REVISTA nº 2

Panapanã no sertão

Imagens, imaginário e natureza no Norte de Minas Gerais. Um percurso pela margem esquerda do Rio São Francisco, de Januária até o Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu. Histórias para renovar nosso olhar sobre a região.

Gabriela Moulin
16 Jun 2020 10 Min
Panapanã no sertão

Por repetidas vezes, borboletas se juntam aos montes na estrada, sempre amarelas e com uma aparente fragilidade. Carros e pessoas se aproximam e inicia-se uma revoada fabulosa, imagem onírica e inesquecível para a viajante de primeira visita que sou.

Em meio à diversidade do cerrado que compõe a paisagem do Norte de Minas, com suas veredas, a mata-seca e a influência da caatinga, estamos em Januária e percorremos a região por três dias, terminando o percurso no Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu.

Volto e recorro ao dicionário: qual seria a palavra para o coletivo de borboletas? Panapaná ou panapanã, que também designa borboleta em tupi.

Lembro do “efeito borboleta”, da teoria do Caos, que ficou popularmente conhecido pela ideia que o bater de asas de uma borboleta em algum lugar do mundo pode gerar uma tempestade em outro. O que seria então do bater de asas de uma panapanã, em meio àquela paisagem, neste ano de 2020 nunca antes imaginado?

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Januária está à beira do Rio São Francisco, cujas águas no verão de 2020 encontravam-se em sua maior cheia dos últimos 10 anos. Uma cidade voltada para aquelas águas. No aparador do cais, pinturas com cenas dos vapores, da pesca e da navegação não nos deixam esquecer que, mesmo estando na rua, aquele rio beira nossos corpos.

Um casario colonial em visível abandono estrutural se espalha pelas ruas históricas da cidade, que é um dos pólos mais importantes do Norte de Minas Gerais, reunindo um pulsante comércio, universidades e uma população de quase 70 mil habitantes.

A cidade foi fundada na segunda metade do século 19, mas a ocupação daqueles territórios foi marcada pela conquista do rio pelos bandeirantes, que percorreram as regiões do Alto e Médio São Francisco a procura de riquezas minerais e ali se estabeleceram, submetendo e expulsando os povos indígenas que então os habitavam.

Barcos de pesca atracados no cais da cidade

O povoado distante 5km da margem do São Francisco, deu início ao que hoje é a cidade de Januária. Das primeiras casas, pouco restou. De povoado para distrito, atualmente denominado Brejo do Amparo, preservou até os dias de hoje a segunda igreja de Minas Gerais, a Igreja da Nossa Senhora do Rosário, datada de 1688, construída por jesuítas em um quilombo.

O porto fluvial de Januária foi construído a partir do crescimento do comércio na região. Denominado Porto do Brejo do Salgado, Porto do Salgado, e depois simplesmente Salgado, sendo alçado à cidade de Januária em 1833, quando já era um ponto importante para o fornecimento e o escoamento de mercadorias, tendo seu momento mais pujante sobretudo no século 19 e primeira metade do século 20.

A partir de então, com a falta de políticas de navegação fluvial e a abertura de outros eixos de comércio terrestre em Minas Gerais, os vapores aos poucos pararam de funcionar e o porto perdeu muito de sua expressividade.

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Mas o ano é de 2020 e a panapanã continua reverberando novos acontecimentos.

Sou convidada a me reunir com um grupo de pessoas ligada à cultura da cidade. A convocatória parte do Instituto Rosa e Sertão, do Ponto de Cultura Centro de Artesanato da Região de Januária e da Revista Manzuá.

O grupo é diverso, pois lá já se sabe, desde sempre, que cultura também é assunto para professores, turismólogos, gestores públicos, mobilizadores sociais, ambientalistas, agricultores familiares e estudantes, além, claro, de musicistas, escritores, artistas visuais, artesãos.

Encontro reúne grupo de diversos segmentos da região para uma discussão sobre cultura

Muitos dos presentes na reunião fazem parte do movimento Cine Barranco, que reúne jovens da cidade e é coordenado pelo economista Gleydson Mota, também um dos coordenadores do Ponto de Cultura. O projeto promove mostras de filmes no quintal da casa que abriga o Centro do Artesanato e também é lugar que reúne a belíssima produção da região. Tudo isso em uma cidade que, como tantas outras brasileiras, não tem mais ativa uma sala de cinema.

A diversidade do grupo que se reúne traz uma riqueza maior à discussão de cultura, transdisciplinar por natureza e lugar de criação e formação simbólica e também econômica dos indivíduos.

O entusiasmo com que os participantes falam do Cine Barranco – vale lembrar que o nome alude à geografia do médio São Francisco e aos povos barranqueiros – também está nas histórias que me contam sobre o CineBaru – Mostra Sagarana de Cinema, que, embora distante 270 quilômetros à oeste de Januária, no distrito Sagarana, em Arinos, chega ao seu quarto ano consecutivo disputando o espaço da narrativa dos eventos de cinema no Brasil a partir de uma localidade incrustada no sertão mineiro e com nome de livro do escritor Guimarães Rosa.

Ao se pesquisar sobre o CineBaru, lê-se que ele tem “o objetivo de mostrar o sertão mineiro ao mundo, o mundo ao sertão mineiro. Promover essa imersão no sertão tanto enquanto local de encontro cinematográfico quanto diante da formação de um novo público na agenda de festivais de cinema, fortalecendo essa rede de realizadores, moradores, produtores e pesquisadores. Em resumo: convivência cultural, social, política e artística por meio da produção e exibição de filmes que inauguram um olhar nesse novo ambiente audiovisual. Fazer, exibir e viver cinema no sertão mineiro a partir de suas inquietações, saberes, dificuldades e valores”.

Pinturas no aparador de onde se avista o São Francisco

Este lugar que explora as fronteiras do saber e promove a convivência cultural, tão fundamental na construção social, ganha novas imagens e se atualiza para mim.

As relações complexas e imperfeitas que temos sobre o imaginário do sertão, do sertanejo e dos diferentes territórios mineiros, sobretudo a partir de algo que lhes falta, precisam ser atualizadas.

Cientes disso, Cine Barranco, CineBaru, e projetos como o já realizado Cinema no Rio São Francisco, ou o Beiras D’Agua, que alia produção científica e acadêmica ao audiovisual, criam novas imagens sobre paisagens naturais e humanas, demonstrando que esses dois elementos constituem um ente comum.

Tudo isso lembra certa “teimosia da imaginação”, nome cunhado pelo crítico de arte Rodrigo Naves, em uma exposição e livro criados pelo Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro sobre a chamada “arte popular”. A pesquisa também virou uma série de curtas-metragens que podem ser vistas no Canal Curta!.

Teima-se em imaginar, teima-se no fazer diante de situações imperfeitas, teima-se em viver com uma grandeza de imagens e poesia.

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Agrofloresta abundante do Seu Valdeci e Centro de Artesanato de Januária

A viagem continua e nos encontramos com as mulheres da Olaria do Candeal no município de Cônego Marinho. Lá, seguindo a tradição doméstica e familiar de várias gerações, as mulheres produzem e desenham flores e arabescos com o tauá (pigmento mineral de coloração vermelha) em potes, moringas, travessas, pratos e muitos outros objetos.

Cada mulher gera, nos desenhos que faz, certa identidade pictórica que, segundo me contam, é portadora da história da arte do Povo Indígena Xacriabá, que tem sua comunidade localizada também na mesma região.

Ricardo Gomes Lima em sua tese de doutorado intitulada “O Povo do Candeal: Sentidos e Percursos da Louça de Barro”, conta dessa relação de maneira a entendermos o quão as fronteiras e o trânsito entre as culturas dos povos estão imbricados. “O sistema de representações que relaciona os Xacriabá́ à arte rupestre também insere nesse mesmo universo o grupo produtor de cerâmica da Olaria, pois, afinal, ‘têm aquelas fogueiras atrás da casa’ e fazem a louça – que pintam da cor vermelha do tauá, como os ‘índios do passado’ pintaram os paredões do Peruaçu. Tudo integra um só sistema, fogueiras, cerâmica, pinturas rupestres, índios xacriabá́, louceiras da Olaria. Todos se relacionam, tudo se ordena, se comunica”. A arte rupestre à qual o texto de Lima se refere está concentrada no Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu, nossa última parada.

Formações geológicas no Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu

O Parque está localizado no vale do Rio Peruaçu, afluente do São Francisco, entre os municípios de Itacarambi, Januária, São João das Missões, Bonito de Minas, Cônego Marinho e Miravânia. Um patrimônio arqueológico, espeleológico e cultural que reúne mais de 140 cavernas e 80 sítios com pinturas rupestres e registros dos diversos povos que habitaram a região.

Ele faz parte do Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu, um mosaico de conservação ambiental que reúne o conjunto de unidades de conservação (parques, reservas, APAs, florestas nacionais, etc) e outras áreas protegidas (como terras indígenas e comunidades quilombolas), com gestão compartilhada do território.

É um lugar sem igual, com águas, formações rochosas, espeleotemas, vegetação, fauna e as milhares de pinturas rupestres, com camadas infinitas de cultura, história e formações naturais que compõem essa paisagem única.

Ao mirar os paredões de pinturas e adentrar as imensas cavernas com suas claraboias e rios, transita-se por um tempo e por mundos que permanecem vivos no sertanejo, nos xacriabás, na cultura de seus rios.

As pinturas rupestres são, na visão da filósofa francesa Marie-José Mondzain, o cenário inaugural que instaurou o homem enquanto espectador numa relação da alteridade. Em passagens belíssimas de seu livro “Homo Spectator. Ver > Fazer Ver”, a autora descreve o que significa para a humanidade este momento em que o homem coloca-se na distância de um braço do plano da parede e inscreve nela a representação de si e do outro. “Esta fase determina os dois sítios entre os quais se vai disputar o sentido dos gestos por vir: o corpo e a parede do mundo. E o mundo é um muro. Inaugura-se um entretém, no sentido em que o homem se mantem diante da parede que tem em si própria e o que deve advir entre eles está só nas mãos do homem”.

Ela ainda contrapõe este gesto ao momento em que, fora da caverna, ao sol, os olhos veem muito além do que as mãos conseguem tocar. “Lá fora, os olhos alcançam um horizonte que interrogam e que provoca o desejo de conquistas. O horizonte é a prova de um distanciamento que suscita o sonho ou o domínio. A sua inacessibilidade é propícia às figuras imaginárias da transcendência”.

E, ao fim, tudo está ali no sertão e também no rio, nas margens e nas cidades. Há a parede, as pedras, a mão do homem, as figuras imaginárias e transcendentes dos povos indígenas e o horizonte que só quem vai ao Norte de Minas pode ver.

Talvez no bater das asas de borboletas de milhares de anos tenham surgido águas tão imensas como as do São Francisco e seus afluentes, que criaram novos rios, buracos e sertões. Talvez, no bater de suas asas, foi possível surgir Guimarães Rosa, espectador assíduo e atento daquele horizonte.

Carlos Drummond de Andrade, quando do falecimento do autor que gravou no mundo a paisagem daqueles Gerais sem fim, escreveu “Um chamado João”, cuja primeira estrofe expressa como encerramos (sem concluir) essa nossa viagem fabulosa:

João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Este texto contou com a leitura e a revisão atentas e generosas da antropóloga Marcela Bertelli, editora da Revista Manzuá.

Gabriela Moulin

 

mestra em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Jornalista de formação e especialista em gestão nas áreas de cultura e desenvolvimento social. Foi diretora-presidente do BDMG Cultural entre 2019 e 2022. Atualmente é diretora de desenvolvimento institucional Instituto Tomie Ohtake

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