Guimarães Rosa: vida e obra nos alinhavos da linguagem 
Posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, em 1967. Fonte: Arquivo Nacional
03 Jun 2022 |

Guimarães Rosa: vida e obra nos alinhavos da linguagem 

Márcia Marques de Morais
03 Jun 2022 41 Min

A marca de um além Minas se inscreve na vida de nosso autor Guimarães Rosa, no mesmo dia em que seus olhos miguilínicos, de “vista curta” (Rosa, 1984, p. 139), apertadinhos pela miopia, na peleja de sempre para enxergar o além das coisas, a “sobrecoisa”, veem a luz. É que, como se sabe, João Guimarães Rosa, nasce Joãozito (Guimarães, 1972), em Cordisburgo. Cordisburgo que fora Vista Alegre – olha só! – e, que, já como Vista Alegre, enfatizava, como palavra, o olhar, a visão, sentido privilegiado na produção literária de nosso autor e que, na observação minuciosa da realidade “física” extraía matéria para a ultrapassagem, para sua travessia literária, para sua particular “metafísica”. De Vista Alegre a Cordisburgo, parece que o amor de Rosa pelas palavras faz que elas o biografem, parece que elas já vão grafando, escrevendo sua vida… Cordisburgo, pois, substitui o nome da cidadezinha Vista Alegre e, de certa forma, figura uma outra travessia muito cara à escrita rosiana – a passagem do popular ao erudito, melhor dizendo, sua mistura, seu amálgama. Se, sertanejamente, chama-se à cidadezinha de Vista Alegre, Cordisburgo já seria um nome que remete ao mundo, à escrita, à erudição – uma erudição, é claro, de um mundo que, rosianamente, também é sertão. Como confessa Guimarães Rosa, em seu diálogo com Günter Lorenz (Lorenz, 1991), Cordisburgo seria seu império suevo-latino, incrustado no coração de Minas… A cidade do coração, contido, etimologicamente, no signo Cordisburgo, já vaticina caminhos, percursos do escritor. Um caminho concreto que anuncia o seu lançar-se ao mundo, já que, do coração do sertão, escrito em latim cordis, ele se lançará ao mundo; do sertão, ele perscrutará a cidade, nomeada, em alemão, burgo. Um caminho artístico, escritural, prefigurado na própria composição da palavra, que a gramática classificaria como formada por hibridrismo, pois que lança mão de radicais de línguas diversas na sua estrutura, ou seja, une o coração, em latim – Cordis – à “cidade”, em alemão – burgo, adiantando-nos um processo de criação e escrita tão caro à arte de Guimarães Rosa.

Como se vê, a palavra, desde sempre, desde o início, parece ir fiando vida e travessia literárias de Rosa. Assim, pois, coração e cidade; cidade e sertão; sertão e mundo serão sempre fios entrelaçados na produção literária de Rosa, e os (des)limites entre eles são uma das fortes marcas do escritor e de seu sertanejo Riobaldo para quem, meu senhor, “Ao que este mundo é muito misturado!” (Rosa, 1965, p.169).

O menino Joãozito cedo deixou o sertão, cedo atravessou o sertão; cedo deixou sua cidade do coração, cedo foi ter a outras cidades, quem sabe, vislumbrando “as margens da Alegria”, como o Menino, personagem  do conto que, pela primeira vez, fora conhecer “lugar onde se construía a grande cidade”. (Rosa, 1968, p.03). Em Belo Horizonte, cursa o ensino médio no Colégio Arnaldo, estuda Medicina na Universidade de Minas Gerais – UMG -, hoje, UFMG e forma-se médico, passando ao exercício  da profissão em duas cidades mineiras – Itaguara e Barbacena. 

Se Itaguara, “outro arraial do interno”, é lugarejo do “médico da roça” (Bizzarri, 1980, p.97) e também cenário  recriado de algumas narrativas de Sagarana, Barbacena é destino do trem do sertão, que atravessa a vida de “Sorôco, sua mãe, sua filha”, como “um canoão no seco, navio” (Rosa, 1968, p.15). Desloca-se para o “lugar sertão” e um tempo de que “os gerais desentendem” (Rosa, 1965, p.86), espaço e tempo míticos;  realiza-se, recriado, na comunidade do sertão, o mito dos Argonautas; embaralham-se fato e ficto, real e imaginário, para dizer sempre do “homem humano” e suas travessias reversíveis: do sertão ao mundo; do mundo ao sertão.

Assim se vão percebendo as Minas, ainda habitadas por Guimarães Rosa, já muito além dos Gerais. É que sua literatura, como arte legítima, desconhece fronteiras e, se ela  fala do sertão, também fala do mundo; se, geograficamente, no conto de Primeiras estórias,  refere-se a Barbacena de onde toma impulso o ato criador, refere-se também à segregação dos loucos pelo preconceito, denunciando, artística e agudamente, avant la lettre, como o fizera Machado de Assis (1992), em “O alienista”, a “história da loucura”, objeto, tanto tempo depois, dos estudos de Michel Foucault (1978 ). A obra Holocausto brasileiro, de Daniela Arbex ( 2013), publicada, pois, mais de trinta anos depois da ficção de Guimarães Rosa, denuncia o genocídio de sessenta mil seres humanos, no século XX,  no maior hospício do Brasil, o Colônia, em Barbacena, condensando Auschwitz e a cidade mineira que abrigou um outro campo de extermínio. Eram os anos 60, do século passado a ecoarem o conto rosiano, de 1962: “Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais”. (Rosa, 1968, p. 16).   

O conto ainda cicia: “Para o pobre, os lugares são mais longe” (Rosa, 1968, p. 15), referindo-se a Barbacena, lugar de destino do trem que recolhe mãe e filha de Sorôco, e nos faz ver, de novo, a reversibilidade entre o perto e o longe; a aproximação e o afastamento de realidades próximas e distintas; o esboroar de fronteiras geográficas ou históricas, quando  seria o homem  a medida de todas as coisas ou, nas palavras de Riobaldo, quando o que “Existe é homem humano”. (Rosa, 1965, p. 460) 

Se, em Barbacena, exerce sua profissão como médico da Brigada Estadual, incorporado ao 9º Batalhão de Infantaria, isso o autoriza a confessar em entrevista: “Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte…”, (Lorenz, 1991, p.67), levando-nos a entender que a vida, lapidando homem e escritor, vai provendo-o de matéria de memória. Tal  matéria, em sua literatura, converge sempre para  o homem no mundo, um mundo sem fronteiras e projetado com uma terceira margem,  como se escuta na voz de Riobaldo, narrador de Grande Sertão: Veredas, confessando ele mesmo a seu interlocutor: “O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.” (Rosa, 1965, p. 20/21).

Fazendo eco a essa constatação de Riobaldo, nosso escritor se afina mais um pouco: migra da sua condição de médico para a carreira diplomática. Se em um curriculum vitae sucinto, a que intitula “Bobagens Biográficas”, enviado, em carta, a Edoardo Bizarri, seu tradutor italiano, justifica ter deixado a Medicina pelo “gosto de estudar línguas, e a ânsia de viajar pelo mundo” (Bizzarri, 1980, p. 96-97), há um momento em que confessa sua perplexidade diante do sofrimento humano e da impotência do médico. (Perez, 1968). Talvez, quem sabe, mundo e línguas a serem buscados  pudessem  representar instâncias para onde se encaminha uma  possível depuração do homem que, ele crê, dever ser perscrutada dentro de um si-mesmo, para ser mirada e vista em espelho comum a todos os homens, nos moldes do que pensa Adorno quando nos fala de lirismo e sociedade: “ [A] universalidade do teor lírico é (…) essencialmente social. Só entende aquilo que [ o lirismo] diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade (…)” (ADORNO, 2008, p. 67). Das suas Minas aos Gerais do mundo, ei-lo, pois, alçando vôo; de novo, como o Menino que inaugura suas Primeiras estórias. No entanto, sempre no “inverso afastamento” (Rosa, 1968, p.168) – para o mundo, para os gerais, mas bebendo nas minas, pesquisando as minas e suas preciosidades.

Sua carreira diplomática pode ser assim descrita, sinteticamente: nomeado Cônsul, serviu no Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro (1934-1938);  foi removido para o Consulado-Geral de Hamburgo (Alemanha), como Cônsul-Adjunto (1938-1942); daí, é designado Segundo-Secretário para a Embaixada do Brasil em Bogotá (Colômbia, 1942 – 1944); serve no Ministério das Relações Exteriores, de 1944 a 1948,  quando é removido para a Embaixada do Brasil em Paris, como Primeiro-Secretário; regressa ao Brasil, em 1951, para, sete anos depois, ser promovido a Embaixador; finalmente, assume, em 1964, no Itamaraty, a Chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras. (Bizzarri, 1980, p.97)

Mas, como “A vida  também é para ser lida” (Rosa, 1985, p.08) conselho do múltiplo prefaciador de Tutaméia, em “Aletria e Hermenêutica”, palavras alinhavam  a vida do homem, do homem que, com a linguagem, verdadeira protagonista de sua obra, borda sua literatura.

Assim, aquelas fronteiras que ele pretende ultrapassar, na inscrição imaginária de uma terceira margem, que faça debordar primeira e segunda, margens ortodoxas de todos os rios, aparecem para serem demarcadas em sua função diplomática… 

De novo, o mundo se nos parece muito misturado, como o foi para Riobaldo em sua conversa com Jõe Bexiguento, no Cansansão Velho. O paradoxo desenha, ou melhor, garatuja, faz das suas, na vida de Guimarães Rosa que, como ninguém, sabe com ele lidar, enfaticamente, em sua literatura. Aí, há sempre  ser e  não-ser,  em convívio, a nos dizer que mundo e homem não mais suportam  o olhar maniqueísta e que o “to be or not to be” shakespeariano  não é mais a questão; aí, há verdades que advém do equívoco e o que não é influi no que é; aí, o que inexiste entremostra a vontade de se materializar, e o não-dito é pleno de significação, como insiste o crítico e amigo Paulo Rónai (Rónai, 1980, p. 215-225), logo após a morte do escritor, no posfácio da 9ª edição de Tutaméia (1985).

Portanto, fronteiras, mais que demarcadas como querem as relações exteriores, com minúscula e como trocadilho, em  Guimarães Rosa, serão tratadas, literária e lingüisticamente, como entrelugares habitados por aparentes insignificâncias, por tutaméias, por nonada, de onde o escritor mineiro extrai a essência de sua arte. Nesses limiares se encontram os diversos; nesses limiares, as realidades se revertem; nesses limiares, o real se faz de versos rosianos. Figuração quase palpável  dessa diversidade, convergindo para a criação de uma nova realidade, uma outra visão de mundo, pode ser apontada no cuidado que Guimarães Rosa devota a sua linguagem, através de intervenções  no código lingüístico que não escapa de operações de cruzamento, fusão, transposição e transformação. Se isso é flagrante no léxico, na criação de neologismos freqüentes, nos hibridismos que povoam suas páginas, o autor não deixa que disso escapem a fonética, a morfologia e a sintaxe da língua portuguesa.

A língua é, para Rosa, a materialização de seu credo; nela, o verbo se faz carne de suas crenças no homem e no mundo.

Esse mundo, pois, dilatado e misturado, que tanta perplexidade causava a Riobaldo, em Rosa, no entanto, não se projeta só para fora, para o outro, para o novo de outros lugares e outras línguas. Se ele anseia viajar pelo mundo e estudar línguas, como alega, ao deixar a Medicina para ingressar na carreira diplomática, esse movimento de se lançar à frente, de prospecção, se articula com um outro, o de volta, de retrospecção. Assim é que os neologismos, essa criação do novo, convive, nos textos rosianos, em perfeita harmonia, com os arcaísmos, com ruínas de palavras que guardam consigo uma lembrança muito próxima das coisas que nomearam. Esse movimento de direção dupla, híbrido, portanto, ele também, confirma a coerência da forma da literatura de Rosa a reiterar-lhe o fundo, como se a forma textual reapresentasse vida e visão de mundo. Tal movimento – de recuo e avanço e vice-versa – pode ser seguido, sem grande esforço, quando o leitor se dedica a acompanhar também  a estrutura das obras de Guimarães Rosa. No romance Grande sertão: Veredas, por exemplo, as idas e vindas do narrador que pede a seu interlocutor que lhe desculpe a “boca [sem] ordem nenhuma” (Rosa, 1965, p. 19), o narrador apresenta-nos, na primeira metade do livro, o que nomeia “só apontação principal” (Rosa, 1965, p. 234), desordenada, em movimento de memória recuada, perscrutadora de um antigamente e, na segunda parte, uma certa ordenação, numa projeção que avança a um  futuro, ainda que pretérito. Na obra Primeiras estórias, princípio e fim se irmanam, tematicamente, na viagem do Menino que conhece, pela primeira vez, a grande cidade, no primeiro conto “ As margens da Alegria”  e que retorna àquela cidade, no último conto, “Os cimos”. Ambos os contos, abrindo e fechando o volume, desenham parênteses, incrustando os  outros dezenove contos e figurando, quem sabe, a própria inserção parentética de Brasília, uma possível leitura da cidade para onde viaja o Menino, no cerrado sertanejo. Para reiterar, mais ainda, essa arquitetura da obra que, rosianamente, aponta o teor de sua temática, o conto “O espelho”, apresenta-nos, não por acaso, dois espelhos “fazendo jogo”- “um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício” (Rosa, 1968, p.73), dependurados  no meio da obra, quem sabe, para propiciar, também,  além de reflexo e refração, idas e vindas dos/nos contos , que ele separa e junta. Esse jogo de espelhos em que o narrador se vê em ângulos diversos e em que espelhos se refletem e se refratam, reciprocamente, propicia, ainda, uma perspectiva em infinito: de uma coisa dentro da outra, dentro da outra, dentro da outra, infinitamente, como se reitera, sobretudo em Primeiras estórias, na figura da lemniscata, desenhada no “índice enigmático” de vinte dos vinte e um contos ali presentes.

Se o estudo das línguas é outro motivador de Guimarães Rosa, aí também o autor anseia o diálogo interlinguístico, reiterando a fronteira como entrelugar que diz de muitas culturas e, portanto, lócus de um dizer múltiplo, metáfora daquela língua purificada, por operação alquímica, que, segundo ele próprio, seria “(…) arma com a qual defendo a dignidade do homem” e, mais, possibilidade de, renovada a língua, renovar-se, também, o mundo. (Lorenz, 1991, p. 87).

Nesse aspecto, o conhecimento de línguas que falava fluentemente (além do português, espanhol, francês, inglês, alemão e italiano), associado à possibilidade de leitura em latim, grego clássico e moderno, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindu, árabe e malaio (Lorenz, 1991, p. 82), atesta, ainda uma vez, a habilidade posta em ato, em sua literatura, de buscar, na língua, seu “aspecto metafísico”, na expressão do próprio Rosa. (Lorenz, 1991, p. 87). Segundo ele, seria preciso livrar cada palavra da saturação do uso cotidiano, sondando-lhe o momento mágico em que cada uma delas acabou de nascer e que guarda ainda uma relação original com a coisa nomeada. Nessa óptica,  o movimento que impõe ao trabalho com a linguagem na sua produção literária também repete idas e vindas. Ele busca, nas origens das palavras e, quem sabe, em uma origem comum, sua forma primeira e faz que dialogue com aquelas que lhe foram sendo incorporadas. Assim, no diálogo com Gunter Lorenz, ele, confessando ser o “o português-brasileiro uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa”, uma língua não saturada e “Além do Bem e do Mal”, diz, textualmente, que,  para buscar o impossível, o infinito: “(…) acrescentei à síntese existente a minha própria síntese, isto é, incluí em minha linguagem muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidade de expressão” (Lorenz, 1991, p.81). Perguntado, então, sobre quais seriam esses elementos adicionais, o escritor enumera: primeiro, a utilização daquela palavra como se ela mal tivesse acabado de nascer, prenhe, ainda, de seu sentido original; segundo, a inclusão, em sua dicção, de particularidades dialéticas de sua região e que, conforme frisa, são linguagem literária, têm a tal marca original, não estão desgastadas e “quase sempre são de uma grande sabedoria linguística” (Lorenz, 1991, p.81) Além disso, continua, ocupa-se do idioma formado sob a influência das ciências modernas – uma espécie de dialeto – e lança mão de um magnífico idioma quase esquecido – o português medieval dos sábios e poetas…. Como se vê, um além produzido pelos efeitos da linguagem sobre a literatura de Rosa está irremediavelmente condicionado a um aquém, a uma volta à língua original, a uma gênese lingüística. 

Para tornar mais explícito esse trabalho rosiano com a língua, no seu afã de ir-e-vir, para conseguir o universal a partir de sua “aldeia”, para perceber o mais além, já em suas Minas Gerais, vale a pena reler o conto “Famigerado”, de Primeiras estórias. Nele, o narrador, não por acaso,  médico de um arraial,  é procurado por um bravo jagunço, Damázio, para que lhe desvende o significado do termo “famigerado”, que lhe fora atribuído por um moço do Governo lá na Serra. Damázio fora ter ao arraial, acompanhado por três cavaleiros para lhe servirem de testemunho. Procurara o médico, pois, não havia por ali “ o legítimo – o livro que aprende as palavras…” (p.11) e com o padre, do São Ão, o jagunço não se dava. Aflito e muito nervoso, ele perguntava pelo significado da palavra ao narrador que, diante do esbravejar do jagunço, foi ficando cada vez mais assustado, pois que poderiam “ter feito intriga, invencionice de  atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem” (p.11). Perplexo, o narrador mede palavras para responder ao jagunço, atrasando, quem sabe, um desfecho inesperado para o fato…Diz-lhe, então, que “famigerado” é “inóxio”, é  “célebre”, “notório”, “notável”…, ao que, evidentemente, Damázio não entende e devolve: “Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?” (p.12). O narrador acode: “ –‘Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos…’” (p.12). As reticências do texto denotam, como é evidente, a intenção do narrador em retardar a resposta, mas Damázio insiste na “tradução” daqueles adjetivos eruditos, dizendo: “ –‘Pois…e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?’” (p.12). Em conflito sobre que resposta dar àquele “brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe” (p. 9), temeroso de que “com um pingo no i, ele [o] dissolvesse” (p.9), o médico opta pelo significado “ positivo” do termo e responde a Damázio que “famigerado” é “‘importante’, que merece louvor, respeito…” (p.12).

Essa é uma breve paráfrase do conto, amostra, em miniatura, do processo de escrita de Guimarães Rosa. Nas linhas desse texto rosiano, temos um “causo” contado pelo narrador erudito, citadino, que é interrogado por um homem do sertão, cuja linguagem, circunscrita ao registro oral, estranha o atributo que lhe dá um homem do Governo. Nas entrelinhas, temos todo um tratado lingüístico que ludicamente subjaz ao texto. O termo “famigerado” tem como origem uma formação do latim – famis geratu -, literalmente podendo ser traduzido por “gerado pela fama”, “famoso”,  significado que acode ao narrador (e o acode também…), como resposta menos perigosa a ser dada ao jagunço. No entanto, esse significado, encaminhado para um tom elogioso (“-‘Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!…’’ (p.12), nasceu “neutro”, já que “fama-ae”, segundo Houaiss,  é “ ‘o que se diz de alguém, renome, reputação boa ou má’” (Houaisss, 2001,p.1296), donde se têm famoso, infâmia e difamar, por exemplo. E, como é esperto, o narrador-médico sabe disso e, mais , declara essa neutralidade, ao  tranqüilizar Damázio, inseguro quanto ao fato de ter sido ofendido. Ele responde, primeiro, que “Famigerado é inóxio” e adianta, pois, o caráter inofensivo da palavra,  apelando para um termo “erudito” e distante, cuja variante mais próxima seria “inócuo” e que, de qualquer modo, deixa o jagunço na mesma, ainda que ele apresente os sinônimos: “célebre, notório, notável”. Interpelado, de modo direto, se, afinal, aquele seria “nome de ofensa” (p.12), o narrador reitera  sua resposta, dizendo  serem aquelas “expressões neutras, de outros usos” (p.12), e, rosianamente, diz isso, mostrando, com todas as letras, expressões do século XIII, do  português medieval: “ – ‘Vilta nenhuma, nenhum doesto’” (p.12) ou seja, nada que avilte, que comprometa, que desonre…

Nosso autor, sábia e sabidamente, tendo optado por caracterizar o dicionário como “o legítimo, o  livro que aprende as palavras” (p.11) e não o que as ensina, como escutamos da boca de Damázio, faz-nos estranhar um narrador erudito que não aprendera com o dicionário, já que este, atualizando-se sempre, deveria fazer constar que “famigerado” passa a ter conotação pejorativa de mal afamado, “que tem muita fama, principalmente quando má”, diz o Larousse (Larousse , 1992,  p.495). Por que, então,  o erudito narrador subtrai do jagunço o significado corrente do termo, e, mais, atrasa o esclarecimento de Damázio, ao não empregar a linguagem de em dia-de-semana”, “em fala de pobre” (p.12)? 

O conto nos dá essa resposta bem no início, com um dos aforismos mais profundos da filosofia literária de João Guimarães Rosa. O narrador do conto, ao se sentir posto contra a parede pelo jagunço, aflito por desconhecer o teor do adjetivo com que o homem do Governo o brindara, caraminholando sobre o terem intrigado com Damázio, proclama: “O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O” (p. 9). Esse medo acaba, pois, irmanando, narrador e personagem,  médico e  jagunço, o saber citadino e erudito e o saber sertanejo e popular. É que, se Damázio temia o real significado da palavra que lhe imputara o funcionário público, pois receava ter sido desonrado, nosso narrador teme a reação do jagunço diante de uma possível difamação. Esse medo reversível, como movimento privilegiado do texto rosiano, está opticamente mostrado naquela frase “ O medo O” e em outra expressão onomatopaica que faz ouvir o espanto diante de Damázio – “  o oh-homem-oh”- (p. 9), que figuram no texto como uma espécie de palíndromo. O medo passa do jagunço ao narrador, deste àquele; contamina-os reciprocamente, como é próprio do medo. Ambos ignoram algo em momento agudíssimo: se Damázio, por ignorar o que é “famigerado”, teme que o saber do doutor o exponha a si mesmo e, diante dos outros, representados pelos três cavaleiros testemunhas, o doutor teme que a explicitação de “famigerado” dê nos nervos do jagunço que poderá dissolvê-lo… E isso se diz, rosianamente, misturando popular e erudito, misturando tiro e letra, enfatizando a palavra também como arma: “Com um pingo no i, ele me dissolvia” (p.9), recriando-se, pois, “pôr os pingos nos is”, como esclarecer e “para bom entendedor, um pingo é letra”.   

Desse modo, se percebe como um “causo” do sertão transcende a própria geografia sertaneja e diz do medo humano. A narrativa concretiza para o leitor muitas elucubrações da filosofia que refletem sobre a (in)compatibidade entre o saber e o poder na sociedade, alegorizados no poder da palavra e no poder da arma. 

O conto, ainda, lúdico, brinca com a gramática interna do falante. Ao enigmatizar o sentido do vocábulo “famigerado”, faz uso do que se chamaria etimologia popular. Através de operações de escansão de uma palavra desconhecida, o falante “testa” um possível desvendamento dela, tentando “apalpar”, com seus conhecimentos prévios,  o significado de cada elemento isolado.  Assim, Damázio, aflito, “parte” a palavra, conforme ouviu e tenta entendê-la: “(…) fasmisgerado… faz-me-gerado…falmisgeraldo…familhas-gerado….?”(p.11). Insistem, na sua “desenigmatização”,  alguns elementos – “radicais”, diria a gramática.  Há, pois: “gerado”, três vezes;  “famílias”, no plural; há um “geraldo” substituindo um “gerado”; e há  uma “frase” toda – “faz-me-gerado”, muito sintomática…

Damázio, cujo nome, quem sabe, rosianamente, também pode mexer com seus brios, teme a maior ofensa no código jagunço, lembrado por Joca Ramiro, no julgamento da “Sempre Verde”, tentando “temperar” os “excessos” de  Hermógenes que queria Zé Bebelo morto: “ –‘Mas ele não falou o nome-da-mãe, amigo…’” ( Rosa, 1965, p.202). Imediatamente, Riobaldo explica para o interlocutor: “Só para o nome-da-mãe ou de ladrão era que não havia remédio, por ser a ofensa grave” (Rosa, 1965, p. 202). Como se vê, no horizonte semântico de Damázio, temia-se a tal ofensa grave – “Latejava-lhe um orgulho indeciso” (p. 11), diz o conto.

Guimarães Rosa, conhecedor e amante das línguas , destila, no seu texto,  essa desconfiança, usando classificações da própria gramática, para dizer, sorrateiramente, que o temor do jagunço, era que perturbassem “a paz das mães” (p.12), usando expressão do próprio sertanejo ao pedir garantias ao médico de que “famigerado” não era “nome de ofensa”. Ao referir-se, portanto, a “nome de ofensa”, o texto insinua a possibilidade, também, do nome-da-mãe e reitera isso quando “classifica” como “frase” a seqüência com que Damázio  apalpava os sentidos de “famigerado”: “Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase” (p.11).

Esse é um dos contos rosianos que fazem da língua personagem importante para seu “desenredo”. Deixando, em aberto, o “famoso assunto” (p.13), conforme termina “Famigerado”, numa estrutura quase circular, pois o leitor também duvida todo o tempo do significado que se pretende para a palavra, Guimarães Rosa presta sua homenagem ao código lingüístico, jogando luz sobre a língua portuguesa, em sua realização no tempo e em espaços diversos. Privilegia tanto o registro erudito, a língua culta escrita quanto o português oral, a língua popular e sertaneja, deixando inconteste a idéia de que a língua existe em processo de construção permanente, pois que “o legítimo” é  “livro que aprende as palavras” (p. 11).

Aliás, Guimarães Rosa declarou a Gunter Lorenz que seu “romance mais importante” seria um dicionário, a ser publicado quando ele fizesse cem anos e que “fará as vezes de minha autobiografia”, completa ele. (Lorenz, 1991, p. 89). Sua relação com a língua é uma relação amorosa: “A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a bênção eclesiástica e científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa. Minha amante é mais importante para mim.” (Lorenz, 1991, p.83)

Rosa, como se vem frisando, procede em movimento de retrospecção e prospecção quanto ao trabalho com a linguagem, o que marca inconfundivelmente seu texto. Se, em “Famigerado”, pudemos ver um recuo e avanço em tempo-espaço da língua portuguesa, há, em sua literatura, ainda em função da (re)criação do código lingüístico, a fusão dos diferentes, a mistura das formas, o embaralhamento de fronteiras lingüísticas, no processo de hibridização. São comuns, como é sabido, as sua idas às inúmeras línguas estrangeiras que dominava e, frise-se, a sua volta sempre à língua original, quer seja ela a sua, quer seja ela a forma original, de onde, por gênese, se produziram outros termos. Assim, movimento e mistura anseiam sempre dizerem do homem e do mundo, a partir do sertanejo e do sertão, pois que, em sua própria declaração: “Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria e porque há demasiadas coisas intraduzíveis, pensadas em sonhos, intuitivas, cujo verdadeiro significado só pode ser encontrado no som original.” (Lorenz, 1991, p.87). Esse trabalho com o chamado “estrangeirismo”, aqui considerado conceito menos ortodoxo, é marca inconteste do trabalho literário de Rosa, tendo-nos tocado, nesse sentido, leitura que Benjamin Abdalla Júnior faz do conto “Orientação”, de Tutaméia (Abdala Júnior, 2005). Chama-nos atenção esse trabalho, não apenas porque seu foco vai voltar-se para “outras misturas”, como se verifica no ensaio publicado, como também porque o crítico  vai ler, comparativamente, autores que discutem “imagens do rio”, traço marcante das “travessias rosianas” e, mais ainda, porque trabalha estratégias discursivas do conto de Rosa, em texto que vai pôr em cena uma língua oriental. O crítico vai apontar o trabalho rosiano com o nome da personagem Chim, de origem chinesa, que se aportuguesa no cozinheiro Joaquim e que, por abreviação reduz-se a Quim. Aí o jogo fonético é digno de nota: Chim e Quim aludem  à operação fonológica  de comutação entre palatais surdas – uma fricativa e outra oclusiva. Além disso, Rosa aposta no movimento de ir-e-vir dos sons e da grafia, do erudito e do popular, do oriente e do ocidente, quando põe em circulação: Chim> Joaquim> Quim, estando Chim e Quim contidos no nome Joaquim que, na grafia erudita Joachim, se escreve como “Ch” e se pronuncia como “Qu”.  

O mesmo acontecerá na permuta entre constritivas dentais sonoras – uma vibrante e outra líquida – , no nome da personagem feminina , a lavadeira Rita Rola, chamada pelo “felizquim” (outro achado morfológico rosiano que usa o nome próprio “Quim”, como sufixo “quim”, para conferir à feliz personagem um tom afetivo de diminutivo intensivo e uma dicção achinesada) de Lita Lola, fazendo ouvir a pronúncia chinesa,  constantemente a confundir /r/ e /l/, na ocorrência fonética chamada lambdacismo.

Apropriando-se de um outro idioma e, de certo modo, expropriando-o para revitalizá-lo na criação do novo, Rosa faz que dialoguem  diversas línguas, de tempos e espaços também distintos. 

Tais línguas permanecem estrangeiras e estranhas para o leitor apenas até o momento em que o escritor as faz de novo vir à luz, razão por que esse estranho, estrangeiro, merece olhar especial de nosso escritor, como se pode ler em Grande Sertão: Veredas, sobretudo quando a narrativa se circunscreve ao lugar chamado “Curralinho, hoje Corinto” (Rosa, 1965), como, matreiramente, registra o narrador.

Riobaldo foge da fazenda São Gregório onde se desvela sua bastardia e se dirige à casa de seu Assis Wababa, porque “(…) aquela hora eu queria só gente estranha, muito estrangeira, estrangeira inteira!” (Rosa, 1965, p.96). Vai ter ao “Curralim”, onde revê a Rosa’uarda, filha do turco Aziz, nome turco assimilado, quem sabe, ao sobrenome luso-brasileiro Assis, conforme Galvão (Galvão,1998, p.15-16), já comprometida com o turco negociante Salino Cúri. Lá  reencontra o alemão Vupes: “o seo Emílo Wusp”, como frisa Riobaldo, fazendo alusão à pronúncia  do interlocutor culto, doutor de “suma doutoração” (Rosa, 1965,p. 14). Esse estranho e familiar alemão – das Unheimliche, conforme Freud (1976 a) -, não viaja com armas e reafirma essa não necessidade, dizendo: “ Níquites! (Rosa, 1965, p.97), aportuguesamento para a negativa do alemão, “Nicht ”. Ao ter-se referido antes ao Vupes, quando se encontrava no Araçuaí, Riobaldo, ensaiando o “fraseado” do interlocutor para pronunciar o sobrenome do mascate, registra “Wúpsis” , em que se pode ler “psi” e enfatiza: “Ele pitava era charutos”. Diante da constatação de que o alemão era conhecido do interlocutor, observa: “Ô titiquinha de mundo!” (Rosa, 1965, p.57), tendo, ainda,  lançado outras pistas sobre esse “estranja, alemão, o senhor sabe – indivíduo,  mesmo. Pessoa boa. Homem salutar na alegria séria. He, he, com toda a confusão de política e brigas, por aí, e ele não somava com nenhuma coisa (…)” (Rosa, 1965, p. 57 negrito meu). Riobaldo responde à saudação do estranja (possivelmente, em alemão freut ,do desusado Sehr er freut, próximo de “encantado”, como o traduziu Curt Meyer – Clason), tentando arremedá-lo com: “Folgo”, foneticamente próximo da expressão alemã, conforme ensaio de Walnice Galvão (Galvão, 1998, p.17). 

Além de esses recursos da língua de Rosa apontarem para a operação híbrida de que lança mão, no afã de dizer do universal, através do diálogo local/ universal, sertão/ mundo, vale ler nas entrelinhas, num subtexto, alusão a Freud, não apenas pela descrição e falas da estrangeira personagem, como, ainda, pela palavra “alegria” (negritada mais acima) e que, como substantivo abstrato alemão se grafa com a maiúscula “Freude”. Aliás, essa palavra está presente , na tradução do título do conto “As margens da Alegria”, chamado, em alemão, “Die Ufer der Freude”, na edição de 1972 (Rosa, 1972, p. xxviii) e que narra a estória de um Menino e seu (im)possível desejo, o Menino que realiza o que  Outro deseja, naquela sua “viagem inventada no feliz”… (Rosa, 1968, p. 3)

Argumente-se essa direção de leitura analítica com declaração do próprio Guimarães Rosa à pergunta sobre sua relação com a literatura alemã: “(…) a importância monstruosa, espantosa de Freud”, dentre autores que o “impressionaram e influenciaram muito intensamente.” (Lorenz, 1991, p.88).

Assim se lê, no texto rosiano, as línguas e suas literaturas traduzidas e reaproveitadas, de maneira peculiaríssima, no sempre jogo de fazê-las dizer o infinito.  

Se se percebe, na literatura de Rosa, esse movimento para o “móvel  mundo” (Rosa 1968, p. 03), de novo, como o Menino margeando a Alegria, de Primeiras estórias, que alçado ao avião aos cimos, busca, no terreirinho da casa do acampamento, o peru que sequer “bisviu” (Rosa, 1968, p.5), consolando-se mesmo com a luzinha verde de um primeiro vagalume vindo da mata, nosso escritor volta às suas Minas, para explorá-las em sua riqueza humana, cultural, histórica, geográfica e lingüística, para poder dizer do mundo.

Desse modo, vindo do exterior, do além das Gerais, ele sente necessidade de voltar às suas minas/Minas sertanejas, para beber no veio d’água que alimenta os muitos rios de sua vida e obra, para flagrar o momento mágico, centelha de sua criação, na mesma saudade de Riobaldo ao contar a seu interlocutor: “Que eu recordava de ver o rio meu – beber em beira dele uma demão d’água” (Rosa, 1965, p.338).  

Assim, no “entremeio” das suas andanças de diplomata, Guimarães Rosa retorna ao Brasil e, em três ocasiões, busca, no interior, o que podemos chamar, como Riobaldo, “o quem das coisas”, o que traduzirá, no conto, “Entremeio: com o vaqueiro Mariano”, de Estas estórias, como: “Eu tinha precisão de aprender mais, sobre a alma dos bois, e instigava-o a fornecer-me factos, casos, cenas.” (Rosa, 1976, p.69).

Em nome disso, pois, em 1945, viaja pelo interior de Minas; em julho de 1947, vai ter ao Pantanal de Mato Grosso, onde se dará o encontro com Mariano; e, em maio de 1952, passa dez dias no sertão mineiro, vivendo a experiência de acompanhar uma tropa, cujo comando está nas mãos de Manuelzão – o vaqueiro Manuel Nardy -, condutora de uma boiada, a partir da Fazenda da Sirga, perto de Três Marias, até a Fazenda São Francisco, em Sete Lagoas. 

As fotografias que testemunham a expedição nos mostram o escritor e suas famosas cadernetas  tal como o interlocutor, que, no Grande Sertão: Veredas, faz anotações, enche muitas cadernetas…

Se esse movimento denota o mergulho, a imersão que precede o aflorar, o ir para voltar à flor das águas, denota, também, o movimento dialógico de oralidade e escrita, cujas fronteiras também se esmaecem na literatura de Guimarães Rosa. 

Essa literatura, sorvendo da experiência transmitida sim, pelo narrador oral, épico, transmuta-se, por processo alquímico, na letra, na escrita, a quem sempre presta sua homenagem…Parece-nos antológico o excerto do final do Grande Sertão para a figuração dessa intenção autoral. Na Batalha Final, no Paredão,  Riobaldo conta, assim, ao senhor que o ouve: “A gente disparava dentro dos quintais, avançávamos. E de detrás das casas. E guardávamos o emboque da rua. Diz que lê?; diz-que escreve! Tiro ali era máquina. Aos tantos, juntos, relando – cinco deles, cinco dedos, cinco mãos” (Rosa, 1965, p.440 –  negritos meus). Ouve-se, no trecho,  além do tiroteio contado pelas palavras, a escrita no tamborilar dos dedos na máquina de escrever, não só pelas imagens da gestualidade como também pelo ritmo frasal dos toques nas teclas. E o escritor maior, reitera, como vimos em “Famigerado”, que tiro é letra, que palavra é arma e que “narrar é resistir” (Rosa, 1976, p.74)

Assim, se lhe cobram uma escrita engajada, uma literatura comprometida, parece que não lhe escutam o texto, que também transcende os conceitos correntes de engajamento e compromisso político, para apostar num efeito maior da literatura que, segundo, Antonio Candido, “desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.” (Candido, 2004, p.180).

Mas o artista sabe disso e, no último prefácio de Tutaméia, “Sobre a escova e a dúvida”, se nos apresenta como ficcionista, num chique restaurante de Paris, discutindo sobre o “engagement com seu alter ego, escritor também, ambos já meio tocados pelo álcool. O companheiro de copo do nosso escritor, acusando-o de se alienar politicamente em sua  produção literária, propõe-lhe que escrevam juntos um livro, convite a que responde com certa ironia, com argumentos diversos e transversos, entre os quais coloca a questão da escova e da dúvida – seus usos transformados em rito que “Cumprem o inexplicável”. (Rosa, 1985, p.174) Assim, por linhas tortas, ele respondia à crítica, figurada no outro escritor engajado: fazer literatura comprometida em virtude de uso e costume, da moda… Será? E, continuando sua resposta, que transita por uma fala matreira sobre as inspirações de alguns de seus textos, ele chama à cena um vaqueiro – desta vez, o vaqueiro Zito,  pois “que sendo entre os dali a um tempo o cozinheiro melhor mais o  maior guieiro – e era dado a poeta”. (Rosa, 1985, p. 179) Diz-nos, assim, pelo pensamento de Zito, trançando o certo pelo incerto,  que “um livro , a ser certo, devia de [ter] a virtude de enganar com um clareado a fantasia da gente, empuxar a coragem”. E completa: “Cabia de ir descascando o feio mundo morrinhento; não se há de juntos iguais festejar Judas e João Gomes.” (Rosa, 1985, p.182). Frise-se, ainda, que esse excerto VII de “A escova e a dúvida” está encimado por um das epígrafe atribuída a Tostói que aconselha: “Se descreves o mundo tal qual é, não haverá em tuas palavras senão muitas mentiras e nenhuma verdade.” (Rosa, 1985, p.178)

Em Montmartre, na conversa, pois, entre dois escritores, convoca-se a presença do vaqueiro” dado a poeta”, do sertanejo, para se argumentar sobre literatura. De novo, a volta ao âmago, a busca da alma do sertão para dizer do mundo, a volta às Minas para sondar horizontes gerais. Assim, o mesmo movimento apontado no título de um dos contos de Tutaméia – “Antiperipléia”, cujo narrador reitera: “Tudo, para mim, é viagem de volta.” (Rosa, 1985, p.18)

É esse o escritor que congrega, através de sua literatura, leitores múltiplos que a buscam e nela encontram respostas para muitos saberes; é esse escritor que, homenageando a língua, as línguas, atrai leitores dos muitos lugares além das gerais. 

É esse o autor mineiro que alcança o mundo, no vislumbrar sempre, em sua literatura, o infinito que ele marca com o símbolo tão conhecido da lemniscata, ao fechar o romance Grande Sertão: Veredas. Essa obra traz a dedicatória: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Fantini (2004), autora de obra que trata especialmente de fronteiras, margens e passagens na literatura de Guimarães Rosa, na XIX Semana Rosiana, em julho de 2007, em Cordisburgo, aventou a hipótese, muito plausível, considerando-se a plurissignificação com que o autor marca todas as suas grafias,  de esse símbolo, também conhecido como banda de Moebius, reiterar  dedicatória e  homenagem a Aracy, se se leva em conta também um dos sobrenomes  da companheira: Aracy Moebius de Carvalho. Acrescente-se, pois, a escrita rosiana aqui fazendo mais uma das suas- funcionando, graficamente, para reiterar sentidos. Se, como se viu, em Primeiras estórias, os contos das bordas do livro (o primeiro, “As margens da Alegria” e o último, “ Os cimos”) figurariam a cidade de Brasília, não referenciada, mas encenada artisticamente, erguida  no planalto central do país, rasgando o cerrado, em Grande sertão, a dedicatória se concretiza como uma cerca, uma propriedade, que se abre com a dedicatória e o prenome da mulher – “A Aracy, Ara, pertence este livro” e se fecha com seu sobrenome, no ícone da banda de Moebius. Vale a pena, ainda, aventarmos outra hipótese: “Ara” designa, por extensão de sentido, pedra do altar, e há, no sertão rosiano, uma pedra que “rola”, múltipla, em toda a travessia de Riobaldo, que, matreiramente, confessa a seu interlocutor: “Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a pedra de topázio para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, por mimo; e hoje ela se possui é em mão de minha mulher!” (Rosa, 1965, p. 49). Confundem-se, pois, nas estratégias da escrita criativa,  narrador e autor; Riobaldo e Rosa seriam os “escritores” de Montmartre a conversarem uma conversinha miúda e doméstica?… 

Mas, voltando à lemniscata que fecha o romance rosiano… Se as linhas que se traçam e trançam um oito invertido podem indicar, de certo modo, a volta ao coração, ao lugar do afeto, à Aracy Moebius, são elas  que impulsionam para um alhures, para um além da alma. Não é por acaso que a psicanálise lacaniana, em 1972, vai operar também com esse traçado, a que nomeará “nó borromeano” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 542), para traduzir o entrelaçamento entre real, simbólico e imaginário e que, sem direito nem avesso, forneceria a imagem do sujeito do inconsciente. No entanto, bem antes de Lacan, em 1965, porque, como lembra a própria psicanálise, os psicanalistas sabem muito, mas os poetas sabem tudo, Rosa, citando Goethe,  relembra, na conversa com Lorenz, que “interior e exterior já não podem ser separados”, para dizer que “no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão. (Lorenz, 1991, p.86).  

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Este ensaio conta com diversas notas da autora, que podem ser lidas na versão original da publicação Literatura Mineira: trezentos anos, disponibilizada para download gratuito neste link.

Publicado em 2020 pelo BDMG Cultural, o livro foi organizado pelo professor emérito da UFMG Jacyntho Lins Brandão. Literatura Mineira: trezentos anos foi lançado para celebrar os 300 anos da fundação de Minas Gerais, de maneira reflexiva e instigante, a rica produção literária de Minas Gerais e os muitos escritores e escritoras que ganharam o Brasil e o mundo com suas histórias e obras fundamentais para nosso entendimento como país.

A publicação digital do artigo integra a programação especial dedicada ao Geraes, quinzena promovida pelo Circuito Liberdade para celebrar a riqueza e expressão artístico e cultural deste território mineiro, dentro do Ano da Mineiridade.