REVISTA nº 8

Transbordar cultura pelas margens

Um breve relato do primeiro festival de cinema de Januária, A Outra Margem, que celebrou a produção audiovisual e a arte barranqueira nas margens do Rio São Francisco

Paulo Proença
31 Jan 2023 12 Min
Transbordar cultura pelas margens
Pescador às margens do Rio São Francisco, em Januária-MG. Foto: Paulo Proença

[…] Nadando no seu nome, Chico
Rio São Francisco que brilha
Oh Chico!
Olha o espelho do Chico
Brilhando e inspirando o poeta do Chico […]
[…] Todo Chico tem nome do São Francisco
Velho Chico

Ser Poeta, Carlúcio.

A segunda vez que me deparei com a grandeza do Rio São Francisco foi em junho de 2022, no município ribeirinho de Januária, no sertão norte de Minas Gerais, para acompanhar o primeiro festival de cinema da cidade: A Outra Margem. Foram cinco dias de imersão na rica cultura barranqueira e de escuta atenta das histórias vivas daquelas comunidades. Vivências de artistas, educadoras e educadores, produtores culturais, pescadores e pessoas que vivem e resistem pela e para a cultura daquele território.

Entrada do Circuito A Outra Margem, em Januária. Foto: Paulo Proença

Cheguei na cidade em 15 de junho, um dia antes do início do festival, que ocorreu entre 16 e 19. A movimentação já era intensa no Circuito A Outra Margem, espaço destinado ao evento, formado por diversas ruas do centro histórico de Januária. Uma região marcada pela memória da cidade, esculpida por casarões antigos do século 19, próxima ao cais do Rio São Francisco, da Rua da Cultura e ao Centro de Artesanato, ponto de encontro da população januarense e nascedouro do Cine Barranco, coletivo de audiovisual responsável pelo A Outra Margem. 

No anoitecer daquele dia, a praça destinada às sessões de cinema a céu aberto recebeu a emocionante estreia do filme Cine Januária: o cinema no sertão, documentário idealizado e dirigido pelo Cine Barranco, que contou com o incentivo do BDMG Cultural. O filme traz relatos de frequentadores do antigo e único cinema de Januária. A noite foi de brilho nos olhos da comunidade, do fascínio de estar perante uma tela de cinema pela primeira vez na vida – seja criança, jovem ou adulto –, com direito a pipoca, sob um céu estrelado e uma imponente lua cheia no sertão.

Estreia do documentário Cine Januária: o cinema do sertão. Foto: Paulo Proença

A Outra Margem diz também do lugar escolhido para realização do festival. Dentre os casarões, ruas e becos, está o bairro Galileia, comunidade que nunca havia recebido um evento cultural dessa magnitude, com uma programação diversa e gratuita. Gleydson Mota, produtor e integrante do Cine Barranco, que me recepcionou assim que cheguei na cidade, disse que o festival foi um convite para as pessoas vivenciarem Januária e apreciarem a cultura barranqueira – aquela feita às margens do Velho Chico – sendo expressa em artes de diferentes linguagens.

“Aqueles casarios antigos por onde a gente pôde transitar reafirmam a nossa existência enquanto povo. E reafirmam também o nosso processo de formação de cidade: uma cidade barranqueira, sertaneja, capital do sertão”.

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Januária não possui uma única sala de cinema. O antigo e majestoso Cine Januária, construído na década de 1950, está desativado há anos e o objetivo do festival foi levar o cinema para a praça pública, com acesso livre, para a comunidade se reconhecer diante das produções audiovisuais exibidas na programação. A partir de curadoria realizada por outros coletivos de cinema de Minas Gerais, foram apresentados mais de 20 filmes que tratam de questões socioeconômicas, históricas e culturais do Januária, que embora esteja no sertão mineiro, compõe um território que abrange também os estados da Bahia e Pernambuco, por conta das relações com o Velho Chico. Esse vasto território às margens do rio, com filmes desses três estados, foi contemplado na mostra Espelhos D’Água, que recebeu seis sessões temáticas ao longo de três noites consecutivas: “Sobre nós, sobre mim”, “Encantamentos”, “Marcas para o amanhã”, “Todo dia, todo dia”, “O corpo fala” e “Especial Cine Barranco”.

Única sala de cinema da cidade, o Cine Januária está desativado há anos. Foto: Paulo Proença

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Na manhã do primeiro dia do festival, passeei pelas ruas próximas ao hotel onde fiquei hospedado – um charmoso casarão do século 20, embora um pouco descaracterizado com o passar dos anos, ao lado da Rua da Cultura, do Circuito A Outra Margem e próximo do barranco que dá acesso à margem do São Francisco. No cais, fotografei o cenário do rio que tem o mesmo nome que carrego (tenho nome composto: Paulo Francisco) e cumprimentava as pessoas – muitas de bicicleta, meio de locomoção muito utilizado em Januária – que cruzavam o meu trajeto até chegar na primeira atividade do festival. Intitulada Tomar reparo na própria pupila, a oficina de autorretrato promovida pela fotógrafa Amanda Canhestro recebeu jovens da rede pública estadual e demais pessoas da comunidade, adentrando a tarde, com registros revelados em impressão instantânea, que resultou em uma mostra fotográfica coletiva no espaço Diz-Barranco.

Agenda formativa do A Outra Margem. Oficina de fotografia com alunos da rede pública estadual. Foto: Paulo Proença

O Diz-Barranco foi organizado em um antigo armazém que recebia e enviava mercadorias sertão adentro e Brasil afora pela proximidade ao Velho Chico, transportadas pelo vapor até chegarem à ferrovia de Pirapora. Foi cenário das exposições de pinturas, fotografias e livros, rodas de conversas e, sobretudo, lugar de trocas de afetos e histórias do público que apreciou a programação do evento.

Lá acompanhei algumas ações importantes do festival e conheci o poeta Carlúcio, pescador e personalidade ilustre de Januária. Toda aquela movimentação no Circuito A Outra Margem, com prosas, cinema na praça, crianças brincando na rua e exposições, era motivo de muito orgulho para Carlúcio, que estava acompanhado de sua netinha e contava causos sobre Januária e o São Francisco. Sobre passado, presente e futuro, o pescador também revelou o desejo de um projeto de turismo sustentável no rio, com um barco silencioso, para não atrapalhar os peixes.

“Diz que é bem assim: se você pensa no futuro, o presente deixa de existir. Mas se você pensa no presente, o futuro deixa de existir também. Você tem que pensar em tudo, não é só no presente ou no futuro, você tem que pensar até no passado. Você só sabe se sua vida está boa, se você olhar pra trás. Não para ir mais atrás ainda, mas para você se espelhar e caminhar cada vez mais rápido para se afastar daquilo que está atrás de você”.

Poeta Carlúcio no espaço Diz-Barranco. Foto: Paulo Proença

Foi também no Diz-Barraco que conheci Manoelina Lopes, autora de Meu Bairro, Meu Povo, obra que traz as memórias da escritora que nasceu e vive no Barreiro, comunidade quilombola próxima de Januária. A poeta celebrava o festival e a conquista por ter escrito o primeiro livro, a partir de recursos da Lei Aldir Blanc, com a oportunidade de transformar em poesias as histórias que ouviu desde a infância com ancestrais da comunidade. “Meu Bairro, Meu Povo é um orgulho muito grande para nossa comunidade. As pessoas me demonstraram muito carinho por ter recebido esse presente”. Manoelina contou que nunca imaginou escrever um livro, mas, quando criança, brincava de jogar rimas com coleguinhas do bairro e criar poesias a partir das rodas e brincadeiras. Na noite anterior a nossa conversa, ela havia assistido a exibição do documentário sobre o Cine Januária, que conhecia apenas pelas histórias que os moradores do bairro contavam quando voltavam das sessões.

 “É muito gratificante a gente ver a nossa cultura sendo valorizada. Isso é gratificante para todos nós”.

Comunidade januarense no Diz-Barranco. Foto: Paulo Proença

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Localizado em um casarão erguido no início da construção da cidade, o Centro de Artesanato de Januária nasceu em 2004, por meio da Associação de Amigos da Cultura da Região de Januária, com o objetivo de organizar e fortalecer o trabalho de artesãs e artesãos, além de desenvolver e apoiar iniciativas de promoção, fomento, preservação e divulgação das manifestações artísticas e culturais locais. Em 2005, o Centro de Artesanato foi certificado como Ponto de Cultura pelo Ministério da Cultura e mantém-se em funcionamento graças ao trabalho voluntário de um coletivo de artesãos e produtores culturais. Há 18 anos, o local é mantido com a venda de artesanatos e obras dos artistas associados e, atualmente, há uma campanha para a compra do casarão, que encontra-se à venda desde o ano passado.

Casarão do Ponto de Cultura Centro de Artesanato de Januária. Foto: Paulo Proença

O espaço foi um importante ponto de encontro da rede de produtores, oficinas e agendas formativas do festival. Visitei o local rapidamente na sexta-feira, mas foi no sábado que vivenciei a potencialidade das discussões e conversei com a educadora Magali Escobar, atual presidenta do Centro de Artesanato.

Magali, que possui experiência com produção cultural, acompanhou de perto a idealização do A Outra Margem e relatou que a grande movimentação na cidade superou suas expectativas. De acordo com a organização, o evento mobilizou 30 pessoas envolvidas na produção, contou com público de 2.500 pessoas e mais de 90 turistas. Economicamente, o evento movimentou mais de R$ 147 mil no município.

Com emoção, ela contou como foi vivenciar tudo aquilo na rua que cresceu, além das sessões de cinema na praça: dos brilhos nos olhos das crianças, que observam atentamente a imagem saindo do projetor até chegar a tela, e das pessoas que há muito tempo não se reuniam por causa da pandemia de Covid-19.

“Aquilo ali foi maravilhoso. Pessoalmente, me emocionou não apenas como uma pessoa que gosta de empreender projetos. Vi muitas outras pessoas emocionadas na sessão de cinema. Tinha uns colegas, uns amigos, e lembrei de histórias do meu pai, que uma vez esqueceu a minha mãe na porta do cinema. A gente ria muito disso”.

No Centro de Artesanato, também acompanhei oficinas e debates que compartilharam inquietações da produção cultural, sobretudo de realizadores do audiovisual daquele território, como o Cine Barranco, e de trocas de experiências com produtores de outros coletivos mineiros de cinema, como o Cine Baru, Cinema dos Meninos de Araçuaí e o projeto Meu Cinema, Nosso Território. Houve também uma agenda formativa remota com a diretora pernambucana Uilma Queiroz, que provocou sobre como o sertão e a vida sertaneja foram e vêm sendo representadas no audiovisual nacional ao longo da sua história.

Naquele sábado também tive a oportunidade de conhecer o projeto Sou Quilombola – Resgatando Tradições, desenvolvido com adolescentes do quilombo Barreiro. A partir de oficinas sobre roteiro e filmagem, seu objetivo é registrar manifestações culturais da comunidade em um documentário, criando um acervo digital. Acompanhado de algumas alunas e alunos da Escola Estadual Batistinha, o professor e coordenador da iniciativa Vinicius Pompeu contou que o projeto visa abranger a comunidade do entorno escolar, já que muitos agentes estão envelhecendo e há o desafio de despertar o interesse da população mais jovem para continuar esse trabalho de registro de saberes e tradições. 

“A gente vê o papel da escola, o que ela pode fazer para criar essa juventude para ser protagonista da preservação de sua própria cultura”.

Jovens participantes do projeto Sou Quilombola, realizado na comunidade do Barreiro, em Januária. Foto: Paulo Proença

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A celebração musical do A Outra Margem aconteceu no Palco Mareta, onde oito artistas e projetos musicais do sertão norte mineiro se apresentaram durante os quatro dias de festival. Na programação, estavam Pedro Surubim, Aroeira, Forró Cutuca Onça, Pala Trip, Trilha da Margem, Alô, Marciano, Sebá e os Tião e Black Massa. Nem as baixas temperaturas do anoitecer, que seguiram noite adentro, intimidaram a comunidade, que encheu a praça com danças em pares, individuais ou coletivas, formando uma grande roda, para se reconhecer nos ritmos, estrofes e refrões de canções que falavam sobre a vida sertaneja e a cultura barranqueira.

Celebração da música barranqueira no Palco Mareta. Foto: Paulo Proença

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No último dia dessa imersão de muitos aprendizados, a despedida foi afetuosa e marcante. Acompanhado dos organizadores do festival, artistas, produtores de cinema e de cultura de diversas cidades mineiras, fui à praia de Januária, um trecho do Rio São Francisco que, anualmente, durante o inverno quente do sertão, recebe a população para celebrar e brincar nas suas águas. A praia é sazonal e ocorre nos meses de baixa do rio, entre julho e setembro. Como estávamos em junho, a estrutura na areia ainda estava sendo montada, com madeira e bambu, para receber bares e restaurantes da comunidade ribeirinha.

Aquele encontro nas águas do Opará, reverberou para todes em um momento de balanço das experiências vividas, das trocas e das discussões frente ao cenário de produção cultural dos diversos coletivos presentes. Encaminhamentos foram sonhados e geraram frutos, como o festival Ridimunho: o sertão den ‘da capital, que ocorre agora em fevereiro, em Belo Horizonte, com filmes, documentários e atrações musicais que ecoam a programação do A Outra Margem.

Paulo Proença


é jornalista. Atua na área cultural há 15 anos. Trabalhou como apresentador, programador musical e produtor das emissoras públicas Rádio Inconfidência (MG) e Frei Caneca FM (PE). Participou como curador de editais públicos e de projetos musicais. Assessor de comunicação do BDMG Cultural desde fevereiro de 2020.

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