Retratistas do Morro: o direito de existir na história
Trabalho reúne e reacende a memória do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, em acervo de fotografias de retratistas mineiros. O projeto já ganhou prêmios, virou exposição e agora se transformará em livro. Veja mais
Do projeto Retratistas do Morro, se levanta um acervo fotográfico imenso, em quantidade e importância. Um conjunto que ajuda a posicionar moradores do Aglomerado da Serra – segunda maior favela do país, formada por sete vilas e localizada na região centro-sul de Belo Horizonte – na história belorizontina, mineira e brasileira. São imagens com décadas de idade, preservadas entre família e coleções profissionais, que agora restauradas e digitalizadas, se transformarão em um livro, com o apoio do BDMG Cultural. A obra será lançada ainda em 2021.
Grande parte é fruto do olhar de dois fotógrafos mineiros, Afonso Pimenta e João Mendes. Desde os anos 1970, os dois construíram um material fotográfico extenso, sem nenhum propósito documental, mas que hoje se torna patrimônio imagético e memória afetiva de uma população pouco representada. O primeiro se aproximou da fotografia por necessidade. Recém-chegado onde hoje é a Vila do Cafezal no Aglomerado, na década de 1970, Afonso trabalhou como assistente de fotógrafo de João Mendes. Com ele, aprendeu o ofício e começou a registrar os bailes de soul da comunidade nos anos 1980. Trabalha como fotógrafo desde então, focando em momentos do cotidiano e eventos sociais.
Já João inicia sua trajetória na fotografia aos 15 anos de idade. Na época, trabalhou como fotógrafo de perícia, retratando cenas de crimes e casos forenses, em Ipatinga, região leste de Minas Gerais. Em 1973 abriu sua loja, Foto Mendes, no bairro Serra, em Belo Horizonte. Lá, já foram fotografadas várias gerações da região, em sua maioria de fotos 3×4 e de estúdio. É um dos maiores conjuntos de imagens em estúdio de uma mesma população no Brasil. Ao longo de 50 anos, passaram pelas lentes de João a população que gerou a comunidade da Serra.
A biografia completa dos fotógrafos estará presente no livro, com lançamento adiado por conta da pandemia.
Direito igual de existir
Do batizado ao enterro, fotos 3×4, registros familiares em estúdio, aniversários, jogos de futebol, casamentos, bailes e mais. São esses tipos de imagem que o projeto dá corpo e devolve para o mundo. Retratistas do morro também faz uma conexão importante: do imaginário de quem vive de dentro das comunidades, com a linha histórica do Brasil. É o que diz Guilherme Cunha, artista visual, pesquisador e empreendedor cultural e coordenador do projeto. Ele defende que o conjunto de fotografias revelam uma outra fração do repertório imagético brasileiro sobre a população das comunidades, vilas e favelas.
As imagens são biográficas, representam o passar do tempo na comunidade, o convívio deles com seus pares e seus afetos”, conta Guilherme.
Quando se olha para um “clique” de Afonso Pimenta, por exemplo, é isso que se vê.
Crianças e adultos alegremente batem palmas e se espremem em volta de uma mesa com bolo, doces e refrigerantes. Essa não é uma imagem incomum, muito pelo contrário. Um momento íntimo de felicidade e comemoração que quase toda casa brasileira já assistiu. O que muda é que todos são moradores de uma comunidade, retratados no imaginário tradicional sob um olhar de violência ou que prioriza sujeitos pobres apenas pela sua função social. O coordenador complementa que, na história da fotografia brasileira, a imagem de prazer, de amor, de lazer, de descanso etc; estiveram mais restritas à classe média e alta. Nas fotografias de Afonso e de João Mendes, os retratos são o que são: ocasiões de carinho e nada mais.
Ouça o que Guilherme explica do assunto:
É a partir desse olhar que o projeto firma o que chamam de ‘direito igual de existir’. Isto é, “todo mundo quer coisas parecidas e tem demandas de afeto similares”, completa Guilherme. Por isso, apesar de as fotografias não terem sido feitas com esse objetivo, o livro Retratistas do Morro pretende ser um documento histórico, incluindo outras imagens no imaginário da cidade sobre quem são e foram essas pessoas. Daí a importância das fotografias terem sido feitas por moradores do Aglomerado.
“Quando é um olhar externo, existe um conjunto de pré noções estabelecidas que filtra a percepção do outro. Para conhecermos o universo de alguém, nada melhor do que a própria pessoa contar sobre, pois o olhar interno é carregado de subjetividades. No Retratistas do Morro, estabelecemos um intercâmbio mais direto, mais rico de conhecimentos e de possibilidades, em que as próprias pessoas falam da sua potência criativa, dos seus modos de ser, pensar e sentir, que legitimam a pessoa daquele território. São imagens que desafiam o lugar da indiferença” – Guilherme Cunha
Relíquias de Dona Ana Martins
Uma parte importante do que compõe o projeto vem do acervo pessoal de Dona Ana Martins, moradora do Aglomerado da Serra há mais de 50 anos. As fotos, que ela carinhosamente chama de ‘relíquias’, são imagens do cotidiano de sua família, de sua casa “saindo do chão”, de comemorações com amigos, de seus filhos bebês – hoje homens feitos e pais de família -, guardadas em uma caixa de sapato. Apesar de pessoais, elas dizem de toda a região.
É desse acervo, inclusive, que nasce o Retratistas do Morro. Quem conta essa história é Kelly Cristina Silva, 36, produtora local do projeto e também moradora do Aglomerado desde que nasceu: “só saio daqui quando mãe for embora”.
Ouça:
Kelly avalia o Retratistas do Morro como um projeto de suma importância para a região. Para ela, além de desmistificar uma imagem de violência, as fotografias também mostram para os(as) mais jovens moradores(as) a história do lugar em que eles(as) vivem, mas que não tiveram a oportunidade de assistir nascer. A produtora local inclui os próprios filhos na conta: um menino de 11 anos e uma menina de 7. “Eles vão futuramente olhar para aquilo ali, ver sua origem e que o Aglomerado da Serra também tem o seu valor”, resume.
Confira também
O projeto é apoiado pelo BDMG Cultural como parte da prática anual de chamado público de incentivo, que patrocina projetos culturais de instituições, produtores e artistas de Minas Gerais. Em outubro de 2017, recebeu o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), pelo reconhecimento da importância simbólica do trabalho para o patrimônio cultural brasileiro. No ano passado, o acervo de fotografias ocupou, ainda, a CâmeraSete – Casa da Fotografia de Minas Gerais, em Belo Horizonte, da Fundação Clóvis Salgado (FCS). A exposição segue acontecendo, agora em formato digital, no projeto Palácio em Sua Companhia.
Escute o episódio do podcast É cultura?, com Guilherme Cunha.