REVISTA nº 9

Uberlândia: terra indígena

A luta de uma liderança indígena não aldeada para ter sua identidade reconhecida, tecer novas comunidades e conquistar um espaço digno para si na cidade

Cacica Kawany Tupinambá, Felipe Carnevalli, Paula Lobato
25 Mai 2023 12 Min

Cacica Kawany Tupinambá, em diálogo com Felipe Carnevalli e Paula Lobato

O meu nome brasileiro, ou meu nome de branco, é Maria de Lourdes Lima Soares, mas meu nome indígena é Cacica Kawany Tupinambá. Kawany quer dizer “gavião fiel guardião do segredo”. Eu nasci em um povoado chamado Missão Nova, entre Missão Velha e Barbalha, na região do Cariri, Ceará. A região do Cariri é toda indígena, apesar de que, hoje, nossos parentes dizem que não é, por medo de retaliação. 

Foto: Acervo pessoal

Eu não fui, de fato, criada dentro de uma aldeia, mas em um assentamento com os costumes de uma aldeia, já que antes de eu nascer os meus antepassados já haviam perdido os seus territórios. Mesmo assim, fui criada nos costumes das mulheres indígenas, que são aquelas que trabalham na roça, que colhem a comida, que lavam a roupa. 

Na minha infância, fui criada subindo nas árvores e me banhando no rio. Tive uma vivência de menina de roça, que brincava de pega com os meninos, brincava de roda, de queimada, de pique-esconde, subia em pé de árvore grande, pegava cobra na mão, pegava bichos, corria atrás dos meninos… Eu sou uma pessoa que gosta de desafios, fui criada no meio dos bichos sem ter medo de nada. Parece que eu já era liderança desde pequena, porque meu negócio é caçar. 

Quando meu pai morreu, minha mãe passou fome, até ser vendida em pau de arara, em 1971 ou 1972. Ela e outras famílias foram amarradas em correntes e enviadas para Goiás, para trabalhar em regime de escravidão nas roças lá para os lados de Rio Verde e Santa Helena. Eu tinha 11 meses, e não a conheci. Nessa época, meus avós me registraram como filha para eu poder estudar. Então, em documento, minha mãe biológica é minha irmã e meus irmãos biológicos são meus sobrinhos. Quando eu cresci e soube disso, foi um choque para mim. Eu sofri muito. 

Como nas aldeias toda menina nova casava muito rápido, logo fizeram um casamento para mim, sem eu querer. Por muito tempo eu sofri nessa relação, até que consegui sair dela e ir trabalhar em casas de família. Na primeira casa onde trabalhei, aprendi a ser social, a vestir roupas, a comer de garfo e a ser elegante. Aprendi tudo o que eu precisava.

Hoje, eu sei me impor como uma dama da sociedade, mas também sei descer do salto; do jeito que a música toca, eu sei levar. Aprendi a ter honestidade, humildade e coragem para lutar pelo que fosse preciso. Meu avô, que para mim foi um pai, me disse um dia: “Filha, do jeito que você entrar num lugar, você sai. Sem deixar de honrar ninguém, e sem deixar ninguém falando mal. Não leve nada de ninguém e seja humilde, porque a terra dos outros não é terra da gente”. Eu aprendi isso de berço e jamais quero me desvirtuar.

Minha mãe mandou buscar seus filhos um por um e, em 20 de maio de 1990, eu cheguei em Uberlândia. Cheguei sem conhecer minha família, com uma filha no braço e passando dificuldade. Me casei com um enteado da minha mãe – não por amor, mas por necessidade. Pensei que, casando com ele, teria um amparo e uma casa. Mas foi uma vida de cão. Os filhos nasceram um atrás do outro, e eu tive que trabalhar e cuidar deles. Sou mãe de cinco filhos e avó de quatro netos. 

Mesmo aqui em Uberlândia, eu me reconheço como indígena, mas se você perguntar para minha família do Ceará, eles dirão que não são indígenas, porque lá é terra do patriarcado, é terra dos coronéis que mataram o povo para tomar as terras. Essas terras viraram fazendas, viraram cidades. Por isso eles têm medo de falar e os coronéis acharem que estão querendo tomar a terra de volta. Eles têm medo.

A organização dos indígenas não aldeados

Antes de ser fundada, Uberlândia era terra indígena, território dos Kayapó com os Krenak, mas foi tomada pelos brancos, que a transformaram na cidade que conhecemos hoje. A história do resgate dos povos indígenas desse território começou com a Cacica Poty Guarani. Sua vida também foi muito sofrida: ela teve suas roças e sua aldeia queimadas, fugiu na mata, perdeu a família e foi encontrada por padres em uma cidade próxima. Os padres passaram a abusar dela, e depois deram a Cacica para uma família que também abusou dela. Ela fugiu para Belo Horizonte, onde ficou hospedada em uma casa para mulheres. Lá, a Cacica conheceu seu futuro marido. Se apaixonou e eles se casaram. Ele trabalhava como engenheiro e a trouxe para Uberlândia. Pagou um curso de cabeleireiro para ela, e ela virou cabeleireira dos ricos locais. 

Um dia, a Cacica Poty Guarani foi visitar seu marido, que estava trabalhando na Universidade, mas foi proibida de entrar lá por ser mulher indígena e não saber ler. Incomodada, ela prometeu para si mesma: “Eu vou aprender a ler e vou resgatar o meu povo”. Ela organizou, então, uma primeira reunião de povos indígenas em Uberlândia, e a primeira família indígena a ser mapeada por ela foi a minha. Com o tempo, a Cacica foi descobrindo vários outros povos indígenas da cidade, mais de 700 pessoas, e então criou o MINA – Movimento dos Povos Indígenas Não Aldeados do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Entrei no MINA como Coordenadora de Alimentação Indígena e minha irmã entrou na parte de artesanato, porque ela faz utensílios de barro e sabonetes. 

Em 2017, a Cacica faleceu, e deixou seu legado para mim. Estou aqui hoje, com a história para prosseguir. É meu dever fazer com que ela se orgulhe. Mudamos o nome do movimento para Oca – Centro Cultural Indígena Kawã Poty Guarani, e hoje nosso foco é trabalhar com a cultura, fazendo luau, celebrando o Dia do Índio, celebrando o Dia da Mulher Indígena. Estou trazendo de volta alguns rituais de reza e chá, e também pedimos para a Funai fazer um novo censo da população indígena em Uberlândia. Sei que são muitos e de vários povos: Tupinambá, Tupi-Guarani, Bororos, Xavante, Xakriabá e várias outras etnias. Aos poucos, queremos retomar as tradições das culturas por completo. 

Construí a oca do nosso movimento duas vezes: na primeira, a água entrou e levou tudo. Construí novamente, mas agora as palhas já estão bem desgastadas. Eu não queria pôr lona nem telha, eu queria pôr palha, que é nossa tradição, mas está muito difícil. Lá eu organizo encontros com os outros indígenas de Uberlândia, em que sentamos e conversamos sobre as nossas culturas. Queremos voltar a fazer artesanato mas, como não temos tanto recurso, acabamos usando miçangas e penas de galinha. De toda forma, o importante é não ficar parado.

Quero trazer de volta as línguas, porque já temos até mesmo professores indígenas. Quando os Xavante vieram do Mato Grosso, aprendemos muito da língua deles, que é diferente da nossa. Eu não entendo a língua deles, mas quando estamos juntos, nós aprendemos e trocamos. Nós, indígenas, gostamos muito de trocar. Se alguém de fora chega aqui com uma coisa diferente, ele troca comigo por algo que tenho. Quando eu vou para outras aldeias, levo roupa, calçado, comida, e eles trocam comigo. E quando eles estão comigo, eles vão para a escola ensinar as nossas crianças. Não são apenas as trocas materiais que importam, mas aprender um com o outro também é uma troca necessária. 

Evento na Oca – Centro Cultural Indígena Kawã Poty Guarani. Foto: acervo pessoal

Uma vida de aldeia nos centros urbanos

Para ser reconhecida como indígena, eu tive que passar por um processo jurídico em março de 2018. Mesmo eu sendo reconhecida, as pessoas ainda negam, porque a sociedade daqui não quer conviver com os povos originários. Eles me chamam de “índia paraguaia”, dizendo que, como eu tenho celular, não sou indígena de verdade. Pois eu digo para quem quiser escutar: lugar de indígena é onde ele estiver. Quando um brasileiro vai para fora do Brasil, ele, por acaso, deixa de ser brasileiro? Quando um estrangeiro vem para o Brasil, ele não é bem recebido? Por que, então, nós, indígenas, só podemos ser indígenas na mata, sendo que as florestas nem existem mais? Os brancos destroem a mata, matam os nossos povos, estupram nossas mulheres, roubam nossos territórios e ainda se incomodam quando nós vamos morar nas cidades. Se hoje eu sou imigrante no meu próprio país, é porque um dia meus territórios foram tomados e destruídos. Nunca quiseram me reconhecer, mas eu me considero indígena onde eu estiver. Com tablet, com telefone, com notebook, com o que for, eu continuo sendo indígena. 

Eu moro na cidade porque não tenho opção. Aqui tudo é poluído, tudo é cheio de agrotóxico, tudo é motivo de doença. Na aldeia, por outro lado, nós vivemos uma vida saudável e pura. Buscamos preservar a terra, plantar nosso milho, nossa batata, nosso jerimum, criar nosso peixe, caçar nossa própria caça e viver de uma alimentação mais saudável. Nós plantamos, e por isso dependemos da terra, da natureza e do luar. Você olha para o céu e vê a Grande Lua iluminar a noite. Isso para nós é riqueza. Não há nada melhor do que aprender a ler o planeta – ver um relógio no céu e saber qual é o horário, olhar para o arco celestial e poder dizer: “Este ano é bom de chuva, é bom de colheita”. Na cidade, você olha para céu e só vê claridão, não há como ler os astros celestiais.

Eu sou Cacique Pajé, e sempre estou acompanhada, pois muita gente vem aqui em casa. Quando os meninos nascem, eles vêm aqui para serem benzidos por mim. Procuro fazer benzeção indígena, cuidar do umbigo das crianças da minha família e ensinar a importância do resguardo, como na aldeia, para ninguém ficar doente. Eu procuro ter uma alimentação saudável, com milho, batata, cuscuz, bolo de puba (que se faz com mandioca). Meu sabão é feito por mim mesma com óleo de coco ou óleo de dendê. Eu sempre levo as crianças na cachoeira e nas matas aqui por perto. A cerca de 15 minutos de carro da minha casa tem uma cachoeira muito linda que se chama Bom Jardim, além do rio Uberabinha e um pequeno córrego que fica no meio da mata, perto de onde eu morava. É uma nascente de água cristalina que sai de dentro do tronco de uma árvore. Hoje é proibido entrar, mas eu vou mesmo assim, e levo os meus netos para conhecerem. Eu sempre procuro estar com o pé no chão, no meio de um mato. 

É importante trazer essa vida saudável da aldeia para o contexto urbano, e mostrar isso para as pessoas que se intoxicam tanto com remédio. É importante as pessoas da cidade abrirem as portas e nos deixarem falar mais da importância dos saberes dos povos originários e negros, porque temos a mesma história. A cada dia as pessoas estão destruindo a água sem dó e sem piedade. Você passa por uma árvore linda hoje e amanhã você só vê o tronco dela. Isso para mim é muito triste. Eu sinto a dor das árvores quando elas são tombadas. Eu sinto uma dor muito grande, porque nós, povos indígenas, somos preservadores da vida. A Terra para nós é mãe. A água para nós é vida. A natureza para nós é o nosso respirar. Nós, povos indígenas, não somos ninguém sem água, sem Terra e sem natureza – mesmo que moremos nas cidades.

Processos na Cozinha do Glória. Fotos: acervo pessoal

Cotidiano de luta

Além de representar os não aldeados, eu também sou coordenadora da Cozinha do Glória, uma cozinha comunitária que funciona no meu bairro. Ela surgiu em fevereiro de 2020, por iniciativa de uma menina do bairro que via as pessoas em situação de rua sem terem o que comer. Ela e uma vizinha começaram a fazer comida para eles, e sua iniciativa foi vista por um vereador, que cedeu um espaço para o projeto. Durante a pandemia, com a ajuda do MST, a cozinha fazia 1500 refeições por dia e distribuía cestas básicas, o que ajudou a sustentar todo o povo que ficou sem casa e sem emprego nesses anos de reclusão. 

Eu conheci a cozinha em maio de 2020 e fiquei como voluntária até 2021, quando me tornei coordenadora do projeto. Com a vacina chegando no posto de saúde do bairro – graças à nossa luta –, a demanda na cozinha foi diminuindo. Hoje nós fazemos cerca de 200 refeições por dia, mas a cozinha ainda continua ativa. Tem muitas pessoas em situação de rua, e não podemos deixá-las com fome. Tudo o que vem da cozinha é conseguido por doação. Quando sou convidada para fazer trabalhos nas escolas, eu sempre peço um quilo de alimento não perecível. Isso vem da Cacica Poty, que já fazia isso desde antigamente.  

Nós fazemos uma comida bem temperada, melhor do que se fosse para nós mesmos. Se eu tomo conta de uma coisa para você, eu tenho que fazer melhor do que se fosse para mim. Muitos pensam que pessoas em situação de rua são inferiores a nós, mas elas são seres humanos como a gente. Se não podemos dar uma qualidade de vida melhor para elas, que pelo menos possamos dar uma comida balanceada, de qualidade, feita com carinho.  

Todos nós merecemos uma vida digna. É por isso que também estou lutando pelo bairro do Glória, para passarem asfalto e esgoto, porque a água chega aqui toda contaminada, adoecendo muita gente. Estou lutando para construírem uma galeria para a água da chuva passar, porque hoje, quando chove, inunda a casa das pessoas e elas acabam perdendo os móveis. 

As dificuldades de ser uma mulher indígena moradora de uma periferia urbana são muitas, mas, como eu disse, sempre fui guerreira, sempre senti que era uma liderança. Enquanto lutamos por aqui para que os moradores tenham uma melhor qualidade de vida, também preciso estar atenta ao que acontece no país. Neste ano, fui pela primeira vez ao Acampamento Terra Livre, a maior mobilização dos povos indígenas do Brasil, que ocorre todos os anos em Brasília. Ali encontrei meus parentes, conheci vários outros povos indígenas que têm as mesmas reivindicações que nós, de Uberlândia, e estive no Ministério dos Povos Originários com a ministra Sônia Guajajara para discutir a demarcação de um assentamento indígena próximo a Uberlândia. É isso que eu quero, e minha – nossa – luta não vai ter fim.

Cacica Kawany Tupinambá

 

é fundadora e coordenadora do Oca – Centro Cultural Indígena Kawã Poty Guarani, em Uberlândia (MG).

Felipe Carnevalli

 

é arquiteto, designer e editor de PISEAGRAMA. É mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e em Ciências Sociais pela EHESS (Paris, França).

Paula Lobato


é arquiteta, designer e editora. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, onde também se formou. Integra a equipe do BDMG Cultural desde 2021.

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