REVISTA nº 2

Minúscula explosão

Cada poema que leio inventa ou tenta inventar uma língua nova: língua em processo, não familiar e familiar ao mesmo tempo, uma língua que me diz sobre coisas estranhas e extraordinárias.

Flavia Peret
Flávia Péret
16 Jun 2020 8 Min
Minúscula explosão

As línguas são imperfeitas
pra que os poemas existam
e eu pergunte donde vêm
os insetos alados e este afeto,
seu braço roçando o meu.
Adélia Prado

 

A linguagem humana é um acontecimento inexplicável. Cientistas pesquisam os homens da pré-história para tentar descobrir quando começamos a falar. Ao analisar fósseis que datam de meio milhão de anos, encontraram, por exemplo, uma alteração na estrutura do diafragma. O aumento no tamanho desse órgão, responsável pela respiração, talvez tenha possibilitado o surgimento da fala. Naquele período os sons que saíam da garganta dos nossos antepassados eram ruídos incompreensíveis. Quando e como o som se transformou em palavra? Quando as palavras ganharam significado? Como, quando e onde surgiu a primeira língua? Podemos falar em uma primeira língua? São perguntas ainda sem resposta.

Centenas de milhares de anos se passaram até que primeiros sons se transformassem nas línguas como conhecemos hoje em dia. Esse complexo enigma mobilizou nossa curiosidade em diferentes tempos históricos. Quase todos os povos e religiões criaram mitos de origem para explicar como essa extraordinária tecnologia do corpo surgiu. A linguagem verbal nos permite criar história, arte, filosofia, poesia, nos permite, também, transmitir memória e conhecimento. Para algumas sociedades, o signo verbal – falado ou escrito – é o principal dispositivo de comunicação e de expressão. No entanto, o mundo é constituído por uma multiplicidade de outros elementos (sons, gestos, desenhos, formas, alterações térmicas, cheiros, energias, ritmos) que também são linguagens. Linguagens invisíveis para leitores que, assim como eu, aprenderam a ler e a traduzir apenas as palavras.

Minha mãe, por exemplo, sabe traduzir o vento. Ela consegue diferenciar o vento que traz a chuva, daquele que leva a chuva embora; o vento do tempo frio, do tempo quente, do tempo seco, o vento da estiagem. A habilidade de interpretar um elemento natural, atmosférico, estabelece o ritmo da sua rotina doméstica: fechar as janelas, recolher as roupas do varal, aproveitar o sol para lavar a garagem, não se esquecer de colocar o guarda-chuva dentro da bolsa porque mais tarde, com certeza, vai chover.

O conhecimento que minha mãe tem dos ventos, que a astrologia tem do céu, que as benzedeiras têm das rezas e das plantas, que os povos indígenas têm dos seres da floresta, que as ciganas têm das linhas das mãos, ou que os pescadores têm das correntes marítimas são linguagens constituídas por signos não-verbais. As pessoas que decifram esses sinais são como tradutoras de uma língua sem palavras. Elas interpretam uma mancha, um desenho, uma repetição e transformam esses elementos em informação. É uma operação sofisticada do pensamento, resultado de um aprendizado que se dá pela observação atenta e constante dos eventos do mundo.

Aprender a falar também é uma operação sofisticada do pensamento, resultado de um aprendizado que se dá pela observação das palavras e das frases que atravessam e habitam o lugar onde uma pessoa nasce e é criada. Aprender a falar é aprender a traduzir, escreveu Octavio Paz. Para ele, as crianças são as primeiras tradutoras. Quando perguntam às mães o significado de uma palavra, elas estão tentando decodificar aquela palavra para a própria realidade. Quem convive com crianças pequenas pode observar as divertidas associações que elas inventam entre os nomes e as coisas, os deslocamentos que fazem com a sintaxe, o espanto que têm quando escutam determinado som. É bastante comum a cena onde mãe e filho conversam com fluência, mas quando uma terceira pessoa que não fala aquela “língua” chega, a mãe precisa traduzir o conteúdo da conversa para o “estrangeiro”. As crianças não têm medo de falar errado porque o pensamento delas ainda não foi capturado pelas aulas de português, pela gramática, pelo dicionário e por um conjunto de normatizações que domesticam e restringem a experiência livre e corporal (tátil, visual, sonora) que as crianças têm com as palavras e com os objetos. Elas simplesmente experimentam, brincam e observam tudo. E porque estão conhecendo o mundo, tentando entendê-lo, elas nos perguntam o tempo todo o nome das coisas. Mediada pelas traduções dos adultos, colecionam palavras com as quais inventam dialetos efêmeros, divertidos e insólitos. Esses experimentos quando não são registrados, perdem-se no tempo e na memória, são esquecidos.

Sem título, Mira-Schendel (1966) | Reprodução

Ultrapassada a infância, período no qual simultaneamente aprendemos a falar e a traduzir, momento de grande encantamento pela linguagem, podemos nunca mais sentir pelas palavras curiosidade, afeto, espanto. As palavras deixam de ser objetos de atenção e se transformam nos nomes que usamos para determinar as coisas, são apenas descrições ou  representações daquilo que elas tentam designar, perdem sua potência de invenção, de jogo e de brincadeira.  As regras e o uso cotidiano da língua fixam suas funções em usos práticos. O poeta Décio Pignatari, em um livrinho fundamental chamado O que é a comunicação poética (Coleção Primeiros Passos) explica as conseqüências de um uso exclusivamente instrumental da língua. “O linguista Chomsky distingue dois níveis no fato linguístico: o nível da competência e o nível do desempenho. O nível da competência refere-se ao nível de domínio técnico da linguagem (aos três anos de idade, uma criança já domina as estruturas básicas de seu idioma materno). O nível de desempenho é aquele em que o falante cria em cima do nível de competência. É claro que esses níveis não são separados: a criança aprende criando. Todos nós criamos, mas a (des)educação que recebemos nos orienta no sentido da (des)criação, no sentido de  permanecermos apenas no nível da competência”.

Eu precisei inventar uma segunda língua para me movimentar entre as palavras e as frases com mais liberdade, distanciando-me do nível de competência e me aproximando de outros níveis de expressão, níveis mais inventivos. Por isso, a poesia tem para mim a força de uma pequena revolução, ainda que provisória e microscópica.  Cada poema que leio inventa ou tenta inventar uma língua nova: língua em processo, não familiar e familiar ao mesmo tempo, uma língua que me diz sobre coisas estranhas e extraordinárias. Acredito que a poesia – enquanto linguagem – tem o poder de restabelecer nossa relação de espanto com as palavras e com os vários mundo possíveis, assim como acontece com as crianças quando estão aprendendo a falar: tangirana, aletrim, bomba atônita. Não estou afirmando que o poeta é criança, embora alguns poetas, como Manoel de Barros, tenham uma espécie de devir-criança mais acentuado. Acredito, entretanto, que crianças e poetas compartilham o mesmo tipo de abertura e de curiosidade. A poesia se faz olhando, observando e experimentando. Crianças e poetas estão atentos às possibilidades estéticas, mágicas, sonoras, visuais e interpretativas dos nomes e das coisas.

Estamos vivendo tempos difíceis, uma realidade árida. As palavras têm sido usadas como objetos de confusão e de mentira, de violência. Os poetas, como criadores de uma língua fora da língua, deslocada das normas e dos usos habituais, são também tradutores  daquilo que não estamos mais conseguindo perceber. Eles nos ajudam a enxergar as mil faces secretas sob a face neutra que toda palavra possui, fazendo o trânsito entre o mudo estado de dicionário e a o estado em carne viva do poema.

Quando uso a palavra tradução para descrever esse movimento múltiplo, verbal e não-verbal, de apreensão e compreensão do mundo, estou tentando pensar, assim como Octavio Paz que o ato de traduzir não é exclusivamente uma operação de transferência de uma língua para outra. É também um procedimento de interpretação que pode acontecer dentro de uma mesma língua, como se existissem zonas de opacidade onde a língua precisasse da própria língua para mediar sua necessidade ou incapacidade de comunicação. Essa é a tarefa, o esforço e o trabalho da poesia. “É no interior da língua que a língua precisa ser combatida”, disse Roland Barthes.  Para o poeta Haroldo de Campos, toda tradução é uma operação de invenção e criação. A tradução, nesse sentido, não está associada à fidelidade de uma palavra à sua versão original, mas a processos de interpretação que são subjetivos, localizados geograficamente no espaço, no tempo e na cultura, localizados também nos corpos e na memória. A poesia, assim como as linguagens que mencionei anteriormente,  é também uma forma de tradução do mundo não-verbal. O poeta com seus instrumentos de navegação e sondagem observa, captura e constrói formas e sensibilidades que ativam nossa percepção e nossa atenção para um mundo, muitas vezes, invisível. A poesia como linguagem nos ensina a ler e a falar, reaprender a falar. A poesia nos ensina a observar a semente que solitariamente brota de dentro da terra, enquanto vivemos nossas vidas, ocupados e sem tempo, ela revela o segredo e o silêncio, mas também o fogo e o barulho que acontece nessa minúscula explosão.

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Capa: Objecto Graphico, de Mira Schendel (1967) | Reprodução
Flavia Peret

Flávia Péret

É escritora, professora e pesquisadora. Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG e doutoranda sobre as relações entre escrita, gênero e política na mesma instituição.  Recebeu os prêmios JeanJacques Rousseau, pela Akademie Schloss Solitude, e Memória do Jornalismo Brasileiro, promovido pelo Jornal Folha de São Paulo. Publicou os livros “Imprensa Gay no Brasil”, “10 Poemas de Amor e de Susto”, “Outra Noite”, “Novelinha”, “Uma Mulher”, “Os Patos” e “Mulher-Bomba”

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