REVISTA nº 4

Gil Amâncio: um artista na trilha dos saberes afrodiaspóricos

Uma conversa sobre arte e cultura negra, o lugar do corpo no aprendizado e as possibilidades do “brincar como forma de habitar o mundo” 

Francielle de Souza
06 Mai 2021 10 Min
Gil Amâncio: um artista na trilha dos saberes afrodiaspóricos
Gil Amâncio, artista, músico, arte-educador e preparador corporal. Foto: Divulgação

Aos 66 anos, Gil Amâncio está criando. Assim mesmo, sem a necessidade de adicionar qualquer complemento para o que faz, pois é no ato e na potência de criar que a sua trajetória se fia. Imerso em possibilidades de experienciar o mundo por meio da arte e da educação, Gil está na ativa desde 1976, quando começou a dar os primeiros passos no teatro, encenando. 

Mas foi o contato com Marlene Silva, fundadora da primeira academia de dança afro de Belo Horizonte, que definiu muito de seu percurso na arte. A mestra, como ele a chama, foi quem despertou em Gil o interesse por conhecer e pesquisar a cultura negra, hoje principal objeto de suas produções. Foi também por meio do encontro com Marlene e com a academia de dança, ocorrido no final dos anos 1970, que pôde ter contato com dançarinos (as) e intelectuais e músicos com quem passou a compartilhar o desejo e a urgência de ver artistas negros, com trabalhos autorais, ganhando os palcos da capital.

A partir daí, trabalhou em diversos espetáculos teatrais, como ator e como músico. Mais tarde, nos anos 1990, fundou a Companhia SeráQuê?, com Rui Moreira, Guda e Ricardo Aleixo, além da produtora Bete Arenque. Ali, mergulhou nos sentidos e significados de ser negro urbano, numa proposta de articulação entre arte, negritude e espaço público que ajudasse a pensar a cidade e a quem ela pertence. Com o grupo, viajou para outros países, conheceu outras culturas e se conectou ainda mais com a arte da diáspora.

Gil Amâncio com a perfomance Ponto Riscado. Foto: Guto Muniz

Já como assessor da Secretaria de Cultura de Belo Horizonte, na gestão de Maria Antonieta Antunes Cunha (1993-1996), Gil idealizou duas importantes iniciativas para o setor artístico da cidade: o FAN (Festival de Arte Negra) e o Centro de Referência Cultural da Criança e do Adolescente. Foi nesse momento que abriu mais um leque na carreira e se envolveu de vez com o tema da infância, estudando e entendendo o brincar como uma forma de habitar o mundo.

Atualmente, ele desenvolve, ao lado da filha Gabi Guerra, o projeto Ciberterreiro, um exercício de experimentação que conecta música, artes visuais, tecnologia e palavra a partir de uma perspectiva afrodiaspórica. Também integra o Coletivo Black Horizonte, além de coordenar um grupo de estudos na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), ao lado da professora Shirley Miranda.

Capturas de tela de transmissão virtual

Em conversa com a REVISTA BDMG Cultural, Gil Amâncio conta mais sobre o ofício de arte-educador e o que se pode aprender com culturas e epistemologias ainda tão pouco valorizadas.

  • Como você vê a articulação entre educação e cultura no seu trabalho?

Na minha trajetória como artista, sempre houve essa conexão por trabalhar com oficinas, seja para crianças, seja para professores, nas escolas, na arte-educação. Mas, na medida em que eu fui aprofundando a pesquisa tanto sobre a cultura da infância quanto sobre as culturas afrodiaspóricas, fui percebendo que essas culturas têm uma maneira própria de apreender as coisas, de criar espaços para o aprendizado e a convivência. Isso começou a mexer com a minha cabeça, me fazendo pensar, realmente, a arte como um elemento fundamental do processo de produção e transmissão do conhecimento. 

Quando os terreiros, as capoeiras, os reinados estão cantando, dançando ou preparando a festa é o momento em que as crianças aprendem o que é necessário para viver, aprendem as culturas. Não há uma separação entre arte e educação. Uma criança aprende a tocar tambor no reinado, tocando na festa. Ela não é retirada do reinado para fazer aula de música, para aprender e, um dia, voltar. Não. O lugar do ensino é ali porque ela também tem que aprender o sentido cultural de tocar o tambor. 

Existe aí todo um processo de educação que é muito importante para mim. Tanto é que hoje eu levei o Ciberterreiro para a FaE justamente para discutir uma coisa pela qual a sociedade está muito desejosa, que é uma educação contra-colonizadora: uma educação que não faça os apagamentos da presença negra na cidade, na história; uma educação que passe pelo corpo, que não passe só pela cabeça. E, para mim, a arte é fundamental para fazer essa conexão.

  • Por falar na FaE, em 2008, o seu trabalho e sua trajetória foram temas de uma tese de doutorado da UFMG. Qual a importância do diálogo entre esses diferentes processos formativos – da universidade e dos terreiros – para uma educação afrodiaspórica e afrobrasileira?

Hoje, há uma presença negra e indígena maior dentro da universidade, mas ela não está preparada para receber essas pessoas. A universidade ainda tem muito pouco conhecimento sobre essas culturas, os seus modos de viver, de pensar, de produzir conhecimento. Então, acho que uma coisa importante a se fazer é começar a criar essa relação, para que essas pessoas encontrem um ambiente que não seja estranho a elas, que seja acolhedor.

A gente sabe de várias histórias de professores que acham que não tem importância discutir racismo dentro da universidade. Essa conexão entre os modos de aprender da universidade e dos terreiros é fundamental para começarmos a ter essa conversa, para construirmos, de fato, um processo formativo mais humano, que pense o futuro, um outro futuro. 

Acho que, apesar da dor e da insegurança que a pandemia está causando em todos nós, ela está fazendo com que a gente pare e pense em que sociedade nós estamos querendo viver, porque essa que foi colocada para nós como aquela que ia trazer a solução para os problemas está, na verdade, gerando ainda mais problemas. A gente liga a TV, abre um jornal e as questões da natureza, dos povos indígenas, dos povos quilombolas, da infância… só descaso. Então, que humanidade é essa que nós estamos construindo?

Nego Bispo diz que a gente conhece o grau de doença de uma sociedade na medida em que ela coloca as crianças na creche e os velhos no asilo. São duas gerações que não convivem. Não tem a oportunidade de ter essa troca de conhecimento e essa convivência entre o neto e o avô. Isso é uma sociedade que não está pensando nas relações humanas. Ela está visando produtividade e consumo, que é o grande ponto que nós temos que discutir na educação. Hoje, a sociedade se organiza inteira para consumir. De certa forma, a pandemia está nos aproximando para pensar outros mundos possíveis. Essa construção não é só de um lado ou de outro. Precisamos de conversa. Precisamos de uma sociedade que crie espaços de diálogo, por isso a importância do contato entre diferentes tipos de conhecimento.

  • Você citou a cultura da infância na sua fala. Como começou o seu contato com o público infantil e adolescente?

O marco da minha relação mais direta foi quando criei o Centro de Referência Cultural da Criança e do Adolescente. Tive a oportunidade de trazer, para uma palestra, Lydia Hortélio, uma baiana arretada que tem uma pesquisa maravilhosa sobre as brincadeiras da infância. Até então, para mim, a brincadeira estava muito ligada ao lúdico. Nunca tinha pensado no brincar como uma cultura. Lydia trouxe este conceito: cultura da infância.

Eu falei: “Poxa, uma cultura ensina tudo o que a gente precisa. A cultura indígena de um determinado lugar ensina tudo o que aquelas pessoas precisam para viver ali. A cultura ocidental nos coloca na escola e na família para aprender certas coisas. O que a cultura da infância ensina? Como ela ensina?”. 

Foi partindo dessas perguntas que eu comecei a pesquisar. Fui pesquisando e encontrando a maneira maravilhosa com que a criança aprende. É orgânico: ela aprende olhando e copiando o mais velho. E aí ela vai construindo brinquedos que começam do mais simples… Por exemplo, o papagaio. O primeiro é sempre uma sacolinha de plástico amarrada na ponta de uma linha que a criança sai puxando. Depois, aquilo se transforma até chegar numa estrutura que faz manobras no ar. Então, o papagaio exige um processo para ser construído. Só que a gente não olha para isso. Lydia me ensinou a olhar para o(a) menino(a) e a aprender com o(a) menino(a). Foi aí que eu comecei a pesquisar a brincadeira, o brincar e o modo como se aprende na cultura da infância.

E tem mais uma coisa interessante. Na medida em que eu fui me aprofundando nos estudos sobre as culturas afrodiaspóricas, eu vi que, nelas, os mestres nomeiam o seu fazer não como rezar o candomblé, por exemplo, mas como brincar o candomblé. Eles dizem: “eu vou brincar o maracatu, brincar o samba, brincar a capoeira”. Aquilo que a criança faz. Comecei a ir fundo nisso e a perceber, então, que a maneira com que se aprende no terreiro é a mesma forma como a criança aprende. Quando olhamos para o reinado, vemos crianças pequenas com tambores pequenos, crianças maiores com tambores maiores e os adultos com os tambores grandes. Os pequenos ficam vendo tudo, comendo com os olhos e ouvidos. Ao mesmo tempo, como já estão com seus tambores, começam a imitar os mais velhos. Na medida em que crescem, eles começam a descobrir um jeito próprio de tocar e a entender o que é, para cada um, ser congadeiro. Esse processo se diferencia da escola. Não é como a matemática que se aprende e que espera-se que você repita a mesma coisa que lhe ensinaram. Eles acompanham as mudanças ao longo do tempo. É um princípio dinâmico, que está tanto na cultura da infância quanto nas culturas afrodiaspóricas.

 

  • Como esse tipo de epistemologia que conecta saberes corporais afrodiaspóricos e os saberes da infância pode nos ajudar a pensar mundos outros?

Uma história do povo iorubá conta que, quando Orumilá veio à Terra, ele pediu a Olorum uma coisa que pudesse levar para os humanos, algo que mostrasse o quanto Olorum gostava deles e que desejava manter uma conversa com eles. Olorum manda os instrumentos musicais e a festa. E é a partir da festa que se cria o ser humano e sua comunicação com as forças da natureza. Através da dança, da música, da festa. Várias histórias africanas sobre a criação do mundo dizem a mesma coisa: que nós nascemos da festa. E ainda: que os deuses começaram a criação do mundo, mas cabe a nós continuá-la. 

Para mim, há duas coisas importantes aí. A primeira é que as crianças, quando chegam, trazem as mais novas notícias do outro lado. Chegam falando que está tudo errado e que podemos fazer diferente. É por isso que elas chegam e tiram tudo do lugar. Se a gente realmente escutar a criança, que é o que precisamos fazer, vamos escutar esse novo mundo porque é alguém que vem com um novo olhar, um novo jeito de viver. A segunda é que as culturas afrodiaspóricas trazem a festa para celebrar justamente essa criação. Nós precisamos celebrar com festa essa nova criação. A cultura da infância e as culturas afrodiaspóricas nos mostram o tempo todo que nós, humanos, somos criadores. Nós precisamos acreditar que somos capazes de construir um mundo novo. Isso é o que fica de mais forte da minha convivência com as crianças e com os mestres e mestras da cultura negra. Precisamos resgatar esse lugar da criação.

Leituras complementares

 

Francielle de Souza

 

é jornalista, mestra em Comunicação e pesquisadora. Foi editora de textos pelo Jornal A Sirene entre 2018 e 2019. Atualmente, é doutoranda em Comunicação pela UFMG.

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