REVISTA nº 11

Enxada, enxadário, enxadigmas

Da infância com a mãe na Paraíba ao encontro com a sonoridade lavradora do Zambiapunga, Babilak Bah segue construindo sua arte polivalente, política e diaspórica

Marco Scarassatti
30 Set 2023 9 Min
Enxada, enxadário, enxadigmas
Artista-ativista-educador Babilak Bah. Fotos: Divulgação

O ano era 1984. Comício pelas Diretas Já, em Brasília. Um jovem preto, paraibano, sobe no palanque, pede a palavra, pega o microfone e incendeia a multidão com a energia poética da sua performance. “Negritude”, nome do seu primeiro poema publicado, estampado no tecido de sua camiseta. E assim, tal como no ditado iorubá que diz que Exu atingiu um pássaro ontem com a pedra que lançou hoje, no momento daquela aparição em Brasília, Gilson Cesar da Silva se lançou como pedra, no movimento de vir a ser o que sua mãe já tinha lhe acertado, quando lhe disse, ainda pequeno, que seria necessário sair da Paraíba para ser aquilo que o destino lhe reservara. 

No brilho da cor negra
Capoeira, candomblé e o som do afoxé
– Virtude límpida da cultura negra
Afro-brasileira
Resplandeceu
uma negra fortaleza
na força da razão
Abolição
não foi dádiva de princesa.
E nem tão pouco concebido por realeza
Pureza… menina preta do badaué
– Negritude¡
(Porção que prolifera e ilumina o meu ser)
Xangô, o meu amor vai em ti
Zumbi, tua obstinação pra mim.

Percussão
Oração
Deus negro enfim
África mãe
África vida
Apartheid
Pelourinho, ferida
na pele negra, dolorida
Contraída
e subdividida
nos campos brancos da descriminação.
Liberdade quando enfim
Para o negro daqui e
de todos os recantos do mundo
Liberdade
Axé
(Negritude – Babilak Bah)

Quando desce do palanque, é como se Gilson tivesse se transformado, como que por encanto, naquele que no futuro seria Babilak Bah, artista do ruído, poeta da enxada, artista-ativista-educador da saúde mental, pai, peladeiro e inquieto leitor. Logo naquele instante, foi cortejado para entrar na política, e sua imagem estampou os cartazes do encontro que o Partido dos Trabalhadores (PT) realizou no mesmo ano. Entretanto, seguro de que aquele não era seu caminho, declinou e seguiu o que seu Orí lhe apontou: seu caminho era na arte, na música e na poesia. Não que a política não estivesse também no seu caminho, isso já lhe estava marcado desde o nascimento.

Iracema era uma espiritualista do culto de Xangô que benzia e fazia encantos, além de poetisa popular, repentista e doméstica, mulher nascida em Sapé, terra das lutas da liga camponesa, que fugiu de casa para ganhar a vida em João Pessoa. Babilak é o mais novo dos filhos de Iracema e acompanhava a mãe nas casas daqueles que tinham acesso a um mundo que contrastava com aquele no qual viviam. Passava parte do dia ali, perambulando pela casa alheia, entre discos e livros. E foi num desses dias que, ao retirar um livro da estante, descobriu Eu, de Augusto dos Anjos, e cometeu um delito poético que lhe custaria o amor definitivo pelos livros.

Babilak vivia com sua mãe numa casa que ela recebeu como pagamento após compor um vitorioso jingle de campanha para um político da região. Era ali que ela recebia as entidades do seu culto e fazia as benzeções. Ao filho, Iracema sempre dizia que ele deveria ganhar chão, já que ali não teria futuro. Mas a decisão de mudança começou a se desenhar apenas quando ela se encantou, partiu para outro plano. Babilak tinha à época 19 anos e disse que foram precisos dois anos para se reestruturar emocionalmente. Foi nesse tempo que conheceu e adentrou no movimento negro, conheceu a Teologia da Libertação, leu Foucault e escutou Naná Vasconcelos. Esse contato com a música de Naná lhe trouxe um companheiro inseparável, o berimbau.

Nessa época, já era conhecido como músico, e foi daí que nasceu seu apelido, pois, ao escutá-lo tocar, um amigo lhe disse: “Quando você toca, saem babilaques da sua percussão”. Esse nome pegou e só foi complementado anos depois, por sugestão de sua primeira esposa, que introduziu o Bah. Mas, ainda no tempo em que viveu na Paraíba, houve um episódio que foi como uma epifania, como o som de mais um desses encantos exúnicos que lançariam Babilak Bah para aquilo que ele é hoje. Ao assistir o show de um percussionista em João Pessoa, Babilak Bah escutou, como toque final da apresentação, o tilintar agudo de uma enxada. De alguma forma, isso o reconectou a sua mãe, às ligas camponesas, à luta pela terra, à inventividade de Naná e, ainda, ao que estava por vir. Saiu dali convicto: comprou logo duas enxadas que passaram a lhe acompanhar na sua trajetória de artista.

Babilak, então, foi e voltou a Brasília, passou por Salvador e São Luís do Maranhão. Tentou se estabelecer pela primeira vez em Belo Horizonte, acabou indo morar em Ouro Preto, no Morro da Queimada. Foi ali que, após contato com músicos que admiravam seu trabalho, recebeu um telegrama com um convite para acompanhá-los em uma apresentação durante a ECO-92, no Rio de Janeiro. Para além dos contatos, shows e participações em meio a celebridades da MPB, viu pela primeira vez a manifestação folclórica da cidade de Nilo Peçanha, na Bahia, o Zambiapunga – um cortejo de homens mascarados que percutem enxadas enquanto outros tocam conchas. As máscaras, as vestes coloridas e, principalmente, o toque múltiplo e em conjunto das enxadas deram um outro sentido para aquela ferramenta de lavrar a terra, tomada por Babilak como idiofone, instrumento que carregava consigo desde João Pessoa.

Anos depois, ainda influenciado pela experiência do Zambiapunga, ofereceu uma oficina criativa chamada Saque Sonoro em apoio aos estudantes que ocupavam a moradia estudantil Borges da Costa, em Belo Horizonte, e haviam recebido recentemente uma ordem de despejo. Nessa oficina, Babilak propunha uma investigação musical utilizando enxadas e incentivando intervenções urbanas como uma metáfora dos “saques” realizados pelo Movimento dos Sem Terra (MST) no final dos anos 1980. Esse projeto era também uma homenagem a João Pedro Teixeira, protagonista do filme Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Dessa experiência de uso coletivo da enxada como instrumento musical, criou a orquestra de enxadas, o Enxadário, a partir de um edital do governo municipal. 

Simultaneamente, Babilak Bah percorreu sua trajetória de escritor e poeta, e já possui alguns livros publicados, entre eles Voomiragem, Corpoletrado, Uma clínica de instantes inusitados e Diáspora descontente. Na sua escrita, formula o que o seu destino apontou como morada, quando se estabeleceu em definitivo na cidade de Belo Horizonte:

Não sou
dessa cidade
+
o ori zonte
me
pertence
(Diaspórico – Babilak Bah)

Além de escritor e da sólida carreira como músico, com muitos álbuns lançados, no ano de 2002, iniciou um importante trabalho com pessoas em sofrimentos psíquicos. Nessa jornada de 21 anos à frente do exitoso coletivo Trem Tan Tan, Babilak encontrou-se como artista-educador e levou sua inquieta inventividade para a saúde mental. Essa experiência com pessoas em sofrimento psíquico que Babilak promove nos Centros de Convivência em Saúde Mental da Prefeitura de Belo Horizonte tem sido determinante no seu entendimento do papel da arte para o contato mais humanizado com a subjetividade das pessoas em tratamento. Em suas palavras:

“A arte é um agente político e um veículo capaz de desenvolver a alteridade de quem entra em contato com ela. É um porta-voz para a linguagem e isso gera socialização”.

Atualmente, Babilak Bah prepara um livro inédito sobre saúde mental, cultura e racismo.

Com o passar do tempo, Babilak começa a perceber, processualmente, que determinado conceito de música não cabia mais para os experimentos que fazia, principalmente quando inicia sua proposta de desenhar esculturas sonoras tendo como base a enxada. Desde então, passa a se autodenominar “artista do ruído” e, com isso, sua arte extrapola as fronteiras entre artes. Seus objetos criados a partir da enxada começam a ganhar formas variadas, formas que passam a definir o som – como as Plásticas Sonoras, do artista suíço-brasileiro Walter Smetak – e a enxada, assim, se multiplica como objeto, em número e em sentidos variados. Babilak diz que tudo o que faz remete a sua mãe, por toda a força espiritual que ela tinha, por toda a dimensão política do que ela era e fazia. A enxada como símbolo da luta pela terra, a terra expropriada na guerra colonialista contra os povos afro-pindorâmicos. É impossível olhar para as formas criadas por Babilak e não pensar nas ferramentas de luta e resistência pela terra, impossível não remeter às ferramentas que Ogun forja para preparar a terra para que seja habitada. As sonoridades desprendidas dos objetos e a pulsão rítmica da música de Babilak Bah aludem à sonoridade dos agogôs, regentes da música iorubá, que nesse caso, assim como nos Zambiapunga, são instrumentos do trabalho e do festejo. 

Em 2022, Babilak participou como residente do LAB Cultural, programa de residência artística realizado anualmente pelo BDMG Cultural, e revelou a influência da dramaturga Onisajé no seu trabalho. Isso fica evidente quando olhamos sua produção mais recente. Babilak criou, desde então, os Enxadigmas, experimentos que revelam em si a incorporação de toda sua espiritualidade ligada ao culto de Xangô e outros cultos afrodiaspóricos. Nesses experimentos, ele risca com pemba (um giz de utilização ritualística) grafismos como encantamentos sagrados na superfície do metal da enxada. Há um tanto de magia que se configura nessa inscrição, do mesmo modo que há também um encantamento que transforma a ferramenta enxada em poesia gráfica, permitindo a multiplicidade do que é o trabalho de Babilak Bah converter-se numa unidade complexa dentro do mesmo objeto. Como se política, ancestralidade, espiritualidade, poesia e sonoridade residissem nos enxadigmas.

Este ano, Babilak recebeu o convite para compor a mostra coletiva Dos Brasis: Arte e pensamento negro, promovida pelo Sesc, que reúne cerca de 240 artistas negros de todo o país. E, assim, segue consolidando sua trajetória múltipla. Babilak Bah é um artista autodidata que se deixa permear pela experiência do encontro com o outro, pela atenção aos sinais, pela inquietação poética e política e por um saber advindo da intuição como uma faculdade mental que o guia desde sempre para onde deve ir, oferecendo caminhos sobre o que é importante que faça e expresse. Dessa forma, foi constituindo um saber desapressado e meticuloso que transparece nos objetos que faz. Babilak se mistura aos objetos como se um fosse parte do outro. Enxada, enxadário, enxadigmas.

Marco Scarassatti

 

é artista sonoro e compositor, realiza pesquisas em educação musical, pesquisa e constrói esculturas, instalações e emblemas sonoros. É professor da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

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