REVISTA nº 4

Ensinar cultura, fortalecer tradições

Os professores de cultura das escolas xakriabá têm fortalecido as práticas tradicionais com o apoio da comunidade e despertado o sentimento de orgulho e afirmação da identidade indígena por meio da educação

Juliana Afonso
06 Mai 2021 13 Min
Ensinar cultura, fortalecer tradições
Comunidade e estudantes se reúnem em volta da fogueira na Escola Estadual de Buknuk. Foto: Joel Xakriabá

A produção da cerâmica xakriabá envolve planejamento, prática e paciência. É preciso tempo para manusear o barro e imprimir significado às peças. A transmissão desses conhecimentos, realizada ano após ano nos quintais das casas dos sabedores, tem sido levada para dentro das escolas indígenas da região onde vivem os Xakriabá, bem ao norte de Minas Gerais, quase na divisa com Bahia. E boa parte desse trabalho de transmissão tem sido conduzido por figuras importantes nessas comunidades, os professores de cultura.

Reunir tantos elementos em uma aula-padrão de 50 minutos, contudo, não é tarefa fácil. “Eu tive muita dificuldade para transmitir os processos da cerâmica. Mal organizava a turma, já tava no meio da aula”, conta Nei Leite Xakriabá, professor de cultura da Escola Estadual Indígena Xukurank, na aldeia de Barreiro Preto, localizada no município de São João das Missões. Para conseguir a atenção dos alunos e o tempo necessário para a prática, ele desenvolveu algumas estratégias. Uma delas foi a de não comparecer às suas próprias aulas. Com o tempo acumulado de quatro ou oito classes, Nei combinava com os alunos de se encontrarem no final de semana e passarem um dia inteiro juntos. “São oficinas em que a gente não fica muito preso nessa questão do horário, a gente acompanha mais o tempo do barro.”

Estudantes manuseiam e modelam peças de cerâmica. Fotos: Joel Xakriabá

As oficinas propostas por Nei seguem a ordem ensinada pelos mais velhos. A primeira mostra a relação da cerâmica com o calendário lunar. Com a chegada da lua adequada, ele leva os estudantes para o local onde os artesãos apanham o barro. Ali acontece a segunda oficina, onde os jovens aprendem a reconhecer qual material deve ser usado e a coletá-lo. Depois é a vez da oficina de técnicas de modelagem, onde eles aprendem a moldar a argila. Com as peças secas, vem a oficina de acabamento e decoração. Por último, a oficina de queima. Depois de prontas, os alunos podem levar as peças para casa para usar, presentear, trocar ou vender.

A proposta ganhou a simpatia dos alunos, mas enfrentou resistência da Secretaria Estadual de Educação. “Os inspetores acham que aula é aquilo que acontece entre quatro paredes, mas para nós todos os lugares são lugares de aprendizado: uma olaria, uma roça, uma nascente.” O entendimento de Nei sobre as formas de transmitir o conteúdo aos alunos não é só dele. Ao contrário, ele está amparado pela comunidade e chancelado pelo cargo que ocupa na escola: Nei é professor de cultura.

Estudantes na Escola Estadual de Buknuk, na Aldeia Sumaré I. Foto: Joel Xakribá

O nome pode até ser confundido com o já conhecido professor de artes das escolas convencionais, mas a categoria de professor de cultura é diferente e só existe nas escolas indígenas, não só aqui em Minas, mas também em outros estados. Sua função é fortalecer as práticas tradicionais. “Os professores de cultura são detentores de conhecimentos tradicionais da comunidade, mas o que será trabalhado nas aulas depende muito de cada um”, afirma a professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Verônica Mendes Pereira, especialista em educação escolar indígena.

A autonomia para escolher e construir o conteúdo é uma das características do cargo. Outra particularidade é o fato de os professores de cultura serem indicados pelas lideranças da comunidade. A pessoa escolhida também não precisa ter passado por um processo de formação na universidade ou mesmo frequentado a escola: o requisito básico é ser reconhecida como autoridade de conhecimento das práticas ancestrais.

Cultura ancestral, cultura viva

A cultura sempre foi um elemento central dentro das escolas indígenas. Apesar de não terem uma definição formal, a cultura para os Xakriabá envolve os conhecimentos herdados dos seus antepassados, como as práticas de medicina tradicional e do cultivo da terra. A cultura também abrange as características de organização do povo. “É o modo que a gente vive, pensa, fala, o modo como a gente age e se organiza”, afirma Joel Xakriabá, professor de geografia e de cultura e suas tecnologias na Escola Estadual de Buknuk, na Aldeia Sumaré I.

Moringas de cerâmica produzidas e pintadas pelo povo Xacriabá. Fotos: Nei Xakriabá

Joel gosta de discutir com os alunos sobre o tema e mostrar que a cultura está além dos objetos culturais, como os artesanatos, os trançados e as pinturas. Nas suas aulas, ele busca relacionar as técnicas tradicionais, utilizadas pelos antepassados, com as técnicas modernas. Uma das atividades que ele ajudou a realizar foi a gravação de um programa de rádio com uma turma que estava estudando plantas medicinais. As crianças pesquisaram, escreveram e gravaram o programa sobre o tema com o apoio de Joel e outros professores.

O fato de a cultura xakriabá ser constituída por práticas ancestrais não significa que ela está parada no tempo. Ela é viva e sofre influência de outros povos, indígenas e não indígenas. É o caso da inclusão de práticas da religião católica no calendário da comunidade, como a Festa de Reis e a Festa de Santa Cruz, trazidas pelos jesuítas durante as invasões do território.

A retomada da produção da cerâmica também é um exemplo dessa combinação de saberes. Para aprender e passar esse conhecimento adiante, Nei Xakriabá buscou a orientação dos mais velhos, principalmente da sua mãe, a senhora Dalzira Xakriabá, uma das últimas ceramistas da aldeia. “Todos tinham deixado de fazer cerâmica devido à falta de interesse. As pessoas queriam mais os objetos industrializados”, lembra Nei. Em um esforço coletivo de ensino e aprendizado, a comunidade conseguiu retomar a queima a céu aberto – uma tradição antiga que não era feita há mais de 40 anos – e desenvolver elementos novos. “Hoje em dia, por exemplo, eu coloco uma tampa nas moringas com a forma de animais da região, coisa que meus antepassados não faziam”, conta Nei.

Homem exibe moringa de cerâmica com tampa na forma de um animal da região. Foto: Tales Bedechi

O direito a uma educação específica e diferenciada

A existência do cargo de professor de cultura nas escolas xakriabás, bem como na de outros povos indígenas, está intimamente ligada à ideia de uma educação específica para essas populações, que entenda suas necessidades e respeite suas identidades e tradições. Entretanto, historicamente, a educação nos territórios indígenas foi marcada por uma forte presença de professores não indígenas. “Muitas dessas escolas não deixavam os alunos cultuarem suas próprias práticas”, afirma Verônica Mendes. O direito a uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural e bilíngue só foi efetivado na Constituição Federal de 1988. A mudança, entretanto, não aconteceu do dia para a noite: foi preciso lutar e se articular em diversas instâncias para colocá-la em prática.

Em Minas Gerais, a proposta começou a tomar forma em 1995, quando foi iniciado o Programa de Implantação das Escolas Indígenas (PIEI), em parceria com a UFMG e outros atores sociais. O programa tinha dois objetivos principais: a formação de professores das quatro etnias até então reconhecidas pelo estado – Krenak, Maxakali, Pataxó e Xakriabá – e a implementação física de escolas nesses territórios.

As ações aconteceram simultaneamente e os indígenas assumiram o papel de professores antes mesmo de se formarem. “Isso inaugura uma especificidade nas escolas de Minas, em particular no território xakriabá, que é a precedência do pertencimento à comunidade. Se as lideranças indicam uma pessoa que não tem formação, ela começa a dar aula e depois busca a formação necessária”, explica Ana Maria Gomes, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Antigo espaço de aulas. Fotos: Verônica Mendes

Após vivenciar experiências de escolas indígenas em outros estados, Ana Maria afirma que essa é uma realidade particularmente forte no território xakriabá. “Em Porto Seguro, sul da Bahia, por exemplo, a educação indígena ainda exige o regime de diplomação. Se o indígena não tem diploma, ele não vai ser professor. Aqui em Minas não é assim, o principal é pertencer à comunidade.” Para ela, essa especificidade demonstra a força do movimento indígena no estado e o compromisso da população com uma escola realmente comunitária.

É esse compromisso que leva à ampliação do Programa. “Depois da formação da primeira turma a gente começou a ouvir dos próprios indígenas, principalmente das mães, que ‘poxa, mas tanta luta e tanto trabalho para implementar essa escola para chegar na 4ª série, e aí? As crianças vão ter que sair da escola de novo para estudar fora da aldeia?’. É quando os indígenas passam a pleitear uma formação mais ampliada e o direito a continuarem como professores de 5ª a 8ª série [6º ao 9º ano do ensino fundamental]. Para isso, é necessário que os professores tenham um curso de licenciatura”, conta Verônica. Assim, em 2006, a UFMG institui a primeira turma de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI), impulsionada pelo início do ensino fundamental no território xakriabá, em 2003. Já em 2007, acontece uma nova extensão e as escolas passam a ofertar também o ensino médio.

A luta pela consolidação dos professores de cultura

Os Xakriabá têm um trabalho contínuo de “levantamento da cultura”, ou seja, de resgate das práticas culturais ancestrais, e a escola desempenha um papel fundamental nessa tarefa. Mas se todas as disciplinas já trabalham elementos da cultura xakriabá, seria mesmo pertinente exigir a criação de uma função específica para isso? Esse questionamento atravessou o processo de consolidação das escolas no território. A comunidade insistiu na importância da criação do cargo de professor de cultura, que foi formalizado em 2007.

De fato, a instituição de um cargo específico para o ensino da cultura não enfraqueceu o aprendizado do tema em outras áreas da escola. Ao contrário, ela ampliou, permitindo a elaboração de projetos transdisciplinares e novas metodologias. “A gente faz oficina com os alunos, com os outros professores e com a comunidade. A gente trabalha junto com eles”, conta a professora de cultura Laura Xakriabá, da Escola Estadual Indígena Xukurank, na aldeia de Barreiro Preto.

Professora de cultura Laura Xacriabá organiza peças de cerâmica. Foto: Nei Xakriabá

Laura se tornou professora de cultura há 14 anos, por indicação do senhor Valdemar, uma das lideranças mais antigas a ocupar o cargo. Desde então, Laura leva o costume do seu povo para dentro da sala de aula. “Ensino sobre as músicas, as danças, os artesanatos, a responsabilidade que a gente tem com a comunidade, com os caciques, com as lideranças e com os demais. Essa que é a grande responsabilidade, de estar caminhando junto.”

Hoje, o cargo de professor de cultura está consolidado, mas a sua instituição enfrentou uma série de barreiras. Segundo Joel Xakriabá, o governo tinha dificuldades em aceitar a contratação de pessoas sem escolaridade. “A contratação desses professores só aconteceu depois de muita discussão e de muita luta, e também de mostrar que a escola precisava desses professores porque uma escola diferenciada não pode ser só dentro das quatro paredes.”

O papel da comunidade na vida escolar não é apenas figurativo: as moradoras e moradores do território realmente debatem e decidem os rumos da escola. Esse é um compromisso inabalável. A professora e pesquisadora Ana Maria Gomes lembra que os Xakriabá foram convidados para falar sobre a experiência da escola indígena em um congresso de ação pedagógica. “Várias escolas [não indígenas] apresentaram suas experiências e a pergunta dos professores xakriabá era ‘mas vocês não vão apresentar isso pras suas comunidades?’” A comunidade está tão presente nas decisões do cotidiano escolar xakriabá que conceber uma dinâmica separada do coletivo parece absurdo.

A instituição do cargo de professor de cultura também foi fundamental para a estrutura escolar indígena. Sem uma chancela oficial, o cargo podia ser destituído por uma eventual mudança de governo.

“A presença do professor de cultura é a tentativa de fazer o estado reconhecer esse lugar, não deixar ele relegado ao plano de participação episódica, temporária e passível de não ser reconhecida a qualquer momento”, afirma Ana Maria. Para ela, incorporar, remunerar e dar local instituído a um representante da cultura tem uma forte dimensão político-simbólica.

Embora a legislação garanta às escolas indígenas propostas pedagógicas específicas, as comunidades são constantemente pressionadas a retomarem certas características das unidades de ensino padrão.

A tentativa de desqualificar a cultura local não é nenhuma novidade. Apesar de serem um dos pouquíssimos povos a receber o título de posse das terras ainda no século 18, os Xakriabá enfrentaram uma série de investidas contra o seu território. Uma das mais violentas foi o massacre de 1987, quando três lideranças foram brutalmente assassinadas a mando de um grileiro. O fato foi um marco para a homologação da terra e a retirada de 90 famílias de posseiros da área indígena.

Orgulho e afirmação da identidade

Mais do que fortalecer as práticas tradicionais do povo Xakriabá, o professor de cultura busca despertar nos alunos um sentimento de pertencimento. E o impacto já é sentido na comunidade. “Passamos por um período em que tudo nosso era desvalorizado: a pintura corporal, a língua xakriabá, as práticas tradicionais. Os professores não valorizavam isso e a gente tinha vergonha de mostrar quem a gente era”, lembra Nei, que hoje trabalha para que seus alunos tenham orgulho das suas origens e da sua identidade.

A aluna experimenta produção de cerâmica. Foto: Nei Xakriabá

O esforço tem surtido efeito. “Eu acho importante o ensinamento sobre a nossa cultura. Sempre acontece de a gente chegar num lugar e uma pessoa branca ficar com preconceito, por conta da gente não ter ‘cabelo bom’, da cor de pele. Tendo esse aprendizado a gente vai saber dar uma resposta à altura”, afirma o artesão Geilson Gonçalves de Oliveira, 19 anos, recém-formado na Escola Estadual Indígena Xukurank.

Esse cenário de valorização das tradições indígenas, do qual os professores de cultura fazem parte, tem colaborado, inclusive, para a emergência de movimentos sociais de lutas por direitos. Exemplo disso foi a realização do I Encontro da Juventude Xakriabá, realizado em 2017 na aldeia de Imbaúba, que reuniu cerca de mil jovens. Outro movimento que ganha cada vez mais expressão é o das mulheres indígenas xakriabá, que têm participado de marchas nacionais e ganhado visibilidade regional e nacional.

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Juliana Afonso

 

é jornalista e mestre em Escrita Criativa. Atua como freelancer para diversos veículos de comunicação nas áreas de Turismo, Cultura, Política e Direitos Humanos.

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