O sentimento de origem na poesia de Carlos Drummond de Andrade
A longevidade da poesia de Carlos Drummond de Andrade parece que atravessará mais algumas centenas de anos e continuará sendo lida e estudada. Se tomarmos assim por alto, talvez seja o poeta mais comentado na poesia brasileira. Num levantamento feito por Fernando Py para a Revista Poesia Sempre, em 2002, constava na seleta atualizada mais de 500 textos, variando de artigos de jornais, revistas, livros, teses, sem contar livros que reúnem diversos textos, portanto podemos quase dobrar a quantidade, sobretudo considerando que de lá para cá muitos trabalhos já foram publicados sobre Carlos Drummond. Para um poeta que achava que logo seria esquecido, que de forma modesta ou talvez desconfiada que era, deu o título do seu primeiro livro de Alguma poesia (1930), ou seja, que ali haveria alguma coisa que pudesse ser chamado de poesia, não imaginava que poemas como “Poema de sete face”, “Infância”, “Cidadezinha qualquer”, “Quadrilha”, “Cota Zero” e sobretudo o famoso “No meio do caminho”, ganhariam tantas leituras e repercussão até hoje quando já estamos no século XXI! e praticamente há 90 anos do primeiro livro. De fato, sem nenhuma restrição podemos dizer que a poesia de Drummond se impõe hoje mais que nunca e as razões são diversas, uma delas e mais recente, e que é um dos temas de sua poesia desde o início, é a relação que manteve até o final da vida, como veremos mais adiante, com a sua cidade natal: Itabira do Mato Dentro. Relação que se desdobra em pelo menos dois tópicos nomeados e organizados pelo próprio poeta na Antologia publicada em 1962. Das nove seções, duas nos interessa mais de perto: “Uma província: esta” e “A família que me dei”. A nota escrita por Drummond para justificar a antologia parece bastante esclarecedora, sobretudo se atentarmos para essa passagem do texto: “cuidou antes de localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto. A Antologia lhe pareceu assim mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais fiel” (nota). Palavras como cuidou, preocupações, tendências, espelho mais fiel dão a dimensão de quanto Drummond ampliava e confirmava quais eram os retratos de sua poesia para seus leitores. Há nesses termos mais que afirmar tendências, características, um zelo em cumprir com fidelidade seus compromissos com a sua própria história biográfica. De fato, se olharmos toda a trajetória do poeta, mesmo com os périplos no caminho, a confidência em “Confidência do itabirano”, publicado em 1939 na Revista do Brasil, e em seguida no terceiro livro Sentimento do mundo (1940), sendo que dos 28 poemas, apenas esse toca direto e abertamente no que seria para sempre um registro de quem confessou fielmente sua origem:
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Na correspondência Carlos & Mário, este promete que iria escrever um estudo sobre o livro Sentimento do mundo, mas vai adiando, até uma carta de 15 de Agosto, de 1942. Portanto, depois de dois anos escreve uma carta justificando e comentando não só o seu sentimento pelo livro, mas algumas impressões que valem expor aqui sobretudo porque o poema “Confidência do itabirano” praticamente não foi comentado, ainda que a certa altura da carta escreve que é “um dos mais belos gritos do poeta” e só. Talvez porque e com razão é um livro que a tônica está mais para uma abertura para com o mundo, para a dor do outro, como no belo poema “Menino chorando na noite”, do que aquele sentimento interiorano. O poeta de Brejo das almas (1934), ao que parece, saiu de um sentimento muito ensimesmado para um outro oposto, ou seja, aberto ao mundo. Mas voltando para a carta, Mário de Andrade, além de comentários pontuando alguns poemas, traz um diagnóstico que merece ser repetido aqui:
Causa e efeito
Sentimento do mundo é o resultado de um poeta verdadeiro cuja vida se transformou. O poeta não mudou, é o mesmo, mas as vicissitudes de sua vida, novos contatos e contágios, novas experiências, lhe acrescentaram ao ser agressivo, revoltado, acuado em seu individualismo irredutível, uma grandeza nova, o sofrimento pelos homens, o sentimento do mundo. Foi realmente um acrescentamento enorme, este ajuntar às dores do individuo a fecundidade da dor humana, e se já antes o poeta tímido que apelidava um livro de “alguma poesia” já era um grande poeta agora que conscientemente apelidou seus novos veros com o título orgulhoso de Sentimento do mundo, nos deu uma obra que além de grande é extraordinária. Individualismo irredutível de Alguma poesia. Em Sentimento do mundo o poeta sem nada perder do seu individualismo, além da dor do individuo, junto com ela, dentro dela, sofre da humana dor. É realmente um exemplo extraordinário e excepcional. E dentro desse seu caso de humanização, C. D. de A. nos deu alguns gritos dos mais lancinantes, alguns estados de revolta dos mais angustiosos da nossa poesia. Que poesia verdadeira! *
De fato, Sentimento do mundo é um livro que carrega tantas dores de um mundo em guerra, mas coube também espaço para uma dor, digamos particular, uma confissão que definitivamente marcaria o poeta como nesse verso sintomático “principalmente nasci em Itabira”. Marcado por esse advérbio um tanto enfático, revela por si que por razões às vezes obscuras está condenado a carregar o peso de sua gênese. Nascer e ser, entre a aceitação e negação de sentimentos geográficos, o poeta sabe que dói trazer apenas uma fotografia da cidade na parede. A expressão apenas não se deve lê-la como um diminuto por parte do poeta em relação à sua Itabira, mas sim uma lembrança atávica que vista ali no seu cotidiano residencial faz crer que Itabira é um retrato para vida inteira. Assim, a mescla entre o concreto e o abstrato é expressa pelo sujeito lírico como adesão e negação, por isso é triste, mas é orgulhoso, por isso sofre, mas se diverte, e do lugar traz prendas que são de novo a raiz (“pedra de ferro”) mas também outras peças (“São Benedito”, “couro de anta”) mais intimistas expostas na sala de visitas. Com toda essa exposição do mais geral ao mais íntimo nos seus 19 versos, há muito a que se destacar nesse sentimento de origem, cujo sentimento se impõe e se revela na repetição seis vezes do nome da cidade natal em todas as estrofes, sendo que na terceira com disfarçado humor não deixa por menos ao selecionar de maneira categórica a palavra “herança” como aquilo que é transmitido como um fardo para o bem ou para o mal. Wisnik, ao comentar esse poema e suas oferendas, nos oferece com questões históricas, mas não menos de interpretação literária, o que lhe interessa mais de perto, ou seja, a relação de Drummond e a mineração. Comentando o verso “esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil”, Wisnik diz:
No poema, a dádiva mineral da cidade onde tudo é de ferro aparece como a matéria-prima do projeto de siderurgia nacional, alavanca produtiva da modernização do país, alinhando-se claramente na posição nacional-de-desenvolvimento do debate político que então se travava. Naquele momento, o destino da pedra siderúrgica se opunha ao do minério bruto que a companhia anglo-americana projetava exportar em larga escala. Se as demais prendas pertencem à esfera da intimidade compartilhada, a pedra de ferro remete ao espaço público e é datada. Pois nela estava a cifra não resolvida de um longo processo político e econômico, envolvendo os rumos incertos da extração, da exportação e da transformação do minério de ferro com base da industrialização brasileira – discussão em relação à qual o poema toma posição discreta mas firme, no momento histórico em que o berço de ferro chegava à sua hora da verdade.
Se aquela pedra de ferro tornou-se futuro aço do país, hoje, mais que nunca, se tornou um pesadelo na história recente do Brasil, mais particular em Minas Gerais. A confissão drummondiana nos faz repensar o quanto o diálogo entre história e poesia se amalgamam em muitos momentos sem necessariamente ser um ato deliberado do poeta. Assim a confissão do itabirano nesse forte poema traz novamente o quanto a cidade natal foi de extrema importância para o gauche e quanto essa relação se estreitou mesmo com o passar dos anos. A série dos três livros cujo nome geral ficou conhecido como Boitempo é um espelho fiel – para usar um termo do poeta, desse sentimento de origem.
Portanto, é admirável que, a partir de um único poema, de uma experiência mais recôndita, consiga ainda comunicar com o passado e o presente. Que uma vez confidenciada a sua origem, confidenciou a nós o seu sentimento não apenas itabirano, mas abertamente humano.
Em Drummond, estaremos sempre diante de uma dialética cuja negação e afirmação se impõem e aparecem presentes como um modo de averiguarmos os obstáculos que são próprios da poesia de grandes poetas. Em suma, se Itabira é uma pedra no meio do caminho, é também uma pedra da qual o sujeito lírico não se liberta. Assim, falar de Itabira é falar de um sentimento muito mais vívido do que apenas trazer fatos históricos. Embora seja possível reconhecer na última estrofe do poema, mesmo que de forma individualizada, um retrato social e econômico de um Brasil não muito longe desse tempo pretérito como se lê no verso “Tive ouro, tive gado, tive fazendas” (grifo nosso). Enfim, numa arte tão pessoal, liricamente pessoal, como é a de Drummond, mas que nem por isso deixou de filtrar com primor e abertamente com certos acontecimentos da e na história, como é o caso do livro Sentimento do mundo, e mais pontualmente, n’ARosa do povo (1945). Ou seja, resumindo muito se pode afirmar que nesse poema menos aberto aos conflitos sociais do mundo, que numa micro-história, ainda assim há nessa confidência de um itabirano uma confissão histórica brasileira. A poesia não precisa e nem é necessário nos reconduzir à história, mas nem por isso vai deixar de fora certos sentimentos que vindos de alguns poetas podem acordar-nos para um engajamento vindo da luta com as palavras.
A partida de Minas
Sabe-se que Carlos Drummond partiu definitivamente de Minas Gerais em 1934, ano que saiu o seu segundo livro Brejo das almas, com uma tiragem bastante modesta de apenas 200 exemplares. Marcado por uma desconfiança que vai desde a própria a vida, do país, da poesia e, sobretudo, do sentimento amoroso. Ao especular sobre um livro com apenas 26 poemas e na sua maioria voltados para uma forte desilusão com tudo, é de se perguntar os motivos possíveis de versos tão desiludido como “perdi o bonde e a esperança”, ou da totalidade do poema “Não se mate”, onde o nome Carlos, homônimo do poeta, é citado no poema como uma advertência: “Carlos, sossegue”. Vale notar que se Itabira e algumas cidades de Minas são lembradas no livro de estreia, em Brejo das Almas praticamente nada é lembrado, salvo o título do livro, onde há uma breve informação que é um nome de um dos municípios de Minas Gerais, um lugar como se sabe mais dos Gerais, de outro mineiro, Guimarães Rosa, do que das Minas de minério do poeta itabirano. Sabe-se também que o lugar estava prestes a mudar de nome, o que de fato ocorreu e hoje se chama Francisco Sá. Na nota fica claro que é um lugar de produção bastante rural, embora com grande desenvolvimento. No entanto, contrariamente, se cogita a mudar de nome. Se é forte na produção local, não parece justificar ter um nome tão sem ênfase, senão mórbido. Mas há de se notar nas palavras do poeta que “se nada significa e nenhuma justificativa oferece”, há de se crer que uma vez ao dar o título do seu livro retirado do pequeno, do insignificante, o lugar se eterniza, mesmo que seja num título de um livro cujo sentimento está encharcado de desilusões. Talvez ainda podemos especular que o poeta de maneira sutil e irônica tivesse chamando atenção ainda para um Brasil rural, considerando que sobretudo a partir de 1930 não só começa, mesmo timidamente a industrialização brasileira, a migração se acentua, ou seja, o caminho para as médias e grandes cidades é o que de fato acontece. Entre a província e o urbano, sem alargar essas dicotomias, Brejo das Almas, distante do registro itabirano como em Alguma poesia. Ainda assim, estão lá pelo menos dois poemas cujas cidades mineiras são citadas, ora numa chave humorística ao falar das cartas direcionadas a moças de diversas cidades mineiras (“As namoradas mineiras”), ora num olhar mais histórico naquela que é uma das cidades mais de raízes mineiras: Ouro Preto. Mais que sobrevoar, o poeta nos convida (“Vamos”) a percorrer e conhecer o mestre Aleijadinho (“O voo sobre as igrejas”). Minas parece jamais abandonar o poeta e o contrário se dá na mesma forma. Não à toa e ainda nesse período se pode justificar o quanto o sentimento de origem é nomeado pelo poeta: Confissões de Minas, cujo dois textos (“Vila de utopia” e “Viagem de Sabará”) foram escritos e publicados antes da publicação de Brejo das almas, portanto desde sempre a “geografia-histórico-afetiva” esteve presente. Portanto, o sentimento de origem mineira na poesia de Drummond raramente esteve como um sentimento saudosista, mas um passado que parece se atualizar na medida em que se torna matéria de poesia.
Com esses poucos dados sobre a ausência de Itabira ou mesmo de Minas em Brejo das almas, há de se avaliar, com todo risco que o biografismo tem, o momento vivido pelo poeta. Se repassarmos resumidamente a sua ida para o Rio de Janeiro, antiga capital do país naquela época, têm-se alguns dados importantes: Drummond já era casado, tinha uma filha de pouco mais que cinco anos; já era formado em Farmácia, porém sem atuar na profissão. Entre a vida familiar e profissional, sem exercer a profissão de farmacêutico, volta para Itabira, onde leciona português e geografia, por um curtíssimo período, logo regressando para a capital mineira. Mas é a partir de 1926 que se fixa definitivamente em Belo Horizonte. Período que trabalha como jornalista até receber o convite do amigo Gustavo Capanema para trabalhar no antigo Ministério da Educação e Saúde Pública, no Rio de Janeiro, onde morou por mais de cinquenta anos.
Seguindo a cronologia posta geralmente no final das edições dos seus livros, percebe-se que não houve muitas mudanças bruscas de 1920 até 1934. No entanto, pelo menos dois tristes fatos se destacam por se tratar de grandes perdas: a do nascimento, em 1925, do primeiro filho, que viveu infelizmente apenas trinta minutos, de acordo com anotações; o outro, a morte do pai, em 1931. Nascimento e morte certamente abalaram muito o poeta. Em Claro Enigma (1951), no poema “Ser”, traz a terrível lembrança do filho que “viveu apenas trinta minutos após vir ao mundo”. Já a figura do pai, este sim aparecerá em diversos poemas, como o belo e dramático “Viagem na família”.
No posfácio para o livro Brejo das almas, Alcides Villaça levanta uma hipótese que nos parece prudente quando escreve que:
Talvez se possa caracterizá-lo com uma expressão radical de experiências soturnas dos últimos anos em Minas, nas circunstâncias em que o poeta se viu um tanto sem perspectiva, desinteressado do diploma de Farmácia, tentando um retorno a Itabira, sofrendo a perda de um filho, a morte do pai, passando, enfim, por um período politicamente nervoso e por atribulações psicológicas que abeiram o trágico. As razões íntimas do poeta são inescrutáveis; as externas, insuficientes para explicar a arte.
Mundo íntimo e mundo externo, sentimento por Minas e pelo mundo, ainda que difíceis serem realizados num gênero tão intimista, o nosso poeta se notabilizou pela capacidade de dar forma a sentimentos tão diversos e complexos.
Se pouco Minas comparece em Brejo das Almas, pouco tempo depois, com o Sentimento do mundo (1940), como já foi mostrado, aparece a mais aberta confissão do poeta mineiro em “Confissão do itabirano”. De lá para cá, o poeta visitará suas raízes até no último aceno no livro Farewell (1996), publicado praticamente dez anos após a sua morte.
A mudança para o Rio de Janeiro
O propósito aqui não é historicizar em por menores o percurso do poeta, mesmo porque precisaríamos de um estudo mais detetivesco. No entanto, o que nos interessa mais de perto e mais uma vez é reforçar como Itabira e Minas jamais sairão do horizonte do poeta. As confissões vão se ampliando e aprofundando na medida em que o itabirano se afasta das origens. Um processo às avessas, ou seja, quanto mais distante mais próximo parece ficar. Nos parece bastante evidente e até mesmo de carências quando no emblemático poema “A bruxa” abre com um dos sentimentos mais angustiante de quando se está em território novo, de quando se está longe das raízes. No caso de Drummond, poeta tão comedido na sua timidez e desejoso de lembranças de Minas, ainda que o conflito entre província e cosmopolitismo seja um dos entraves na sua poética, solta aos olhos uma “espantosa solidão” como na abertura abaixo:
Nesta cidade do Rio,
De dois milhões de habitantes,
Estou sozinho no quarto,
Estou sozinho na América.
Não seria estranho reconhecer em “A bruxa” resíduos daquele processo angustiante que começou fortemente em Brejo das Almas. Aliás, em José (1942), com tantos poemas importantes e que se destacam, mas uma questão presente que se destaca é o sentimento de solidão que se espalha nos 12 poemas, a começar pela estrofe acima. Sem citar todos os poemas, mas é possível reconhecer em todos uma forte presença de um sentimento de solidão. Em “O boi” assim de chofre lemos a interjeição na abertura e que se repetirá nas três próximas estrofes, tal como reforço anafórico “Ó solidão” se acentua o sentimento de vazio. Na sequência do livro, encontramos “verdes solidões” (“Palavras ano mar”), “As famílias se fecham/em células estanques” (“Edifício Esplendor”), “no céu também há uma hora melancólica” (“Tristeza no céu”), Em “Rua do olhar”, o desejo de ser olhado, ainda que não mencione objetos, pessoas, mas talvez por isso mesmo que a solidão se personifica. Nos poemas mais conhecidos desse livro, que são “José” e “Viagem na família”, ambos em chaves diferentes expressam a solidão do sujeito pelas perguntas, das quais nos interessa mais de perto é quando indaga por Minas e a resposta é: “Minas não há mais. / José, e agora?”. Já no segundo, a angústia é ainda mais dramática, e a solidão do poeta, ao viajar por dentro da família, em busca do pai, encontra amalgamado à cidade natalina. Numa síntese se pode dizer que falar do pai é falar de Itabira, um está para o outro como o filho esteve para os dois.
Chegar de forma mais profunda na família, em especial o pai e através dele as suas raízes, de fato não foi uma surpresa, afinal o poema ‘Infância”, de Alguma Poesia e posteriormente “Confidência do itabirano”, em Sentimento do mundo, dão a dimensão que para o poeta seria quase natural ou mesmo natural retornar o quanto fosse necessário a esses sentimentos de adesão ao lugar de origem que, como se sabe, jamais deixou de tensionar. Trazer o pai para o presente numa viagem solitária (“no deserto de Itabira”) por Itabira não parece apenas a solicitação do filho que deseja ser perdoado pelo pai, mas reforçar o forte imaginário que tinha do pai e por extensão percorrer por Itabira . Todo poema é uma caminhada e a cada estrofe das 13 contendo na sua maioria oito versos, assistimos a voz abafada do filho em busca de um diálogo que não acontece como se lê nas nove vezes o estribilho no fechamento de cada estrofe: “Porém nada dizia”. Talvez mais que uma tentativa de se apaziguar com a figura paterna – sempre se valendo por posições negativas e pungentes e não menos afetivas – é novamente fortalecendo o que temos afirmado até agora que, de todos temas na poesia de Drummond, um dos mais fortes são os laços com Minas postos em forma de poesia. O retrato de família é também a composição do poema nascido a partir das fotos Brás Martins da Costa, itabirano que enviou para Drummond; o poeta, por sua vez, sensibilizado com as fotos e conforme prometido, compôs o poema “Imagem, terra, memória”, em 1983, portanto dois anos antes do falecimento de Drummond. Ter contato com esse álbum de fotos provavelmente despertou mais uma vez em Drummond o quanto Itabira permanecia em sua memória, “…a viagem continua, / itabiramente ontem-sempre”. É certo que não há mais dúvidas sobre essa relação umbilical de Drummond com o seu passado, mas é certo também dizer que dos muitos poemas conhecidos do poeta, e que hoje é reconhecido até mesmo por leitores comuns, são poemas que denotam ou conotam indiretamente as suas raízes mineiras. E a memória sempre foi uma aliada de Drummond, que soube transformar os mais reclusos sentimentos em matéria de poesia. Aliás, em tantas entrevistas dadas, uma delas se vale não apenas como um fato confessional, mas um dado histórico no sentido de uma revelação precisa de um poeta cujo cuidado com a sua própria história sempre foi de extremo rigor, como o texto abaixo:
Minha poesia é autobiográfica. É uma confissão, talvez a primeira forma de uma obra literária, obra ainda em bruto, insuficientemente transformada em criação artística. Assim sendo, quem se interessar pelos miúdos acontecimentos da vida do autor, basta passar os olhos por esses nove volumes que, sob pequenos disfarces, dão a sua ficha civil, intelectual, sentimental, moral… Lá estão a infância em Itabira, o colégio em Friburgo, a adolescência vadia em Belo Horizonte, a tentativa fazendeira logo frustrada, a profissão burocrática e jornalística (…).
A afirmação é reveladora, embora “sob pequenos disfarces”, ainda assim é de reconhecimento da crítica que a poesia de Drummond está impregnada de lembranças do seu passado em Minas e que “há, é certo, um meio de transmitir essa herança personalíssima: a via poética”. É dela que tanto quanto podemos aproximamos para responder não só as inquietudes do poeta, mas quem sabe até as nossas. Pensando assim e justificando um sentimento muito pessoal posto aqui na tentativa sempre de investigar até mesmo o que faz uma poesia tão sentida por muitos se “reconhecer” nas raízes de quem a escreveu. Trazer para o público revelações de fórum íntimo, mesmo com tudo que possa estar ficcionado, é, sem dúvida, expor, no caso de Drummond, um “significado de excepcional gravidade” anotado com brilhantismo a apresentação de Paulo Rónai que faz a seguinte observação com justeza: “É através da vivência-família que o poeta atinge os mistérios da sobrevivência e da imortalidade, tendo ele próprio fechado os outros caminhos que levam aeles. Propositadamente alheio à inquietação religiosa, já declarou em alto e bom som em “Os últimos dias” não esperar “outra luz além da que nos envolveu dia após dia”, mas nesse “pouco que fica de tudo” registra a herança imponderável transmitida pelos pais e filhos: “fica um pouco de teu queixo / no queixo de tua filha” (“Resíduo”). Se na essência física fica de forma inexorável as semelhanças com o outro, fica também as lembranças do cheiro da terra, a mobília, certas ruas, quartos, compoteiras, peças da antiga fazenda do Pontal. Fica, enfim, o ruminar de tempos passados que voltam à tona na série conhecida como Boitempo. Mesmo nos livros mais marcados por uma memória voluntária e ou involuntária como nessa série, ainda assim é um suposto Esquecer para lembrar – para usar um dos títulos dessa série. Portanto passado e presente parecem se amalgamarem trazendo para o presente um suposto passado esquecido. É de se notar que depois de publicar mais de dez livros de poemas, afora as crônicas, Drummond, que já se aproximava dos setenta anos, lançou o primeiro livro da série cujo título é Boitempo & a falta que ama (1968). Considerando toda a longevidade do poeta, a parte do livro consta pelo menos com 84 poemas. No segundo, Menino antigo (1973), com 126 textos líricos; e incrivelmente, no terceiro, Esquecer para lembrar (1979), 188 poemas. A soma dos três livros, aproximadamente, é de 400 poemas. Lembrando que no último da série já tinha publicado anteriormente pelo menos mais 4 livros. A produção é grande para um poeta quase octogenário e que ainda teria fôlego para mais algumas produções em 1986, um ano antes do seu falecimento, em Agosto de 1987, aos 85 anos.Tudo isso para dizer que mesmo que seja apenas um fato quantitativo – o que não é pouco – ficará ainda mais difícil apontar o valor estético de muitos dessa série. De todo modo, Minas, sobretudo Itabira e em parte Belo Horizonte, jamais deixaram de ser lembrados pelo poeta. A poesia é, de fato, o lugar de acordar lembranças jamais esquecidas. Em Drummond, como estamos vendo, a memória trazida ao presente se insere desde a descoberta dos livros, no sensível poema “Biblioteca verde”, até a questionamentos da perda de identidade das casas “modernas”, em “A casa sem raiz”, que se refere à morada do poeta na Rua Silva Jardim, no bairro floresta, em Belo Horizonte, onde hoje é um prédio.
A caminhada já se vai estendo e é preciso percorrer algumas voltas pelas raízes do poeta antes de encerrarmos com o belo e impressionante livro de aceno final do poeta: Farewell (1996).
Sem alinhavar outros livros e poemas, quero destacar apenas o poema “Canção de Itabira”, do livro Corpo (1984), seu penúltimo publicado ainda em vida. Nele abre com uma informação exigente para um poeta octogenário e que já tinha praticamente cumprido com excelência uma carreira literária afinada com o seu tempo e para além dele, como se tem notado pelos diversos estudos sobre sua obra. As inquietudes permanecem e continuam nos inquietando. Mas está lá a epígrafe do Corpo: “O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”. Se ainda o poeta não estava convicto de suas invenções ficcionalizadas numa arte de difícil entendimento para muitos, o que dizer de um poeta que na abertura do seu primeiro livro inaugura com difíceis sete partes, cuja primeira é quase uma sentença: “Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Gauchismo que por posturas diferentes, afinal, nunca se está convincente, percorreu toda obra e fechando num poema de forte impacto a começar pelo seu título: “O malvindo”:
Vive dando cabeçada.
Navegou mares errados,
perdeu tudo que não tinha,
amou a mulher difícil,
ama torto cada vez
e ama sempre, desfalcado,
com o punhal atravessado
na garganta ensandecida.
Este, o triste cavaleiro
de tristíssima figura
que nem mesmo teve a graça
de estar ao lado de Alonso
e poder narrar eventos
nos quais entrou de mau jeito
mas com sabor de epopeia.
Nada a fazer com este tipo
avesso a qualquer romança
ou ode, apenas terráqueo,
ou nem isso, extraterráqueo,
de quem não se ouve um grito
mais além do que o gemido,
nem uma palavra lúcida
varando o cerne das coisas
que esperaram ser reveladas
e nós todos pressentimos.
Inútil corpo, alma inútil
se não transfunde alegria
e esperança de renovo
no universo fatigado
em que repousa e não ousa.
Sua ficha – foi rasgada,
por ausência de sinais.
Seu nome – por que sabê-lo?
E sua vida completa
já nem é vida, é jamais.
Se tomarmos a personificação da figura do gauche como sendo uma das raízes desse sentimento de origem em Drummond, o poema “O malvindo” não só retoma aquela antiga e inaugural condição do deslocado, que fica à margem dos acontecimentos da vida, portanto, espiando os fatos do mundo como uma das leituras do “Poema de sete faces”. Sem adentramos em pormenores “d’o malvindo” é importante anotar que estamos para além de lermos um sujeito lírico extremamente deslocado, triste, melancólico, que nem pode se aventurar com certo “sabor de epopéia” como as aventuras de Dom Quixote. Na verdade, o malvindo já no seu título afirma a sua condição de alguém que tudo indica que não foi bem-vindo. Se não for forçar muito a nota, talvez seja plausível reconhecer nesse poema uma avaliação, ainda que muito severa, de um sentimento de negação daquele que um dia batizou um dos seus livros de Fazendeiro do ar. Mas também é possível amenizar tantas cabeçadas do sujeito no poema e reconhecer que o livro Farewell trata do aceno final do poeta. O balanço nessa despedida não poderia ser outro senão de uma visão mesmo que severa, mas consciente do seu fechamento. Talvez na história da poesia brasileira seja raro vermos um poeta que acolheu de forma tão organizada e profunda num livro o final da vida como fez Drummond em Farewell, inclusive nomeando em outra língua (mais um gauchismo?) o seu adeus.
O eterno retorno
A “Canção de Itabira” (Corpo, 1984) abre com esses versos:
Mesmo a essa altura do tempo,
um tempo que já se estira,
continua em mim ressoando
uma canção de Itabira.
O eterno retorno a Itabira como tantas vezes retomado pela via poética fez dessa cidade um símbolo mítico, no qual o poeta, mesmo distante no tempo e no espaço, jamais deixou de evocá-la, ou seja, quanto mais distante mais próximo parecia ficar de suas raízes. A canção que ressoa é doce herança itabirana, ainda que a canção na sua totalidade ecoe mais um retrato singelo do que de outros poemas onde as tensões são dadas por muitas vezes numa indissociável posição negativa. Mas aqui somos embalados por uma canção que soa liricamente afável.
Na sua última entrevista, em 1987, ano em que o poeta viria morrer, faz um balanço do seu passado itabirano:
O senhor tem saudades de Itabira ainda hoje?
Tenho uma profunda saudade e digo mesmo: no fundo, continuo morando em Itabira, através das minhas raízes e, sobretudo, através dos meus pais e dos meus irmãos, todos nascidos lá e todos já falecidos. (…) É uma herança atávica profunda que não posso esquecer. Mas a atual Itabira eu mal conheço. Não vou lá há anos. Exatamente por isso: porque a Itabira que conheci, na qual nasci, passei a infância e um pouco da minha mocidade é uma coisa completamente diferente da atual. Era uma cidade de quatro mil habitantes, se tanto. Hoje, tem mais de cem mil. É uma grande cidade industrial. (…) É uma visão completamente diferente da que tenho da minha infância. A essa Itabira antiga eu estou profunda e visceralmente ligado. (O Dossiê Drummond, Geneton Moraes Neto, 1994, pp. 37, 38).
Essa “herança atávica” que se completa em “visceralmente ligado” e que somado no fechamento da obra traz mais uma vez o sentimento de raiz desse poeta que um dia escreveu que “Itabira começa numa rua e vai dar no mundo”. Retornar a esse mundo de Minas foi o propósito do texto posto aqui num movimento de eterno retorno, como se verá em alguns poemas de Farewell que, além de reportarem as origens de Drummond, são de extrema beleza, quando não dramáticos e pungentes.
Farewell é o livro do adeus do poeta, mas é também um livro que no seu conjunto revela uma consciência de um poeta cuja trajetória é repassada com o mesmo rigor e sentimento de outras obras, porém acrescido de que um ciclo estava para encerrar. Assim, nas palavras de Alcides Villaça, escritas ao resenhar o livro, comenta “mas a luz definitivamente crepuscular que este livro faz incidir sobre todos os momentos anteriores oferece-lhes uma nova perspectiva de interpretação. Despedindo-se, Drummond aciona seu materialismo derradeiro com a consciência de quem, havendo-se inaugurado como um gauche, sabe enfim que a melhor máscara tem pouca serventia diante da morte”. De fato quando estamos diante de um poema como “O peso de uma casa” a visita à casa paterna é uma das mais severas senão a mais pois por ela adentramos como se fôssemos levados pelas mãos do poeta como Virgilio levou Dante Alighieri ao encontro de Beatriz. Drummond, num impecável poema com seus dez dísticos, todos em alexandrinos rimados, com cesura na sexta sílaba, na forma mais clássica dessa forma, entramos na casa:
O peso de uma casa
La maison de mon pére était vaste et commode
merecia de mim um soneto ou uma ode.Eu não soube entendê-la e não soube trová-la.
Só resta exígua estampa, o frescor de uma sala.Aquela egrégia escada, aquela austera mesa
sumiram para sempre em lances de incerteza.Caem móveis em pó, e ondulantes cortinas
deixaram de esvoaçar no silêncio de Minas.Ouço o tlintlim de um copo, o espocar de uma rolha,
sonidos hoje iguais ao virar de uma folha.Cada tábua estalando em insônia sussurra
a longa tradição da família casmurra.e os passos dos antigos, a grita das crianças
migram do longe-longe em parábolas mansas.Perco-me a visitar a clausura dos quartos
e neles eis entrevejo no escorrer de lagartos,formas acidentais de uma angústia infantil
a estruturar-se logo em castelo febril.Sou eu só a portar o peso dessa casa
que afinal não é mais que sepultura rasa.
A abertura de um verso em francês cujo sentido de perto pode lembrar a parábola do filho pródigo no sentido de que a casa paterna é o lugar da segurança. Se é assim e por modéstia do nosso poeta, ele talvez não soube entendê-la, por isso mereceria outros estilos: soneto ou uma ode, novamente formas de tradição mais clássica, como se a forma escolhida não fosse suficiente para a homenagem. De todo modo, ambas as formas são elevadas e solenes para o que representou a casa paterna. O peso também está na forma e se estende no mais vívido sentido das lembranças que não passaram. A sensação é sempre de que nesse poema voltamos naquela “Viagem na família” quando o filho solicita as mãos do pai para uma viagem familiar itabirana.
A homenagem se dá por um olhar que confirma a impossibilidade de oferecer algo menos dramático, pois sabe-se que não existe mais volta. Há um passado que pesa e ressoa no presente no tempo e no espaço. É como se a casa fosse extensão de sua memória, portanto para onde fosse levaria consigo, como de fato o fez. Em Gaveta de guardados (1988), Iberê Camargo, ao relembrar seu passado, diz com precisão: “nós somos como as tartarugas, carregamos a casa. Essa casa são as lembranças”. Bachelard, no ensaio “A poética do espaço”, comenta que a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Se é certa essa prerrogativa, a casa do pai merece todas as honras, mesmo que seja um peso a carregar para toda a vida. A casa é a morada da alma. Nela, o poeta viveu parte de sua história, é nela que o poeta bateu e não foi atendido, mas que insiste em bater como se quisesse acordar o passado: “Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando/ pela dor de chamar e não ser escutado” (“A casa do tempo perdido”). A propósito desse habitat, Joaquim-Francisco Coelho, no livro Terra e família na poesia de Carlos Drummond de Andrade (1973), quantificou que o substantivo casa aparece 99 vezes na poesia de Drummond, e dos seus termos relativos 219 vezes. Como não bastasse essa soma, o poeta por mais duas vezes deseja não só retornar aquele espaço, mas confirmar que apesar de tudo já tão longínquo não passa de uma sepultura rasa. O tempo é inexorável, mas naquelas “lembranças atávicas”, Drummond eternizou a casa no tempo que só a poesia pode guardar.
O tempo parece suspenso na narrativa que começa e vai nessa abertura de uma oração subordinada temporal acordando um passado presente numa voz em surdina e nos passos de um caminhante (de mãos pensas?), diga-se de passagem, o poema é todo em redondilha maior, que contribui para um andamento bastante familiar na poesia popular brasileira. Mas o que o sujeito narra é de uma situação paradoxal, de uma saída que houve, mas que, contudo, parece como as tartarugas que carregam a casa para onde vão. O próprio sujeito coloca em dúvida no “se” condicional. Uma trajetória ocorrida no tempo e espaço vai sendo reconstruída passo a passo, estrofe a estrofe avaliando se de fato houve migração. Aliás, a dúvida já se revela no próprio título do poema: “A ilusão do migrante”. Já se disse que esse provavelmente seja o poema mais notável e que se destaca pela reflexão que se coloca sobre o deslocamento que muitas pessoas de fato fazem na vida por motivos distintos. O nosso poeta foi um dos que migrou de Itabira para Belo Horizonte e depois para o Rio de Janeiro, como já é conhecido por muitos. Mas o que mais importa agora é reconhecer nesse belo poema a condição reflexiva do poeta mineiro:
A ilusão do migrante
Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é consequência
de um certo nascer ali.Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.Que carregamos as coisas,
moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
as fundas paredes.Novas coisas, sucedendo-se,
iludem a nossa fome
de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras
o mais obscuro real,
essa ferida alastrada,
na pele de nossas almas.Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado,
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado, enganoso.
Como se vê o poema é dividido em seis partes, com as cinco primeiras em sete versos, só mudando na última contendo onze versos, com destaque na sequência anafórica onde sentencia seus vínculos ancestrais:
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado, enganoso.
As confissões desse migrante parecem tão comovidas, questionando o tempo, o espaço, as lembranças, os modos, enfim, reflexões comum de muitos e que pode levar a pensar num estado de angústia de qualquer um de nós que tomado por um sentimento voluntário ou involuntário passa a avaliar todo um percurso feito durante a vida. Numa visão mais sociológica, Maria Arminda em Mitologia da mineiridade, comenta que
O espectro do exílio está sempre no encalço dos mineiros. Em verdade, desde a decadência da mineração, a diáspora mineira subseqüente recolocou o problema do afastamento do local de nascimento. Nas décadas posteriores, e até no próprio século XX, os geralistas viam-se compungidos a abandonar o seu estado e a tentar sobreviver em outras plagas. Se é certo que os motivos da migração não foram sempre os mesmos para a maior parte dos mineiros, a partida para novas regiões prende-se à impossibilidade de sobrevivência na sua terra de origem.
Sérgio Buarque de Holanda, historiador de grande sensibilidade para literatura, não deixou de pensar sobre a paisagem mineira que Drummond explorou de maneiras diferentes e evitando apenas uma descrição técnica e fria da paisagem. Em “O mineiro Drummond”, publicado no jornal Diário Carioca, em 1952 (nota), comenta que
A mesma paisagem que emudeceu diante de Cláudio Manuel da Costa, sempre enleado com as ninfas do Mondego, e que Alphonsus povoou de santos, de sinos, de hinos mais medievais do que barroco e rococós, reservou-se intacta ao outro grande poeta de Minas Gerais. Não é entretanto a presença física ou simplesmente decorativa da paisagem mineira o que importa em Carlos Drummond de Andrade, mas alguma coisa de mais fundamental, quer esquivando-se, embora, a qualquer tentativa de descrição e definição, pôde impor-se já aos seus primeiros leitores.
Reconhecer em “O peso de uma casa” e “Ilusão do migrante” esse sentimento “(…) de um passado continuamente vivo e atuante. A fidelidade implacável, ainda que nem sempre visível, àquela imagem doméstica, emergindo “da névoa, das memórias, dos baús atulhados, da monarquia, da escravidão, da tirania familiar” (“Como um presente”), irá compor, em verdade, a trama essencial de toda sua obra”.
Retomar a discussão social dos migrantes hoje ou mesmo a discussão dos imigrantes visto no mundo atual ou mesmo particularizarmos na história do poeta Carlos Drummond de Andrade, como foi ensaiado aqui a partir de suas raízes mineiras, é, sem dúvida, avaliar que o sentimento individual aspirado a partir da poesia pode tornar universal, como de fato é a poesia do nosso maior poeta.
Notas
- ANDRADE, Carlos Drummond de. e ANDRADE, Mário de. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Organização de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002, p. 483.
- MOURA, Murilo Marcondes de. Desejo de transformação. In: Sentimento do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Posfácio).
- WISNIK. José Miguel. Maquinação do mundo Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 98 e 99.
- VILLAÇA, Alcides. Desejos tortos. In: Brejo das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. (Posfácio).
- O poema “Imagem, terra, memória”, datilografado por Drummond termina diferente da versão final em Farewell. Cf. Retratos na parede. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. Concepção e organização de Altamir José de Barros e Robinson Damasceno dos Reis.
- ANDRADE, Carlos Drummond de. CDA por ele mesmo. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16 jan. 1955.
- ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Mitologia da mineiridade. São Paulo: Brasiliense, 1990.
- O artigo foi recolhido posteriormente no livro O espírito e a letra. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p.558.
- O artigo foi recolhido posteriormente no livro O espírito e a letra. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p.558.
Este ensaio conta com diversas notas da autora, que podem ser lidas na versão original da publicação Literatura Mineira: trezentos anos, disponibilizada para download gratuito neste link.
Publicado em 2020 pelo BDMG Cultural, o livro foi organizado pelo professor emérito da UFMG Jacyntho Lins Brandão. Literatura Mineira: trezentos anos foi lançado para celebrar os 300 anos da fundação de Minas Gerais, de maneira reflexiva e instigante, a rica produção literária de Minas Gerais e os muitos escritores e escritoras que ganharam o Brasil e o mundo com suas histórias e obras fundamentais para nosso entendimento como país.
A publicação digital do artigo integra a programação especial do Circuito Liberdade dedicada aos 120 anos de nascimento de Carlos Drummond de Andrade.