REVISTA nº 11

Se foi feito aqui, o instrumento é sagrado

Ritmos, costumes e histórias da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio contadas pelo Capitão Antônio Cassimiro

Antônio Cassimiro das Dôres Gasparino, Ceci Nery Batista, Paula Lobato, Igor Lage
30 Set 2023 21 Min
Se foi feito aqui, o instrumento é sagrado
Capitão Antônio Cassimiro na Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio, em BH. Ensaio fotográfico de Dolores Orange

Antônio Cassimiro das Dôres Gasparino em conversa com Ceci Nery, Igor Lage e Paula Lobato

Antônio Cassimiro das Dôres Gasparino, quarto filho de Isabel e Antônio Gasparino, é Capitão da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário. Mas também é muitas outras coisas: irmão, tio, poeta, praticante de kickboxing e tai chi chuan e vigilante patrimonial. Nascido e criado em meio aos cantos sagrados das toadas que embalam os ritos e celebrações de Reinado e Congado, Antônio – ou Toninho, como é chamado pela família, amigos e pessoas próximas – guarda no corpo os ritmos e os sons que ouvia no terreiro de casa desde menino.

Em setembro de 2023, como parte das comemorações dos 35 anos do BDMG Cultural, Toninho e sua irmã, a Rainha Conga Isabel Casimira (para ele, Belinha), ministram a Oficina de Toadas do Reinado, na qual apresentam, de forma introdutória, alguns dos princípios fundamentais que sustentam a cultura do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, com destaque especial para a música. Neste depoimento, ele compartilha seus aprendizados ao longo de quatro décadas na Guarda Treze de Maio, conta como foi marcante a experiência de ter viajado a Angola (para as gravações do filme A Rainha Nzinga chegou, dirigido por sua irmã Isabel e pela documentarista Júnia Torres) e explica quais são os ritmos e instrumentos que caracterizam as toadas de massambique. 

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Quando criança, a gente ficava brincando de Reinado aqui no terreiro e nossa avó falava: “Não fica brincando, não, vai lá ensaiar” e nos puxava para o ensaio. A guarda ensaiava sempre aos domingos, das três às cinco ou seis da tarde. Não tinha aquela coisa de sentar e explicar que o Reinado é isso, isso e aquilo. O conhecimento era passado para a gente nos ensaios, no dia a dia, na vivência.

Eu sou neto de Maria Cassimira, fundadora da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário, em 1944. Nossa avó foi pioneira em fazer a festa em maio, pois queria trazer a lembrança das almas dos escravizados. Por isso, também, temos a cor roxa nas nossas roupas. As cores dos grupos de Reinado geralmente são o rosa, o branco e o azul, que são as cores de Nossa Senhora do Rosário. Mas o roxo lembra o sofrimento das pessoas escravizadas que vieram de África para cá e não tiveram oração, consolo ou nada disso. E, olhando para o lado católico, essa é a cor de Jesus durante o caminho dele até o Calvário.

Há 30 anos, não aconteciam festas em maio, fora a do nosso grupo. De uns tempos para cá, outros grupos começaram a fazer festa em maio também. Na época das festas de Nossa Senhora do Rosário – que acontecem de agosto a outubro, geralmente –, costumamos visitar as pessoas que vieram à nossa festa em maio. Essa troca de visitas funciona assim: se você visitar a minha festa, eu vou na festa de vocês também. Isso é pagar visita.

Muitas guardas gostariam de vir na nossa festa, mas comportamos no máximo dez, porque o espaço é pequeno e muitas coisas mudaram. Temos que fechar a rua, aprovar na prefeitura, avisar a vizinhança… Uma que vem muito é a Guarda de Santa Efigênia de Conselheiro Lafaiete, que se chama de banda. Também vêm as guardas de Esmeraldas, de Sete Lagoas… Esse pessoal todo vem, e a gente também costuma pagar a visita, mas não é tão fácil, porque o ônibus não está barato. Apesar disso, mantemos o costume e, assim, as irmandades vão se completando e fazendo um louvor bonito.

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Quando vamos nas outras guardas visitar, fazer um louvor bonito, vamos para aprender também. Eu digo que sou uma antena que mais recebe do que transmite. Isso é normal, porque temos dois olhos e dois ouvidos, que é para ouvir e ver mais e falar menos. No Reinado, estamos toda hora aprendendo coisas novas. Um grupo canta uma toada diferente, uma toada boa, a gente chega perto para ouvir direito. Agora é possível gravar, usar o celular, mas antigamente eu escrevia ou pedia informações para as pessoas.

Aqui em casa, de vez em quando, jogamos toadas novas. Mas essas toadas não são novas – eu falo que não crio toada nenhuma, que elas já existem no mundo e eu recebo a permissão de cantá-las de volta. As toadas existem antes mesmo de nascermos. De vez em quando, vem uma na nossa mente. A gente não cria a toada, só resgata ela. Eu pego o celular, canto por ele mesmo e vou gravando. Depois passo para o pessoal nos ensaios: “Gente, tive uma inspiração dessa toada, se vocês acharem que tem que melhorar, vambora”.

E, às vezes, refazemos umas toadas também. Por exemplo, desde criança, nós cantávamos uma assim: “São Benedito veio de Lisboa”. Um dia, a professora Leda Maria Martins, que vem de um reino mais antigo que o nosso, e que também é uma estudiosa, falou que essa toada estava errada, porque São Benedito não veio de Lisboa. A Belinha me contou que havia conversado com a Dona Leda, por quem a gente tem um respeito muito forte, e ela disse que a toada estava errada porque São Benedito não vinha de Lisboa. Eu falei: “É verdade, mas a toalha dele veio, né, Belinha? Então está fácil”. Refizemos essa toada, de um erro foi inspirado um acerto, e hoje cantamos ela assim: “São Benedito não tem coroa / Usa uma toalha feita em Lisboa”.

Eu assumo que não sei tudo. Muita gente não aceita que não sabe. Algumas informações que me foram passadas quando garoto estavam erradas. Se eu estiver errado, vamos aprender a pronunciar e curtir certo. Porque a questão é fazer um louvor bonito e fazer um louvor certo também, para ensinar as pessoas. Você não pode sair daqui sem entender as coisas. A informação, para mim, tem que ser muito correta. Quando eu passo a informação para vocês, eu passo da forma mais fidedigna possível, porque eu sou um buscador da verdade, da informação correta. O meu irmão Ricardo fala: “Você explica tudo demais da conta”. Mas eu prefiro ser assim.

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Geralmente, nas toadas, são usados muitos termos africanos e africanizados. Há mais tempo, tinham alguns capitães e mestres de Reinado cujos avós haviam sido escravos, então eles sabiam a linguagem antiga. A gente usa um termo chamado “curiá”. Curiá é comer. Toda vez que você for numa festa de Reinado e o pessoal falar que vai curiá, significa “vamos comer”. Esse termo é usado até hoje em Angola, pois é a linguagem antiga do Império do Congo.

Lá em Angola, eu aprendi palavras diferentes como “mama muxima”, mamãe do coração. Estivemos na Igreja de Mama Muxima no norte do país e foi maravilhoso. Eu incorporei isso nas toadas, e algumas vezes eu canto: “Viva mama muxima”, “Vou cantar para mama muxima”. Se você quer ser capitão, se você quer ser capitã, você tem que aprender, tem que buscar ouvir toadas do reino ao qual você pertence e de outros reinos também. Visitar outras festas, ver como outras pessoas fazem e captar as coisas boas. Porque tem coisa ruim também, aí você vai filtrando para fazer um trabalho bom. E o trabalho bom que eu falo é fazer um louvor melhor. O capitão sem recurso canta uma toada simples e fica só nisso. A pessoa fica capitão pela metade, ou pela metade da metade. 

Muita gente do passado usava palavras ensinadas por seus antepassados que ainda falavam as línguas africanas. Hoje, muita coisa se perdeu, ou se misturou demais. A gente sabe que as canções com palavras africanas antigas que foram adaptadas têm poder, mas, muitas vezes, a gente não sabe o significado. Então, às vezes, cantamos uma coisa que não sabemos o significado. A gente suspeita que pode ser isso ou aquilo, mas não sabe profundamente.

Quando estivemos em Angola, conversando com os Sobas, que são as pessoas que guardam saberes místicos, nós cantamos as toadas que a gente conhecia do pessoal de Oliveira. Eu toquei a caixa, Belinha cantou, e eu fui acompanhando. A pessoa que cantou para a gente em Oliveira tinha falado que essa música é de chamar as pessoas para trabalhar junto. Quando a gente começou a cantar para o pessoal em Angola, eles conversaram naquela língua que a gente não conhecia. Depois, eles nos falaram que aquela música é para juntar as pessoas para trabalhar no campo, para arar uma terra… Faz sentido. Só que o Soba falou: “A língua está um pouco diferente. É a língua do Império do Congo, mas é diferente”. Isso foi importante para a gente entender melhor as questões de corruptelas de língua, como o “Moçambique” em Guarda de Moçambique, que não é o Moçambique país. Na verdade, é uma corruptela de língua. O certo seria “Massambique”, que vem de “massamba” – a dança e o canto sagrados da massamba. E o massambiqueiro, aquele que participa da massamba. Foram 400 anos de escravidão, então virou “Moçambique”…

O meu recurso linguístico e de histórias aumentou demais quando eu estive em Angola. Fomos eu, minha irmã Belinha e o resto da equipe para gravar o filme e conhecer as origens do nosso Reinado, das coisas que nossa avó nos passou. Visitamos o cemitério dos reis do Congo, Kulumbimbi, que fica nas ruínas da antiga Catedral de São Salvador do Congo, na cidade de M’banza-Kongo. Lá só haviam dez túmulos, então pensei: “Só teve dez reis”. Mas nosso acompanhante explicou que tinha rei enterrado por baixo de rei, e rei enterrado por cima de rei! Eles nos levaram até o túmulo do último rei, e um deles disse: “Ei, acorda! O pessoal veio do Brasil para te conhecer”. Depois que terminamos as filmagens, ele falou: “Pronto, pode voltar a dormir”. Foi de arrepiar o corpo todo! Ele falou: “Pode voltar a dormir, porque as pessoas já sabem as palavras corretas e vão levar para o Brasil e instruir as pessoas de lá”.

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Na festa de Reinado, os grupos de Congo, Marujo, Vilão e Catopé ficam todos em fila e se movimentam mais rápido. Essas guardas são mais dinâmicas e vão na frente, abrindo caminho para o Massambique. As guardas de Massambique se organizam em um bloco fechado, pois têm como função proteger mais de perto os reis e as rainhas. Então, não é possível quantificar um grupo de Massambique quando ele está chegando. Nós andamos devagar e sempre fechando, segurando a onda. O Massambique é o último da procissão, mas o primeiro a entrar na porta da igreja, porque leva Nossa Senhora do Rosário, os reis e as rainhas. Varia um pouco de região para região, mas o básico é isso.

Agora, vamos aos instrumentos. Em princípio, os instrumentos variam muito pouco de guarda para guarda. O primeiro é a caixa. No Massambique, geralmente levamos três caixas, mas cada grupo tem sua formação própria. Em um grupo de mais de vinte pessoas, três são o suficiente. Com menos pessoas, costumamos usar duas caixas e dois ou três patangomes. Quando são três caixas, colocamos um patangome entre elas para o som de uma caixa não interferir no da outra.

Aqui, nós temos duas caixas que chamamos de “trovão”. A história é a seguinte: quando a gente era mais moço, Tio Ephigênio achou que nossa guarda estava em defasagem em relação a outros grupos, porque eles tinham caixas maiores. Nós tínhamos caixas com boca de 30 e de 40 centímetros. Então ele encomendou duas caixas grandes com o Tio Tonho, lá dos Ciríacos, uma Irmandade do Rosário de Contagem, pois, nessa época, a gente ainda não sabia fabricar. Quando as caixas chegaram, ficamos assustados, elas eram bem maiores do que as que a gente tinha! São essas caixas grandonas, por isso chamamos elas de “trovão”. As que usamos hoje já são da segunda geração, feitas por nós mesmos, mas baseadas nas medidas das primeiras.

A caixa é o instrumento que aprendemos a tocar primeiro. Ela não é o mais importante; o mais importante é o patangome, que também é o mais difícil de tocar. Um capitão de guarda deve saber montar uma caixa, costurar e colocar o couro, saber dar manutenção no instrumento. É um dos princípios básicos de ser capitão. Segundo, deve saber tocar todos os instrumentos, porque ele também vai ensinar. O Capitão de Massambique não sabe só cantar, ele sabe cantar, tocar e sabe ensinar a cantar e tocar. Tem gente que pega uma madeira, faz um bastão e fala “eu sou capitão”. Não é, porque, para ser capitão, tem que cumprir todos esses requisitos: saber cantar, saber louvar, saber sobre o instrumento. Muita gente carrega o bastão, mas não sabe cantar, fica repetindo a mesma toada e não sabe versar em cima dela. O capitão tem que ter discernimento de Reinado, e tem que ter um ouvido bom para filtrar o que está sendo cantado. 

A caixa que eu toco hoje é de madeira virada (compensado de virola), mas antigamente as caixas eram feitas de tronco escavado. Esse modo de fazer tinha uma regra muito importante: não se cortava a árvore, nem se matava o animal para fazer o instrumento. A árvore teve a sua vida de árvore e caiu, então você faz um instrumento com ela. No caso do animal, você o mata para comer a carne, aí aproveita o couro; ou seja, não se mata o animal para fazer um instrumento. É importante falar desse respeito com a natureza, com o ciclo das coisas, sempre permeado pela ideia de reciclagem. 

No Massambique, existem dois ritmos, o serra abaixo e o serra acima. Desde garoto, a questão de “por que serra abaixo” e “por que serra acima” sempre me veio à mente. Geralmente tocamos a caixa serra abaixo quando subimos o morro – por quê? Fui observando, e tive uma epifania pensando nisso. À medida que você sobe, a serra fica para baixo. Você toca subindo o morro até chegar no ponto alto da serra, então, em relação a você, ela está para baixo. Serra abaixo enquanto subo o morro, e serra acima enquanto estou descendo, pois é o momento em que a serra está ficando para trás, para cima. Mas essas são deduções minhas, não tenho certeza de nada! E, independente disso, também cantamos serra abaixo na reta, cantamos serra abaixo na descida, isso depende muito.

O próximo instrumento é o patangome. As pessoas também chamam ele de folha, porque ele é feito de um material chamado folha de flandres. O patangome pode ser preenchido com esferas de chumbo ou com sementes. Quando usamos sementes, costumamos usar sabão-de-soldado (ou saboneteira). Ela dá em uma árvore muito grande, e é uma semente bem dura, que também usamos para fazer os rosários. Se você apertar e esfregar o sabão-de-soldado, ele forma uma espuma, com a qual é possível lavar a mão – por isso o nome.

Também podemos usar as sementes de uma planta ornamental chamada caeté, que é parecida com a bico-de-papagaio. Tem muitas variações, mas uma delas dá um cachinho com sementes duras. Nós usamos essas no nosso patangome, e, quando visitamos África, nós também encontramos essa semente lá.

Outra possibilidade é usar chumbo, que gera uma tensão de sonoridade um pouquinho maior. Mas não adianta ter um instrumento muito barulhento se a pessoa não sabe tocar, eu friso muito isso. Tem que saber tocar, tem que vir nos ensaios e aprender. Muita gente desvaloriza o patangome porque outros instrumentos são maiores, ou têm uma visibilidade maior, mas ele é o mais importante: é no patangome que começa tudo. Nele, também tocamos o serra abaixo e o serra acima.

A gunga, também chamada de campanha, só tem no Massambique. Muita gente conta a história de que as gungas são para lembrar as correntes nos pés dos escravizados, mas eu nunca acreditei que eram para isso. O povo africano sempre usou chocalho no pé. A meu ver, as gungas de lata são só uma versão moderna dos chocalhos africanos de muito tempo atrás. Eu já vi vídeos de tribos africanas – povos de Angola, povos da África do Sul – que dançam com chocalho no pé. O chocalho não existe para lembrar de corrente, pois vem antes disso. Acredito que as gungas também.

Quando estivemos em África, encontramos um instrumento que, no meu entender, é o avô da gunga: a sacaia. É feito com uma semente redonda e com grãos dentro. Você enfia um espeto dentro das sementes, põe elas para secar e depois amarra no pé, juntando três bolinhas.

As gungas, antigamente, eram tecidas. A gente chamava de “balainho”, pois eram feitas de pedaço de cabaça e tecido de cipó. Pareciam o caxixi, mas sem a alcinha. Estivemos no Reinado do Jatobá há pouco tempo, onde um grupo de Justinópolis nos disse que usa essa gunga de balainho. Mas, em termos de volume, elas não têm como competir com uma gunga toda de metal, que é feita com estrutura de lata e ainda preenchida com bolinhas de chumbo.

A tradição manda que sejam sete latas: quatro na perna forte e três na perna mais fraca. Isso é o que foi passado para a gente. Só que a nova geração usa dez latas, botam cinco de cada lado – nem mesmo variam a quantidade entre a perna forte e a perna fraca. A nova geração não vai para a tradição; eles querem tudo grande, bonito e sonoro. Mas o Reinado não é um lugar para se mostrar, é um lugar para fazer louvor. É a mesma questão do folclore. Eu não sou folclore, eu sou louvor, eu faço louvor. 

Como nos outros instrumentos, a gunga tem serra abaixo e serra acima. Perna forte, perna fraca. Bater gunga não é força, é calma. O bater gunga também requer que o corpo esteja meio inclinado. Eu costumo inclinar o meu mais ainda, para lembrar o movimento de batear. Batendo a gunga, eu estou batendo uma bateia, imitando a onda do mar. Quem bate sem inclinar força a coluna, não dura cinco minutos. A gente fala, mas muitos não escutam… E eu aprendi a escutar – apesar de que, quando mais novo, não escutava nada. 

Uma gunga feita no funileiro não sai por menos de 600 reais. É muito caro. Dá todo um trabalho, pois eles põem a alça, a tampa… A gente não tinha tanto dinheiro, então comecei a inventar maneiras diferentes de fazer as minhas gungas, observando outras pessoas fazendo e reciclando materiais. Gosto de fazê-las com latas de conserva, porque a forma já vem pronta. É prático: você já vai comprar milho e ervilha para a sua casa mesmo, então é só aproveitar. Na primeira gunga que eu fiz, amarrei as latas com arame em volta, para prendê-las na correia, mas não ficou muito bom. O arame agarrava em muita coisa, às vezes até no vestido da Rainha, às vezes cortava as pessoas que estavam em volta, era constrangedor. Com o tempo, fui me aprimorando e arrumei um método de não precisar mais do arame. Hoje, faço um corte virado para cima na latinha, e a gunga não machuca mais ninguém. Eu já fiz uns dez pares de gungas. Os antigos, acabei doando para outras pessoas.

Quando as latinhas estão cortadas, você põe todas elas em uma mesa e vem colocando as sementes em cada uma. A gente chama isso de “temperar”. A quantidade de sementes em cada lata muda o som. Uma vez, o meu tio estava fazendo sua gunga usando esferas de chumbo. Ele contou: na primeira latinha, foram uns 15 chumbos; na segunda, foram 20; na terceira, colocou só 10; na quarta, 40. Foi intercalando, entende? Ele foi construindo a sonoridade juntando as esferas. Isso é temperar a gunga. Eu posso te entregar uma gunga, mas, se você não gostar dela do jeito que está, então você pode retirar as sementes ou o chumbo e ir colocando aos pouquinhos do jeito que quiser, buscando a sonoridade que te agrada. É uma coisa muito individual. É a mesma coisa que afinar um instrumento. E essa lógica serve para a caixa e o patangome também.

Com o tempo, a gunga deixou de ser um instrumento de hierarquia e passou a ser considerada um instrumento “comum”, mas ela não é comum. A gunga possui um grau de hierarquia. Quando você já tem mais tempo de Reinado, já tem um certo conhecimento, você recebe a gunga. Essa é a tradição. Por isso, eu questiono muito as pessoas saírem de gunga sem saber tocar. 

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Ao longo do Reinado, eu aprendi muita coisa. Aprendi a ser mais maleável, e aprendi que cada um aprende de forma diferente. Os detalhes são importantes. Eu gosto muito de passar o que sei, e passar com paciência. Um tempo atrás, fomos em um louvor em que o grupo estava tocando com instrumentos feitos de metal, comprados em loja. Foram questionados: “Por que vocês estão usando caixa de metal no Reinado, se a gente tem que manter a tradição?”. Eles responderam: “Eu sei que está errado, mas tenho que fazer a festa. Quem fazia os instrumentos morreu e não passou pra ninguém. E aí, como a gente faz? Deixa de realizar o louvor porque não temos uma caixa?”.

Diante dessa situação, a Federação dos Reinados de Minas Gerais, em reunião, decidiu juntar pessoas interessadas e oferecer uma oficina ensinando a fazer os instrumentos do Rosário. Além disso, ensinaram também a confecção do vestuário: bandeiras, túnica, saiote e tudo mais relativo ao Reinado. Cada grupo deveria enviar, no mínimo, quatro ou cinco pessoas, entre homens e mulheres. No Treze de Maio, juntamos um grupo de dez pessoas. Outros grupos também foram, e fizemos o primeiro curso no Sesc Santa Quitéria, no bairro Caiçara. Aprendemos a fazer os instrumentos de outra maneira. Eu não tinha técnica; até então, via meu tio fazendo e ia imitando. Só que o meu tio aprendeu de uma maneira muito arcaica, e eu também. Nesse encontro, nós aprendemos um método novo de costurar, por exemplo.

Depois dessa oficina, eu e meu irmão Ricardinho viramos professores e começamos a dar oficinas também. Eu quero passar tudo o que sei, para que quando eu morrer não tenha problema. A cada oficina, a gente aprende coisas novas. Entendemos que o couro tem identidade. Começamos a aprender sobre a folga do couro. Na primeira caixa que nós costuramos, nós não deixamos uma folga para o couro. Aí, depois de tudo pronto, de duas horas de trabalho, tivemos que desmanchar a caixa e fazer tudo de novo. Fomos aprendendo com os erros.

Onde eu já tropecei, eu não deixo quem aprende comigo tropeçar. Como eu conheço o caminho das pedras, explico tudo certinho para não dar problema. Sempre tem aquele que não escuta, mas a gente respeita também. Brincando, brincando, a gente já fez umas oito ou nove oficinas de instrumento. Já temos uma bagagem, mas tivemos que improvisar muita ferramenta de trabalho também, substituir um monte de coisa que a gente não tinha. Fomos improvisando e aprendendo. 

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Uma vez, Tio Ephigênio nos contou uma história. Ela dizia que, lá em África, quando Nossa Senhora do Rosário saiu do mar, ela decidiu ficar junto dos instrumentos do candombe e cantou a noite inteira na fogueira. Hoje, afinamos a caixa puxando a corda, mas, naquela época, o instrumento era afinado com o calor. Quando um instrumento começava a ficar ruim, já colocavam perto do fogo. Então, aqui no nosso terreiro, a gente deixava as caixas no centro do salão e orávamos para lembrar essa fogueira, lembrar os instrumentos que estiveram lá.

Tudo no Reinado é sagrado. Queira ou não queira, o instrumento é sacro, porque ora-se junto com ele. O ar que respiramos aqui é sagrado. A água que bebemos é sagrada. Tudo aqui é sagrado. Mesmo quando a gente cede o instrumento para ser usado em outro lugar, para qualquer outra coisa, o instrumento já virou sagrado, porque foi feito aqui. Foi feito por mim, pelo meu irmão, e a gente põe o coração nisso. Põe sentimento. Mesmo que depois você dê um outro uso para o instrumento, ele é sagrado do mesmo jeito. Se foi feito aqui, é sagrado.

Antônio Cassimiro das Dôres Gasparino


é mestre de cantos e danças tradicionais do Reinado.  Herdeiro das práticas culturais e expressivas iniciadas por sua avó e matriarca da irmandade, Maria Casimira das Dôres. Filho de Isabel Casimira das Dores Gasparino, foi criado ativamente dentro das tradições rituais da cultura afro-brasileira cultivadas na sede do Reino Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário, sendo a transmissão oral e a ancestralidade suas fontes de formação principais. Capitão da Guarda de Moçambique Treze de Maio, que integra há mais de 40 anos.

Ceci Nery Batista

 

é arquiteta e urbanista, pesquisadora de cultura e patrimônio imaterial.

Paula Lobato


é arquiteta, designer e editora. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, onde também se formou. Integra a equipe do BDMG Cultural desde 2021.

Igor Lage

 

Igor Lage é jornalista, pesquisador e professor. Doutor e mestre em Comunicação pela UFMG.

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