REVISTA nº 9

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Desenhar, narrar e ensinar

Por meio de seus tehêys, Dona Liça Pataxoop conta e perpetua as histórias de seu povo, educando indígenas e não indígenas nas relações com a natureza, a terra, o tempo e os outros seres

Marcela Rosenburg
25 Mai 2023 13 Min
Desenhar, narrar e ensinar
Povo Pataxoop. Foto: Kayke Quadros/Reprodução Espaço do Conhecimento

Começo, fim, origem e extinção são temas bastante presentes nas narrativas míticas transmitidas oralmente através das gerações do povo Pataxoop – que nós, os não indígenas, conhecemos como Pataxó. Enquanto o primeiro conjunto imagem-narrativa nos conta sobre a origem dos Pataxoop, o segundo nos traz a ameaça do fim da natureza e do mundo Pataxoop materializado pela cobra preta Kayãyun.

Tehêy “O surgimento do povo Patachoop”, Liça Pataxoop. Fonte: Avizinhar Fabulações

Esse aqui é o tehêy do valor da história do povo Pataxoop. Mostra, apresenta e ensina como foi a nossa origem aqui na Terra. Na nossa história, nós viemos das águas, viemos pela chuva. Nesse tempo, ocorreu um grande aguaceiro, uma chuva muito bonita. Foi no primeiro aguaceiro que Yãmiyxoop deu origem ao povo. De cada pingo que caía, nasciam os Pataxoop. No tehêy, aqui estão eles surgindo, e aqui eles já estão brotados, pois é como uma semente mesmo, e as sementes nascem com água e com a terra. Brotam, elas vencem e sobem à terra. Aqui já estão celebrando o seu brotar de dentro da terra. E aqui, por fim, já está ocorrendo essa grande relação de vida com a natureza. Já estão andando, já estão vivendo o seu tempo na natureza. As chuvas também são celebradas pelo povo Pataxoop. Liça Pataxoop e Kanatyo Pataxoop

Tehêy “Kayãyun”, Liça Pataxoop. Fonte: Mundos Indígenas

Quando Yãmiyxoop formou o mundo, Kayãyun queria destruir a Natureza, para acabar com tudo na Natureza, porque a Natureza é também viva. A Natureza é também mulher e ela saiu correndo de Kayãyun. A Kayãyun é uma cobra preta que, desde quando surgiu o mundo, ela apareceu e sempre vivia para comer a Natureza, querendo a engolir. Por onde passava, ela fazia a destruição. Derrubava as matas e quando a natureza ouvia o seu grito – pois Kayãyun gritava e era ouvida a uma distância muito grande – a Natureza corria. Até que chegou à casa de Yãmiyxoop, que segurou a Natureza e a mandou entrar. Yãmiyxoop fazia um artesanato e ouvia o estrondo aumentando, mas ele nem se esquentou. Quando Kayãyun chegou, o engoliu, e eles chegaram à barriga dela, ele a cortou e eles puderam sair de lá de dentro. Saíram, ele e a Natureza, vivos, enquanto Kayãyun ficou adormecida no mundo. Desse tehêy nós tiramos a grande lição de que hoje há muita destruição na Natureza, que está se acabando. Os rios estão morrendo, há muitas escavações na terra, engolindo as matas, engolindo os rios e é tudo por causa dessa cobra, dessa Kayãyun, que está aí. Liça Pataxoop e Kanatyo Pataxoop

Mais de uma vez na história podemos dizer que o fim do mundo (quase) aconteceu para o povo Pataxoop: primeiro por conta da colonização portuguesa, quando foram expulsos de suas terras, obrigados a abrir mão de sua língua nativa para aprender o português e tiveram grande parte de sua população dizimada. Muito depois disso, em 1951, o povo Pataxoop passou por outro episódio de quase extinção no qual a aldeia de Barra Velha, localizada na cidade baiana de Porto Seguro, foi invadida e incendiada pela Polícia Militar por decisão dos governantes, em consenso com os ruralistas locais. Apesar de, por volta da década de 1970, terem surgido várias entidades de defesa dos povos indígenas e da criação do Estatuto do Índio pelo Governo Federal, os Pataxoop ainda enfrentaram outro episódio de desterritorialização, em que a demarcação de sua terra em Barra Velha foi substancialmente menor do que o total originalmente reivindicado.

Atualmente, parte dos Pataxoop vivem em um território em Minas Gerais, e é de dentro da escola indígena da aldeia Muã Mimatxi, localizada na cidade mineira de Itapecerica, que a educadora Liça Pataxoop utiliza as imagens-narrativas que acompanham este texto – chamadas por ela de tehêys – como uma estratégia de preservação da cultura de seu povo.

Dona Liça Pataxoop é uma liderança indígena que, apesar da violenta herança da colonização, viveu bastante fartura na infância. Em entrevista ao podcast É cultura?, produzido pelo BDMG Cultural, ela enumera algumas lembranças: “Muita mata, fruta, mangue, mar, rio, brejo e campo”. Nascida em Barra Velha, Liça viveu a primeira parte de sua vida à beira-mar, em um território exuberante de Mata Atlântica. Seu primeiro contato com os não indígenas decorreu da relação com as professoras brancas da escola que a Funai construiu na aldeia. Dona Liça não frequentou a escola por receio de deixar seus filhos sozinhos, mas, a partir dessa interação com as educadoras, foi apresentada à cultura dos brancos: “Mostraram um rádio, queijo, mas eu não gostava. Ensinaram a gente a fazer macarrão, arroz, mas nós não tínhamos o costume de comer isso. Só comíamos peixe, farinha.”, disse ela em outra entrevista recente.

Em decorrência da tensão criada pela demarcação da aldeia de Barra Velha em 1980, Dona Liça e sua família decidiram migrar para Minas Gerais. Foi uma travessia difícil e o estabelecimento da nova aldeia foi igualmente desafiador: sem a abundância do mar, mangue, animais e mata que existiam na Bahia, os Pataxoop tiveram que inventar maneiras de sobreviver. “Quando cheguei aqui, a primeira coisa que fui fazer foi cuidar da terra, pois tinha pessoas não indígenas que moravam aqui, às vezes tinha boi, colocavam muito veneno na terra, e isso é uma coisa que nós não gostamos de botar na terra. Tinha muito lixo pelas matas, pela estrada. Quando chegamos fomos fazer um ritual de canto e de dança para melhorar a terra”.

Na nova aldeia, Muã Mimatxi, Dona Liça foi escolhida por sua comunidade para ser professora. “Fui escolhida porque viram que eu tinha esse dom do ensino, e porque sou uma das mais velhas aqui da aldeia”. Sua forma de viver e, consequentemente, sua forma de ensinar estão profundamente ligadas ao espaço que ela e seu povo ocupam, e a um conhecimento ancestral que guia a maneira dos Pataxoop de viver na terra.

Professora dos territórios, Dona Liça não possui o que chama de “estudo lá de fora”. Seu estudo “é o estudo da tradição mesmo, é o Yãmiyxoop que ensina, a mãe terra, o vovô sol e a vovó lua”. Tal como os não indígenas escrevem “com letras”, os Pataxoop escrevem suas histórias por meio de imagens e, assim como existem os livros didáticos que contam histórias em texto, os tehêys são ferramentas de “pescaria do conhecimento” que, através de desenhos, contam sobre os ensinamentos da vida, sobre a cultura daquele povo. 

Os tehêys são, portanto, imagens desenhadas por Dona Liça para que os mais jovens possam conhecer os valores da vida e da natureza que fazem parte da cultura e do território dos Pataxoop. Esses desenhos são produzidos a partir das narrativas orais, mas também inspiram e ajudam na contação dessas mesmas histórias nas escolas das aldeias, versando sobre questões que estão bastante ligadas ao cotidiano daquelas pessoas, à natureza, sua origem e extinção. 

O ensino-aprendizagem de Dona Liça se deu fazendo, olhando, escutando e apreciando. Segundo a educadora, é a partir das imagens colocadas no papel que as histórias ancestrais são contadas e recontadas. Os tehêys, ideia que chegou a Dona Liça através de um sonho, são uma maneira de ensinar a partir das histórias da terra: existe aquele que ilustra o Grande Tempo das Águas (a origem do mundo Pataxoop); outro que conta sobre o plantio da terra, o trabalho na aldeia, a colheita; e outro sobre a história de Kayãyun, a cobra preta que ameaça a existência de vida no mundo, através da eliminação da mãe da fertilidade, a Natureza.

O tehêy que conta sobre a origem do povo Pataxoop nos traz uma indissociação entre humanos e natureza, entre Pataxoop e chuva. Essa origem comum se desdobra na crença de que, assim como as sementes carecem de terra e água para viver, sua gente também precisa. Os Yãmiyxoop são os povos-espíritos da natureza e de todas as forças das matas, rios e animais que acompanham constantemente os Pataxoop. Segundo seu mito de origem, foram os Yãmiyxoop que antigamente vieram à terra e criaram a mata, as frutas, o mar e os rios, preparando tudo o que fosse necessário para a chegada dos Pataxoop ao mundo. Já o tehêy de Kayãyun nos alerta sobre os riscos de não se cultivar um vínculo entre os humanos e os não humanos. Nessa história, à medida que a destruição da natureza avança, o monstro, que estava adormecido pela facada de Yãmiyxoop, acorda e ganha forças. Mas, se protegermos a natureza, Kayãyun continuará em sono profundo.

O tehêy da cobra preta não é simplesmente uma distopia que pode antecipar o fim do mundo no futuro, mas também pode ser interpretado a partir de ameaças passadas – como a invasão dos portugueses – e presentes – como o desmatamento da floresta amazônica e as queimadas no Pantanal. Passado, presente e futuro não aparecem como tempos estanques, lineares e progressivos, mas imbuídos de uma lógica cíclica em que algo que já aconteceu no passado pode voltar a acontecer no presente, bem como histórias presentes podem vir a ser o futuro, tanto como promessa, quanto como alerta. Ao longo do tempo, a cobra pode assumir diversas formas e nomes, de modo que seja possível interpretá-la, nos dias de hoje, como uma metáfora do Antropoceno – era geológica em que (parte da) humanidade se consolida como uma força capaz de destruição planetária.

Como consequência das várias lutas enfrentadas em meio à extinção de grande parte de sua população e expulsão de suas terras originárias, os Pataxoop começaram a empregar novos meios para se apresentarem em espaços fora da própria aldeia, usando o papel, a tinta, o lápis, a máquina e várias outras tecnologias como “formas de defesa”. A educação, nesse sentido, se consolida como defesa da terra e do conhecimento ancestral contra a ameaça de fora da aldeia, mas também, em um movimento complementar, opera como meio de conscientização dos modos de vida ocidentais para dentro da aldeia.

Em um trecho publicado no catálogo da exposição Mundos Indígenas, inaugurada no Espaço do Conhecimento UFMG em 2019, Dona Liça Pataxoop define: “A educação para nós é um instrumento para repensar e defender a luta dos povos indígenas, porque sabemos que o colonizador ainda está aqui. Vamos viver no meio deles para sempre. Não há como mudar isso. Então temos que usar a educação como um meio de defesa para irmos desatando os nós do colonizador, de uma educação colonizadora, porque sabemos que a educação faz parte da vida da nossa comunidade”.

Dona Liça e Kanatyo na exposição “Mundos Indígenas”. Foto: Deborah Lima/Reprodução Espaço do Conhecimento

Ao propiciarem que os Pataxoop contem sua própria história, os tehêys cumprem essa dupla função, de defesa e conscientização. Atuando como diplomatas – termo usado pela filósofa belga Isabelle Stengers para designar aqueles que fazem o trânsito entre mundos conferindo “voz àqueles que se definem como ameaçados” –, os educadores Pataxoop como Dona Liça transmitem mensagens através das imagens e dos códigos da natureza, já que, afinal, “as plantas e os bichos também têm história”. Os desenhos não são apenas representações, mas uma forma de (re)conhecimento sócio-espacial e um caminho para a (re)conexão entre humanos e não humanos.

Para além dos tehêys de Dona Liça, seu marido Kanátyo Pataxoop também desenvolveu uma pedagogia inovadora que, através da composição de músicas e poesias sobre a história de seu povo e sobre a natureza, alfabetiza as crianças da aldeia. Para Kanátyo, “a escola é o arco e a flecha de caça, a pesca e a luta, que os orienta com um pé fincado no chão da aldeia e outro pé no chão do mundo”. Tanto Kanátyo quanto sua filha Weremehe Pataxoop são graduados em Formação Intercultural de Educadores Indígenas pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), experiências que contribuem – cada uma a sua maneira – para que, nas palavras de Weremehe, “a centralidade maior da nossa aldeia seja a educação, ela está no centro de nossas vivências”.

Ainda sobre a centralidade da educação na aldeia, é importante dizer que a escola do povo Pataxoop não é delimitada por paredes, mas pela terra e pelo céu. Dona Liça diz que “na aldeia, nós temos uma escola de quatro paredes, mas nós não a ocupamos muito. Nossa escola é mais no espaço, ao redor dela”. E ainda completa: “moramos dentro de uma grande casa que é minha, é sua, é da natureza e dos animais”. É a partir do entendimento da natureza como casa, como professora e também como parente que se aprende a não temê-la ou dominá-la, mas sim a respeitá-la. Enraizado na terra, o processo de ensino-aprendizagem do povo Pataxoop mistura arte e vida, natureza e cultura, assim como mente e corpo.

O nome da escola de quatro paredes é Escola Estadual Indígena Pataxó Muã Mimatxi, e, por mais que ela tenha sido uma consquista das lideranças Pataxoop – assim como o posto de saúde – junto ao governo de Minas Gerais, Dona Liça acredita que grande parte dos conteúdos e ideias que circulam ali são trazidos de fora e não fazem sentido para sua comunidade. “É importante trocar conhecimento com os professores não indígenas porque, às vezes, tem uns que chegam aqui e dizem para as crianças não sentarem na terra, que a terra é suja. E eu digo que a terra não adoece ninguém, nós é que sujamos e adoecemos a terra”.

Enquanto “o homem branco tem o conhecimento de construção das coisas materiais”, os indígenas, de acordo com Dona Liça, possuem conhecimentos “sobre toda a vida da natureza”. Por estarmos todos vivendo no mesmo espaço, no mesmo chão, a professora acredita que cabe aos indígenas passar um recado e ensinar a lidar com esse espaço que hoje, mais do que nunca, corre risco de vida. “Se eu puder cultivar mais, eu quero. No meu pedacinho de chão eu quero mais animais, fruta, planta, árvore. Não só em meu pedacinho de chão, mas no chão todo. Sem a terra, a gente não vive” .

Textos e referências consultadas

Os depoimentos de Dona Liça utilizados neste texto foram retirados das seguintes entrevistas: Aprender com a natureza – podcast É cultura? (2021); “Minha escrita é o tehêy, resistência e memória de nossa história”entrevista para o Itaú Social (2022); e catálogo da mostra Mundos Indígenas – organizadoras: Ana Maria R. Gomes, Deborah Lima, Mariana Oliveira e Renata Marquez (2020).

O depoimento de Kanátyo Pataxoop foi retirado do texto A irmandade de um tudo que é parente – Kanátyo Pataxoop (2022). Texto publicado como parte do projeto “(Entre parentes): narrativas indígenas ilustradas”, do Sesc Osasco.

Outras fontes consultadas: Pataxó, uma história de resistência (Jornalistas Livres); Portal Povos Indígenas no Brasil; Tehey de pescaria de conhecimento (Weremehe Pataxoop – percurso acadêmico apresentado no curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas da UFMG, 2019) e Traduções interculturais indígenas: a cura da terra (Mara Dutra – tese defendida no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA, 2017).

Marcela Rosenburg

 

é graduada e mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, tendo concluído parte de seus estudos na Royal Academy of Arts – KABK (Haia, Holanda). É sócia fundadora do Micrópolis, grupo de arquitetos que trabalha na interseção entre os campos da arquitetura, do design e da educação.

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