REVISTA nº Especial

4. Com quantas estéticas se faz uma imagem de Brasil?

Texto Nº 4 de uma série de 6 textos

Davi Aroeira
22 Dez 2020 5 Min
4. Com quantas estéticas se faz uma imagem de Brasil?

 

A escolha pelo concretismo de Antônio Maluf para ilustrar o cartaz da 1ª Bienal de São Paulo demonstra a predileção estética dos organizadores do evento. A arte moderna se expandia na matemática visual do design gráfico, nos traços do desenho industrial. Cartaz da 1ª Bienal. Antônio Maluf, 1951. Acervo Bienal de São Paulo.

 

O fenômeno de “atualização estética” ocorrido no Brasil entre os anos 1940 e 50 não foi nada natural. Ao contrário, foi resultado dos esforços coletivos, que envolveu críticos, editores — com suas publicações cadernos culturais dos jornais e revistas especializadas balanços, teoria e análises estéticas produzidas no exterior —; artistas brasileiros, — eles mesmos os principais atores desse processo; mas também patrocínios particulares, que impulsionaram o universo artístico no Brasil. Além do já citado Assis Chateaubriand, outro nome importante nesse mecenato foi Francisco “Ciccillo” Matarazzo. O paulistano havia bancado a fundação do Museu de Arte Moderna; e, pensando alto, aproveitou de suas galerias para trazer à São Paulo uma experiência que se mostrou um sucesso internacional — sendo considerado o principal acontecimento artístico fora dos Estados Unidos e Europa, já em sua primeira edição —: a Bienal de São Paulo.

A “I Bienal do Museu de Arte Moderna” ocorreu entre outubro e dezembro de 1951. Contou com a impressionante cifra de 1854 obras, produzidas por 729 artistas de 25 países. Galerias especiais prestigiaram um seleto grupo de pintores modernos brasileiros: Cândido Portinari, Di Cavalcanti e Lasar Segall. A inspiração para a mostra foi a Bienal de Veneza — cuja primeira edição ocorreu ainda no século 19, em 1895. Segundo Matarazzo, o objetivo da Bienal era “tentar conquistar para a cidade de São Paulo a posição de centro artístico mundial”.

Para o crítico Mário Pedrosa, a Bienal de São Paulo obteve êxito não apenas em reformular a imagem do Brasil no estrangeiro, mas também por atualizar a produção nacional em relação àquela produzida no exterior. “Ampliar os horizontes da arte brasileira” de modo a “romper o círculo fechado em que se desenrolavam as atividades artísticas no Brasil, tirando-as de um isolamento provinciano”, nas palavras de Pedrosa.

 

As obras vencedoras — afinal, havia um “quê” de competição nas primeiras bienais — nos campos da pintura e escultura foram, respectivamente, Formas, do carioca Ivan Serpa, e Unidade Tripartida, do suíço Max Bill . O quadro de Serpa é, em resumo, o que o título sugere: uma composição de formas — circulares, de tons ocres, flutuando em um espaço neutro. Já a escultura de Max Bill, uma peça vazada, feita de aço inoxidável, reproduzia a fita de Möebius — uma estrutura orgânica, infinita, em que as linhas se dobram e se entrelaçam em pontos simultâneos da obra, num movimento contínuo que não deixa saber onde começa e onde termina. [+]Ver imagem ao lado. Autor não identificado. Max Bill, ‘Tripartite unit’ [Unidade Tripartida], na Seção Geral Suíça. Retirada do site da Bienal de São Paulo. http://www.bienal.org.br/exposicoes/1bienal/fotos/3815 [-]

Concretos

A consagração desses dois trabalhos — em especial a escultura de Max Bill — irá influenciar decisivamente os rumos da produção artística do país em direção à uma arte moderna, geométrica, matemática e racional.

Essa manifestação artística seguia uma corrente da qual Max Bill foi o principal divulgador pela América Latina: o concretismo. [+]O concretismo, vale dizer, não foi a única expressão da abstração geométrica no Brasil na década de 1950. Cícero Dias e Antônio Bandeira são dois exemplos de pintores que praticavam arte figurativa sem o rigor matemático do concretismo. Além disso, não é banal mencionar que a arte figurativa, a despeito de ter caído em certo descrédito perante às novas modalidades modernas das artes plásticas, ainda permanecia viva em seus antigos mestres, além de nomes como Djanira, Heitor dos Prazeres, Iberê Camargo, Carybé; sem contar gravuristas como Samico e Renina Katz. Caso curioso é o de Alfredo Volpi, que beirou entre o figurativo e a arte geométrica, com suas bandeirinhas e paisagens retangulares chapadas. [-] Tendo em vista a análise de Pedrosa sobre a Bienal, o resultado dessa promoção do concretismo no Brasil foi além do esperado: o país não apenas se atualizou esteticamente, mas produziu ele próprio uma nova leitura dessa arte de vanguarda.

“A obra, tal qual num teorema de álgebra, se desenvolve”. Essa é uma das definições dadas por Max Bill para a arte concreta. Para além de sua habilidade como artista, o suíço foi um importante teórico do campo visual no século XX. Seu período de formação — que incluiu um tempo como estudante na revolucionária escola arte da Bauhaus, na Alemanha — coincide com um momento em que o design, o desenho industrial e a arquitetura se amalgamaram sob uma mesma perspectiva funcional e, ao mesmo tempo, criativa: o construtivismo. Max Bill defendia que, diferentemente de um abstracionismo que permite que o artista exerça sua subjetividade, a arte concreta é objetiva, sem que haja nenhum elemento injustificado. Manifesta-se a forma pura, sem qualquer outra significação senão aquilo que se vê: linhas, pontos e cores num diálogo entre si e com o espaço no qual estão inseridas — ou seja, a maneira como se arranjam e ocupam as dimensões do quadro ou da escultura. A obra não seria aqui fruto de pura inspiração, mas um trabalho meticuloso, preciso, antirromântico por assim dizer, praticado pelo artista — ainda que não seja de todo enganoso pensar haja aqui uma certa “romantização” da percepção visual ao buscar pela pureza das formas.

A linguagem incutida no conceito de arte concreta encontrou aderência no contexto desenvolvimentista do Brasil nos anos 1950. Décadas mais tarde, o crítico e poeta Ferreira Gullar declarou que, “ao contrário das tendências individualistas ou niilistas da arte contemporânea, a arte concreta deriva de um compromisso com a época moderna, com a sociedade industrial, dentro da qual o planejamento conta como fator relevante”.

Davi Aroeira

 

é historiador e professor, com mestrado pela UFMG. Atua como pesquisador há mais de uma década, buscando no encontro ente arte e política, e no diálogo entre texto e imagem, uma narrativa potente para abordar processos históricos.

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