REVISTA nº 8

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Viva Leda Maria Martins! 

Um reconhecimento ao legado em construção da professora, dramaturga, ensaísta e rainha de congado Leda Maria Martins, nome fundamental no desenvolvimento e na pesquisa sobre o teatro negro brasileiro

Denilson Tourinho
31 Jan 2023 11 Min
Viva Leda Maria Martins! 
Entrevista com Leda Maria Martins para o PLMM. Foto: Reprodução

Este texto é sobre a menina que nasceu no estado do Rio de Janeiro, que ainda criança passou a morar em Minas Gerais e, por devoção e graça alcançada, se tornou Princesa de Nossa Senhora do Rosário do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, em Belo Horizonte. Este texto traz memória e saudação… Leda Maria Martins, filha de Dona Alzira Martins, foi princesa conga por dez anos. Dona Alzira foi Rainha de Nossa Senhora das Mercês do Jatobá de 1992 até a data de seu falecimento, em 2005. Viva Dona Alzira Martins! Viva Leda Maria Martins!

Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, em Belo Horizonte. Foto: Mídia Ninja

Com a perda de sua mãe, Leda retomou a tradição no reinado do Jatobá assumindo a coroa de Rainha de Nossa Senhora das Mercês do Reinado do Jatobá. Hoje em dia, Leda, que também é poeta, ensaísta, artista, pesquisadora e professora aposentada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), conduz com mestria sua carreira congadeira, acadêmica e artística. O reinado do congado do Jatobá atualmente tem como Rainha das Mercês uma artista intelectual, especializada em cultura negra. Em 1991, Martins obteve o título de Doutora em Estudos Literários pela UFMG com a tese “A cena em sombras: expressões do teatro negro no Brasil e nos EUA”. Sua pesquisa segue original e é referência inestimável para estudos e produções em teatro negro até hoje.

Viva e pulsante é a pesquisa de Martins em torno da cultura negra, haja vista a sua proposta conceitual de “encruzilhada”, desenvolvida na tese, que desvela a noção de entrecruzamentos culturais diversos que coabitam os corpos e os saberes afro-diaspóricos nas Américas. O próprio congado é expressão brasileira exemplar dessa concepção de encruzilhada, pois a sua composição cultural afrodescendente também reúne matrizes indígenas e europeias.

Martins em pessoa é do lugar das encruzilhadas; é da cultura negra traçada em cantos, poesias, dramaturgias, ensaios e do viver em um reinado banto em Minas Gerais. Foi princesa e hoje é rainha. Viva a Rainha de Nossa Senhora das Mercês do Reinado do Jatobá!

É preciso muito “viva!” para celebrar a vivência cultural e a insurgente carreira acadêmica de Leda Maria Martins, doutora quando ainda era tímido o número de negras doutoras brasileiras. Desse contexto, surge Leda, sobressaindo-se como especialista em cultura negra afro-diaspórica em um país estruturalmente edificado em marcos de colonialidade. Martins defendeu uma tese sobre teatro negro no adentrar da década de 1990 pela Faculdade de Letras da UFMG, estudo no qual rompe com supostas expectativas de referenciais canônicos eurocêntricos e traz a divindade Exu e suas encruzilhadas como fundamentação conceitual acadêmica. É um feito que negrita a expressão “abrir caminhos”, e que, por isso, deve ser muito celebrado.

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Do lugar de estudos culturais acadêmicos para o campo prático das artes, Leda tem sido mentora de projetos artísticos e participado de encenações, no Brasil e no exterior. Além disso, é uma das organizadoras do Fórum Nacional de Performance Negra, geralmente realizado em Salvador, um profícuo encontro que tem consolidado um aquilombamento das artes negras brasileiras. Inclusive, foi justamente no contato com a carreira artística de Martins que despontou para mim, Denilson Tourinho, a criação do Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras  (Prêmio LMM), realizado em Belo Horizonte, na qual todas as categorias são embasadas no pensamento da própria Leda. 

A primeira edição do Prêmio Leda Maria Martins aconteceu em 2017, no último mês do ano, e desvelou, por meio de catalogação, um amplo histórico de produções negras de teatro, dança e performance da capital mineira. Idealizei e faço a curadoria dessa premiação. Atualmente, a catalogação mencionada está disponível no nosso site e reúne centenas de montagens cênicas negras belo-horizontinas, de todos os tempos, contendo vários dados das produções, como ano de estreia, ficha técnica, sinopse e foto.

Em 2022, o Prêmio LMM chegou à sua sexta edição, homenageando a artista visual e educadora paulista Rosana Paulino. Em cada evento, selecionamos uma pessoa cujo trabalho representa grande contribuição no desenvolvimento das artes, da cultura e do pensamento negro brasileiro. Essas pessoas recebem um reconhecimento especial, além de inspirarem o tema de cada edição. Desde sua criação, o Prêmio Leda Maria Martins já homenageou Nilma Lino Gomes (2017 – “Afeto emancipatório”), Conceição Evaristo (2018 – “Escrivivência: escrever, viver, se ver”), Cidinha da Silva (2019 – “Exuzilhar: verbo”), Abdias Nascimento (2020 – “Quilombismo”) e Lélia González (2021 – “Pretuguês”), além da já citada Rosana Paulino (2022 – “Suturas”). 

As Artes Cênicas Negras são significativos expoentes de saberes e culturas, pois afirmam estéticas, negritam a presença e denunciam a ausência de representações negras na cena cultural, e, em seus desdobramentos, sugerem e implementam ações e políticas de promoção da igualdade racial. Ao reverenciar e referenciar Leda Maria Martins, o Prêmio LMM presta homenagem entrecruzada à pesquisadora Martins, à arte e à cultura negra brasileira.

Leda Maria Martins e Denilson Tourinho na 1ª edição do PLMM, em 2017, realizado no auditório do BDMG. Foto: Letícia Souza

As expressões culturais e ações referenciadas na homenageada pesquisadora são utilizadas para contemplar as produções teatrais. Dessa forma, desde sua primeira edição, Leda, o prêmio, presta homenagens à Leda, estudiosa do legado afro-diaspórico. Viva Leda! Viva a cultura negra! Viva a teatralidade negra! Viva a encruzilhada que dá caminhos para reconhecer a diáspora negro-africana no Brasil! Viva a ancestralidade que entrecruza passado, presente e porvir! Desses “vivas”, emerge a composição das dez categorias do Prêmio LMM, que vão de “Encruzilhada” à “Ancestralidade”, e esculpem uma paisagem de saberes, poéticas e fazeres fundamentados em Leda Maria Martins. 

Esse repertório negro referenciado, estruturalmente articulado com áreas técnicas convencionais de uma premiação, apresenta um modo dinâmico de indicar porquês do prêmio homônimo. Ou seja, mais do que dar nome à premiação, Leda Maria Martins também oferece, a partir de sua obra, as referências para celebrar saberes afro-diaspóricos. As categorias da premiação foram arquitetadas a partir de noções teóricas, expressões culturais banto e títulos de produções culturais da homenageada.

Nesse modo de fazer do Prêmio Leda, a categoria “Afrografia” se refere ao campo de “atuação teatral”, na perspectiva técnica de premiação. O referencial conceitual para o nome da categoria está no livro Afrografias da Memória, publicado em 1997 pela Mazza Edições em parceria com a editora Perspectiva, no qual Martins desenvolve um primoroso registro de histórias, atuações performáticas, danças e cantares afro-diaspóricos da tradição, tanto cultural como artística, do Reinado do Rosário do Jatobá, tombado pela Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte como patrimônio histórico do município. Atendendo ao pedido de João Lopes, capitão-mor da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, também da região do Jatobá, a escritora figurou, em palavra escrita, a história guardada na lembrança, no pensamento, na boca e no corpo do Congado do Reinado do Jatobá. 

Nessa mesma obra, Martins faz analogia ao Candomblé e Umbanda, ao propor uma compreensão do Congado como território do sagrado onde culturas africanas, europeias e brasileiras se encontram, friccionam-se e atravessam-se no lugar das Encruzilhadas. Em suas palavras, esse encontro representa um “deslocamento sígnico que poderia traduzir, no caso religioso, a devoção de determinados santos católicos por meio de uma gnosis ritual acentuadamente africana em sua concepção, estruturação simbólicas e na própria visão de mundo que nos representa. Nesse processo, incluir-se-iam as cerimônias do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, popularmente conhecida como Congados, nos quais santos católicos são festejados africanamente”.

Essa estudiosa registrou histórias e saberes até então inexistentes em livros, e desbravou caminhos que são referência para estudos de culturas negras, tudo a partir dessa congada belo-horizontina. O livro revela vivências e saberes da singularidade de negruras por meio da cultura da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, da própria professora Martins.

Eis o resultado, no Prêmio LMM, de toda essa inspiração “martinsniana”:

  • Encruzilhada (área: Direção) 
  • Muriquinho (área: Infanto-juvenil)
  • Oralitura (área: Texto/Trilha sonora)
  • Corpo Adereço (área: Dança)
  • Performance do Tempo Espiralar (área: Performance)
  • Lugar da Memória (área: Cena curta)
  • Afrografia (área: Atuação)
  • Cena em Sombras (área: Cenário/Figurino/Luz)
  • Palco em Negro (área: Espetáculo longa duração)
  • Ancestralidade (área: Personalidade/Homenagem/Revelação)

       ***

Em 2021, a produção intelectual de Leda Maria Martins ganhou novo fôlego e novos leitores com a edição revista e atualizada do Afrografias da Memória, novamente pela Mazza Edições com a Perspectiva, e a publicação de Performances do Tempo Espiralar: Poéticas do corpo-tela, pela editora Cobogó, uma brilhante reflexão condensada de conceitos e perspectivas que sustentam o pensamento da pesquisadora. Entretanto, a obra de Martins em torno da arte e cultura ainda figura como repertório às sombras no campo canônico e amplo das belas-artes do Brasil. A literatura dessa pesquisadora é fundamental para a compreensão das encruzilhadas que tecem a cultura e a arte brasileira – aliás, as artes e culturas brasileiras, no plural – derivadas de entrecruzamentos culturais indígenas, africanos, europeus e, nos tempos mais recentes, orientais.

Martins tem levantado estudos culturais que lançam luz sobre a cena afro-diaspórica do panorama artístico brasileiro, tal como em sua tese de doutorado, na qual elege o Teatro Experimental do Negro (TEN) – grupo de teatro fundado por engajamento artístico e social de Abdias Nascimento – como tema de reflexão e análise. Nessa pesquisa, Leda ressalta a originalidade do trabalho do TEN ao romper com modelos tradicionais de representações pejorativas da negritude para, em contraste, compor signos positivos e afirmativos do negro e da simbologia negra nas artes. Como resultado, ela desvela saberes e estéticas da cena artística negra e abre os caminhos para outras produções acerca das artes e culturas negras. Nesse sentido, Leda produz uma arquitetada estrutura de conceitos que corporificam registros culturais individuais e coletivos existentes na memória e nas negras expressões culturais.

A escrita perspicaz e poética de Leda Maria Martins translada memórias, hiatos e porvires da diáspora negro-africana nas Américas e, assim, acende o fogo ancestral que dá energia, caminho e luz à esfera cultural negra brasileira. Ela faz parte das primeiras gerações de mulheres negras doutoras no Brasil, não apenas demarcando ineditismos com a presença negra, mas, principalmente, por percorrer e grafar epistemologias culturais negras. Ao redor desse fogo, nos reunimos para receber e celebrar as palavras da Rainha de Nossa Senhora das Mercês do Jatobá, tal como foi vivenciado no auditório do BDMG Cultural, em 2017, na cerimônia do 1º Prêmio Leda Maria Martins, por meio do seguinte cantar:

Zum, zum, zum
lá no meio do mar
zum, zum, zum
lá no meio do mar

é o canto da sereia
que me faz entristecer
parece que ela adivinha
o que vai acontecer.

ajudai-me rainha do mar
ajudai-me rainha do mar
que manda no ar
ajudai-me, rainha do mar!

Zum, zum, zum
lá no meio do mar

(Cântico de Congo e de Moçambique)

Vale ressaltar a virtude que é prestar homenagem com a presença da pessoa homenageada. Leda, além de receber flores em suas próprias mãos, segue compartilhando seus pensamentos e legado nas cerimônias do Prêmio LMM, ou seja, a vitalidade do aporte artístico e cultural da Rainha de Nossa Senhora das Mercês do Reinado do Jatobá permanece encantando, inspirando e, muitas vezes, conduzindo a homenagem pessoal que ela mesma recebe. Enquanto pesquisadora, Martins costuma cantar a sua própria herança banto do congado mineiro em eventos acadêmicos e em manifestações culturais diversas: basta se atentar à fala dela para sentir saberes afro-mineiros musicados em cânticos congadeiros do Congo e Moçambique do Jatobá. Eis uma pesquisadora que dá tom e ritmo aos pensamentos acadêmicos, uma vez que os estudos culturais de Leda Maria Martins são poéticas que arteiramente fissuram a rigidez de sistemas cartesianos e formam uma estética de saberes encantados. É preciso muito “viva!” para celebrá-la.

Ao longo de sua jornada, Leda tem nos proporcionado inestimáveis restituições de cosmopercepções afro-diaspóricas por meio de tudo o que ela transcende em referenciais culturais negro-africanos – desde menina, quando princesa conga amparada pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá. Esse contexto reflete, inclusive neste texto, a noção de relação intrínseca e perene entre passado, futuro e presente, na qual Leda figura como expressão presente da ancestralidade de um reinado banto reconhecido como patrimônio cultural da capital mineira.

Viva… Viva… Viva…
Viva Leda Maria Martins!

Denilson Tourinho


é artista, mestre e doutorando em Educação pela UFMG. Idealizador do Prêmio Leda Maria Martins. Pelo Festival de Arte Negra/BH, foi curador da 8ª edição e coordenador de ações formativas da 11ª edição.

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