REVISTA nº 9

Inteligência humana e ancestral

Uma produção colaborativa de saberes performados no diálogo entre praticantes indígenas e não indígenas das áreas da arquitetura, design e agronomia

Rebeca Andrade, Thiago Barbosa de Campos (Tito), Zeza Xakriabá, Luíza Reis do Nascimento
25 Mai 2023 11 Min
Inteligência humana e ancestral
Plantação na Roça de Itapicuru. Foto: Sr. Joaquinzim

18 de março de 2020: o Brasil tomava ciência da chegada de um vírus altamente transmissível e potencialmente letal. O mundo estava em alerta. Era necessário evitar o contato entre as pessoas para conter o avanço da doença que assustava cidadãos e gestores espalhados por todo o planeta. 

Ficou decidido que seria melhor suspender as atividades. Ninguém trabalharia naquela quarta-feira? Naquela semana? Seria piada? Quem sabe uma oportunidade para descansar um pouco da rotina frenética do dia a dia, passando um tempo em casa com a concordância dos chefes? “Hum… nada mal”, muitos pensaram. Até que os dias se tornaram semanas, meses e, inacreditavelmente, anos. 

Da oportunidade de fugir do trânsito e ficar mais em casa, passamos por um longo hiato nas relações interpessoais dotadas de fontes para os nossos diversos sentidos humanos. Passamos a interagir por meio da virtualidade para não perder totalmente uma das marcas da nossa espécie: a sociabilidade. 

Computadores, internet, webcams, redes sociais são alguns dos agentes não humanos que passaram a delimitar quando, onde e como passaríamos a nos encontrar. Para os cidadãos urbanos, essa realidade reforçava barreiras sociais, econômicas e, inclusive, espaciais. As paredes físicas e simbólicas dividiram ainda mais os citadinos. Pelo menos aqueles que tinham acesso a essas tecnologias.

Mas e os cidadãos do campo? Aqueles, por exemplo, que produzem coletivamente, pela agricultura familiar, a maior parte do que se come na cidade? E os povos tradicionais e originários que têm na interação social a base da resistência de seus corpos-territórios? Como estariam eles e elas convivendo com a realidade emergencial que lhes foi também imposta?

Mapa do Brasil localizando a Terra Indígena Xakriabá (TIX) no norte de MG. Fonte: elaborado pelos autores do artigo

No que diz respeito, especificamente, ao povo indígena Xakriabá – a maior população indígena de Minas Gerais, que concentra mais de 12 mil pessoas em território tradicional localizado no norte do estado, com as características semiáridas de onde o cerrado se encontra com a caatinga – viver é agir em coletivo. Foi assim durante as inúmeras investidas coloniais e violentas contra seu povo, seu território, sua cultura. Seguiu-se assim diante de qualquer emergência. Seria assim também nesse novo momento pandêmico.

Diante das memórias e vivências de resistência, seria necessário agir novamente de forma coletiva contra os impactos da pandemia de Covid-19. Dessa maneira, os Xakriabá criaram e colocaram em prática o Monitoramento Comunitário Xakriabá, processo no qual fizeram o que sabem fazer de melhor: proteger a sua “individualidade coletiva” (se assim é possível descrever). 

A Organização Interna Xakriabá identificou vulnerabilidades, refletiu e tomou iniciativas para resguardar seu corpo-território. Juntos, impediram a entrada de pessoas de fora, instalaram barreiras sanitárias nos acessos e ficaram – com apoio da força ancestral do fogo e da roda em torno das fogueiras – em vigília nas fronteiras. Reunidos e fortalecidos, buscaram parceiros para trabalhar em prol da superação dos novos desafios. Mas o que fazer se o contexto pandêmico impedia o encontro com essas pessoas e instituições?

O povo Xakriabá se adaptou aos novos moldes para o encontro com os de fora, os não indígenas. Tiveram e têm o desafio de lidar com a má qualidade dos serviços de internet prestados no interior, longe da urbe, mas ainda assim conseguiram apresentar suas demandas e manter parcerias de longa data, como a firmada com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). 

Foi por meio dessa parceria entre povo-instituição que nós, como coletivo de praticantes indígenas e não indígenas ligados ao bem viver e ao cultivar, nos associamos. A oportunidade aberta pelo BDMG Cultural através do programa Urbe Urge, desenvolvido com apoio do Cosmópolis, grupo de pesquisa da Escola de Arquitetura e Design da UFMG, nos possibilitou essas novas alianças e encontros virtuais, ainda em razão da pandemia. Tais encontros possibilitaram a produção colaborativa de saberes que uniram as áreas da arquitetura e do design com a agronomia e os conhecimentos indígenas Xakriabá: conhecimentos coletivos, resistentes, atuais e ancestrais.

No Urbe Urge, trabalhamos o Mapeamento Colaborativo das Práticas do ROMZÃ. ROMZÃ (palavra que na língua Akwen Xakriabá significa “semente”) é o Coletivo de Agricultores e Agricultoras Familiares Indígenas Xakriabá. Formalizado em 2020, tem o intuito de apoiar os/as produtores/as indígenas na luta pela soberania alimentar, hídrica e pelo acesso ao trabalho e renda. De modo transversal a essas dimensões, as ações da agricultura familiar no território indígena Xakriabá têm sido impactadas pelos desafios locais causados pelas mudanças climáticas globais (foco do programa Urbe Urge em 2021).

Um dos objetivos imediatos do ROMZÃ foi apoiar os/as agricultores/as no acesso a mercados mais estáveis, como os possibilitados pelas políticas públicas federais do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Para isso, seria importante sistematizar, visibilizar e mapear as práticas agrícolas desenvolvidas por eles/as mesmos/as, afinal, cada unidade familiar tem uma produção distinta, além de dinâmicas e desafios particulares que interessam ao ROMZÃ gerenciar coletivamente. Foi essa missão de mapeamento que assumimos fazer colaborativamente.

Nossa dinâmica de trabalho se desenvolveu de uma forma que depois entendemos como híbrida. Cada um de nós estava vivendo seu isolamento pandêmico e nossos encontros foram estritamente virtuais. A parte de nós envolvida com as áreas da arquitetura e agronomia estava em suas pequenas bolhas, sejam apartamentos ou sítios. Já a parte de nós indígena estava em seu território coletivo, onde as bolhas se mantiveram muito mais estendidas e fluidas. 

Na bolha indígena, o trabalho coletivo para subsistência e sobrevivência não poderia parar. As escolas fechadas continuavam a comprar alimentos para ajudar as famílias dos/as estudantes, que em diversos casos dependiam desse recurso para resistir. Organizar o trabalho do ROMZÃ seguiu urgente como nunca. 

Apesar da recente formalização do ROMZÃ, o histórico da organização coletiva e da produção agrícola Xakriabá é muito antigo, e seu trabalho ativo vinha de muito antes. A relação desses indígenas com a agricultura no semiárido é longínqua e habilidosa, traçando parceria com culturas como feijões, abóboras, mandiocas e milhos desde muito antes da chegada dos portugueses. Porém, lidar com os papéis e representatividades exigidas pelo mundo não indígena é, para o ROMZÃ, algo recente. 

Passamos a trabalhar na identificação das práticas e culturas agrícolas produzidas pelos/as diferentes associados/as e dos seus desafios quanto ao acesso à água. Fizemos a transposição desses dados para o mapa do território, tomando consciência das espacialidades utilizadas e das presenças ou ausências de água em cada região. 

A parte de nosso coletivo que estava longe do território e seria incapaz de desenvolver os trabalhos de campo necessários para o levantamento de informações agronômicas precisou dialogar e partilhar não só conhecimentos, mas dinâmicas de trabalho com nossa outra parte, indígena, que estava em campo e poderia executar as tarefas in loco. Foi necessário se desvencilhar do lugar de poder técnico. A parte apta a transitar nas áreas de produção agrícola passou a desempenhar a função da outra, tornando-se a técnica extensionista que visitava, observava, registrava os dados e escolhia quais seriam analisados e utilizados no mapeamento. Portanto, a parte indígena de nosso coletivo não só levantou e produziu os dados sobre a sua própria realidade, mas determinou o que seria mapeado e os modos como esses processos seriam conduzidos. 

Ao lidar com as dimensões espaciais, percebemos que era importante pensar também na dimensão do tempo e da materialidade da produção-colheita vista de modo coletivo. O que o ROMZÃ produz em cada época do ano e o que pode ser oferecido aos editais de compra de alimentos das escolas? Sendo assim, passamos a pensar em uma forma de organizar no tempo a produção da terra e, assim, contribuir para a gestão coletiva. A maior parte de nós, não indígena, pensou em pontuar em uma linha do tempo o que se produzia. Porém, a parte indígena de nós alertou que não é assim que o povo Xakriabá pensa. O tempo Xakriabá não poderia ser desenhado em uma linha. Ele é um círculo. 

Figurinhas dos alimentos desenhados por um xakriabá, coloridas digitalmente. Na primeira versão elas foram impressas como adesivos, a serem coladas na base. Na segunda versão elas foram feitas no formato de bottoms. Fonte: elaborado pelos autores

Novamente as estruturas do pensamento do nosso coletivo estavam sendo desestabilizadas. Os saberes técnicos arquitetônicos e agronômicos precisavam conversar com o saber ancestral. Deparados/as com um embate ontológico e cognitivo, tivemos na parte indígena a diplomacia de retomar uma metodologia validada localmente e utilizada nas escolas Xakriabá para organizar seu tempo e currículo diferenciados: a metodologia dos Calendários Socioculturais. Inspirados/as por esse trabalho, criamos colaborativamente o Calendário Interativo de Plantio e Colheita Xakriabá

Por meio dessa tecnologia, reunimos os conhecimentos ancestrais da temporalidade indígena Xakriabá e da prática de produção agrícola tradicional e familiar, com conhecimentos da agronomia (por exemplo, planejamento produtivo e escalonar de produção), da arquitetura e do design (como exemplos: a organização visual de informações, a diagramação de dados, a representação gráfica e a concepção de objeto-material). Produzimos o calendário em intenso diálogo, através de reuniões virtuais e muitas mensagens no celular. A construção do material gráfico contou com desenhos já conhecidos e apresentados por Zeza Xakriabá [professora, agricultora, secretária do ROMZÃ e uma das autoras deste texto]. Eram desenhos, todos realizados por xakriabás, foram reunidos de maneira digital no Photoshop. Tudo em um processo limitado pelo tempo do edital. 

Foto dos agricultores utilizando a primeira versão do calendário interativo. Fonte: acervo pessoal dos autores

Como objeto impresso, o calendário foi um importante produto do trabalho, tornando-se ferramenta disparadora de diálogos também no território, quando chegou às mãos dos agricultores. Da forma como se desenvolveram, nossas ideias pulsantes não se materializaram durante o Urbe Urge. O prazo e o recurso acabaram e, com isso, foi preciso colocar um pequeno ponto final. Ainda assim, um dos incentivos importantes do programa durante os encontros (virtuais) e trocas com os/as coordenadores participantes do Cosmópolis e os/as pensadores-interlocutores foi de que buscássemos nutrir boas parcerias para que as ações do nosso coletivo – da nossa rede – continuassem ativas e vivas. Foi o que fizemos.

Continuamos a trabalhar na construção do Calendário. Analisamos os resultados do uso do protótipo na dinâmica do ROMZÃ e, a partir disso, encontramos novos materiais. Buscamos recursos financeiros em uma vaquinha realizada entre nós, associados/as e parceiros/as mais próximos/as. Conseguimos produzir uma primeira versão em tecido e bottons que está atualmente em teste no território.

Nosso coletivo-parceria segue ativo. Buscamos e alcançamos novos editais e pretendemos em breve produzir mais cópias do Calendário de Plantio e Colheita para que o projeto possa ser utilizado no diálogo entre agricultores e, também, servir como ferramenta pedagógica nas escolas indígenas Xakriabá, estimulando a produção de conhecimento baseada em sua cultura alimentar e realidade produtiva. Com a contribuição de Zeza, imaginamos que os calendários possam ser utilizados pelas/os professoras/es, jovens e diretores/as que vivem no território indígena. Para esses últimos, a expectativa é que a produção local esteja visível durante todo o ano e possa, assim, ser contemplada de modo mais ajustado aos ritmos internos da atividade agrícola dessa população, contribuindo para a efetividade do PNAE na priorização dos alimentos produzidos localmente e sem agrotóxicos. 

Diante dessa rede que reúne vírus, indígenas, não indígenas, agricultores/as, professores/as, arquiteto/a, agrônoma, plantas, escolas, políticas, território, entre outros, percebemos que a emergência da pandemia fez com que a virtualidade participasse das nossas relações e também da importância de se dissolver papéis técnicos rígidos dentro de um processo formativo colaborativo e coletivo. 

Tito Campos e Zeza Xakriabá

Cabe explicitar, mesmo que ao fim dessa partilha, que a referência feita à “inteligência humana e ancestral” no título se coloca em contraposição à supremacia da “inteligência artificial” tão discutida nos últimos dias. Na nossa experiência, é visível a importância da tecnologia computacional no processo de circulação dos conhecimentos vivenciados. Porém, não há como ignorar a dimensão coletiva e colaborativa que potencializa nossa humanidade e os conhecimentos que produzimos. Além disso, destacamos o potencial do encontro horizontal entre conhecimentos técnicos e ancestrais. No encontro respeitoso, vivenciamos a produção de uma tecnologia social  que acreditamos ter capacidade de se adaptar e apoiar muitas outras práticas e realidades territoriais agrícolas e coletivas.

Ao longo dessa jornada nos tornamos mais sensíveis para agir e pensar de modo circular e contínuo. Ampliamos nossa capacidade de criar e decidir conjuntamente, permitindo ao coletivo superar o individual. Exercitamos nosso entendimento sobre os tempos dos cultivos, das plantas, das chuvas, das luas, das ideias, das conversas, dos sonhos… Ampliamos nossos saberes sobre o planejamento e manejo agroecológicos. Aguçamos nossa percepção para a importância dos alimentos, de como lidar com a terra, a água, o vento, o sol. Experimentamos modos de organizar e dar forma às ideias e pensamentos, de materializar soluções. Enfim, co-elaborando, aprendemos um pouco mais sobre o significado de colaborar.

Rebeca Andrade


é educadora, agrônoma e doutora em educação pela UFMG. Atua em parceria com os Xakriabá em diferentes ações e em apoio às causas indígenas de outros povos também.

Thiago Barbosa de Campos (Tito)


é arquiteto, mestre e doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG. Desenvolve pesquisas e trabalhos colaborativos com indígenas em contexto urbano e com os Xakriabá.

Zeza Xakriabá


é professora indígena licenciada pela UFMG. Agricultora, secretária do ROMZÃ e pessoa envolvida em diferentes ações junto ao seu povo.

Luíza Reis do Nascimento

 

é graduanda em Arquitetura e Urbanismo na UFMG. Pesquisa as paisagens e as fronteiras entre naturezas-culturas.

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