culturais de instituições, produtores e artistas de Minas Gerais. Viviane Fortes, coordenadora do Mulheres do Jequitinhonha, celebra a chegada desse suporte:
“conseguimos incluir mais tecelãs na produção e estamos criando uma embalagem linda que fala mais sobre a história delas. Além, é claro, da troca com a Paula Dib, que tem sido muito valiosa. Tudo isso fortalece o grupo”.
Paula Dib é uma designer de produtos paulista que atua desde 2003 com comunidades artesãs do Brasil. Esse trabalho lhe rendeu experiências com várias técnicas e saberes tradicionais: “cada núcleo produtivo tem uma personalidade”, diz. Na região do Vale do Jequitinhonha, a designer já tinha trabalhado, até então, apenas com um grupo de dramistas – mulheres que encenam pequenos quadros dramáticos. É a primeira vez que ela colabora com as Tecelãs de Tocoiós.
No começo dessa parceria, os primeiros passos foram os de pesquisa e resgate. Por volta de julho de 2020, os encontros entre Paula e as mulheres da associação se concentravam em entender o contexto e, o mais importante, relembrar saberes que já eram delas. A designer quis saber a história das Olárias, Terezinhas, Alziras, Malis, Marias e como elas aprenderam aquelas técnicas que hoje aplicam com tanta graça e destreza. A resposta, segundo Paula, segue o ditado popular “cara de pai, escola de filho”: a maioria aprendeu com suas mães e avós, ainda muito jovens.
Olária dos Santos de Souza, 65, é moradora da região do Vale do Jequitinhonha desde que nasceu. Há cerca de 15 anos, vive na comunidade Tocoiós de Minas, do município de Francisco Badaró. Mãe de seis filhos, esposa e professora aposentada, Olária é exemplo vivo de como os saberes se perpetuam ao longo de décadas, sendo passados de pessoa a pessoa. Ela aprendeu a tecer aos 5 anos, com a mãe, em um cenário rural que o algodão representava sobrevivência.
Olária conta sobre o “tempo de sua mãe”, ouça aqui:
É visando honrar histórias como essa que hoje todo o trabalho das Tecelãs de Tocoiós é manual. Desde a fiação e o processo de ‘bater’ o algodão, passando pelo tingimento natural dos novelos, até chegar na fase de acabamento das peças prontas. Tudo é feito seguindo conhecimentos antigos que vêm sendo aprimorados nessas experiências. A designer conta que, nesse sentido, o que ela fez e faz no projeto da nova coleção não é trazer uma perspectiva externa que atropele décadas de trabalho. É reconhecer a potência que existe em saberes que, infelizmente, estavam se perdendo.
O tingimento natural é uma dessas práticas ancestrais que o projeto tem resgatado. Com cascas, raízes, frutas e sementes, misturadas em água quente, as Tecelãs de Tocoiós colorem os fios de algodão com o pigmento natural extraídos do bioma Semi Árido. Além de um saber tradicional, esse é um processo sustentável que reforça a relação dessas mulheres com a terra no sertão mineiro. “É um jeito de mostrar para os mais jovens a importância da natureza”, opina Dona Olária.
Essa técnica para tingir os fios já vinha sendo feita há um tempo na associação. As tecelãs e as fiandeiras participaram, inclusive, de um treinamento com o Conservatório Etno Botânica em Itamonte (MG). O que mudou com a chegada de Paula Dib foi que a designer passou a propor experimentações no tingimento. Misturar pigmentos em uma água, tingir um mesmo fio em duas ou mais ‘águas’ fervidas com plantas diferentes e criar um novelo que misture cores, foram algumas das aventuras sugeridas por Paula.
Para fazer essa e outras etapas do processo de produção, o tempo em Tocoiós de Minas é diferente das grandes indústrias. Caminhar por todas as fases até chegar em um produto leva em média 30 dias.
Mas, não se engane, “no galpão das Tecelãs de Tocoiós, tudo é movimento o tempo todo”, garante Viviane Fortes. Isto é, respeitar o prazo de cada uma e manter uma horizontalidade nas relações é prioridade, criando uma dinâmica de trabalho que corre mais livre.
Segundo Olária, cada uma vai até o galpão produzir quando pode, intercalando com os outros afazeres na roça e em casa. O dia de encontro em grupo oficial é na quinta-feira: “aí tem que ter quem fia, quem tinge, quem bate o algodão, enquanto outras vão tecendo as peças no tear. Mas hoje mesmo tem bastante gente trabalhando lá”, narra a tecelã. Era uma segunda-feira.
A rotina da nova coleção segue a mesma linha de um trabalho horizontal, que respeita os saberes e habilidades individuais. As tecelãs e a designer têm tido encontros – no momento virtuais e quinzenais via Zoom – em que coletivamente chegam em tarefas de produção para as semanas seguintes: paletas de cores, acabamentos específicos, mistura de novelos, etc. Essas missões terminam em peças que são enviadas pelo correio para Paula, em São Paulo. Depois de analisar a entrega, a designer grava e envia um vídeo endereçado às tecelãs com comentários sobre o produto que ela recebeu. Reunidas, as mulheres do Vale do Jequitinhonha gravam um áudio explicando suas escolhas e respondendo aos comentários da parceira. Tudo isso é feito em um grupo no Whatsapp: é a tecnologia a serviço da tradição e da troca.
Ouça um desses áudios em resposta:
Mocidade e tradição
Engana-se quem pensa que perpetuar os saberes ancestrais é incumbência restrita às pessoas mais velhas. Jaquielly Gomes de Souza, estudante de pedagogia pelo ProUni, mostra que juventude também é compromisso com a história.
Ela aprendeu a tecer com 17 anos, em 2014, depois de acompanhar a mãe em um curso de tecelagem em uma cidade próxima da comunidade rural. Vendo as mulheres trabalharem, a estudante se encantou. A mãe, Dona Maria, que já era fiandeira, contou para a filha que a avó e a bisavó teciam tempos atrás. Saber dessa história com a tecelagem na família, é claro, aguçou mais a curiosidade da então ‘menina’. Quando a mãe começou a comprar materiais e a tecer junto das Tecelãs de Tocoiós, Jaquielly foi junto. Hoje, com 23 anos, ela é a mais nova da associação. “O contato com essas mulheres me ensina muitas coisas”, resume.
A juventude de Jaquielly, ou Jaque como ela é carinhosamente chamada entre as colegas, também serve de contribuição para o grupo. A estudante tem mais conhecimentos e prática
com a tecnologia do que outras mulheres da comunidade de Tocoiós e, por isso, é ela quem administra os registros fotográficos e os contatos dos clientes por e-mail ou whatsapp. Esse trabalho é incentivado pelo projeto Mulheres do Jequitinhonha, que está promovendo oficinas de comunicação com as mais jovens das associações assessoradas por elas. O resultado aparece na página do Instagram @mulheresdojequitinhonha e nas fotos aqui compartilhadas, todas são de autoria da Jaque.
Esse coletivo de comunicação que está se formando com o apoio da Ajenai também está produzindo um filme, que vai ser lançado em breve no canal no Youtube da associação e na página do projeto no Instagram. Será um curta-metragem sobre a importante e forte relação da comunidade com o algodão.
O Algodão é sobrevivência
No solo do Semi-Árido do sertão mineiro, o algodão por muito tempo contrariava os tempos de seca da região e brotava em abundância. É que o Vale do Jequitinhonha costumava ser um grande produtor, mas por uma série de fatores – como o aumento do calor e baixa demanda de mercado – essa plantação diminuiu.
No começo da história das Tecelãs de Tocoiós, inclusive, elas utilizavam o algodão plantado no próprio quintal. Essa história se multiplicava nas casas da região, provando que essa fibra tinha um papel muito importante na vida de todas e todos à época. O pavio era queimado e trazia luz para as casas sem energia, o fio virava roupa de vestir e de cama, os novelos feitos com os fios de algodão eram vendidos na feira e o dinheiro se transformava no alimento da mesa, etc.
Atualmente, a Ajenai, em parceria com o Assentamento do MST (Movimento Sem Terra) de Queimadas, na Paraíba (PB), tenta resgatar essa cultura do algodão na região e no trabalho das Tecelãs de Tocoiós. O algodão orgânico usado por elas hoje em dia vem, em parte, da Paraíba, mas também do Centro de Agricultura Alternativo, no norte de Minas, e em produção ainda muito pequena, do quintal das tecelãs. Em setembro do ano passado foi realizada uma oficina que ensinava técnicas tradicionais de plantio, que já foram colocadas em prática. A primeira colheita está prevista para maio de 2021.